A origem de um dos maiores combates étnicos do século 20 remonta a uma história bastante peculiar
Situada nos Balcãs e formada como um legado da Primeira Guerra no desmembramento dos grandes impérios da região, a Iugoslávia era uma nação composta por diversas repúblicas: Sérvia, Montenegro, Eslovênia, Macedônia, Croácia e Bósnia — Herzegovina.
As diferenças étnicas e de nacionalismo eram suprimidas com sucesso graças à figura do Marechal Josip Broz Tito, líder do país na Segunda Guerra e herói nacional. Tito transformou o antigo reino em uma união de repúblicas comunistas. Seu poder e magnitude vieram, em grande parte, por ter expulsado os nazistas sem (quase) nenhuma ajuda da União Soviética, o que colocava a Iugoslávia numa posição peculiar: embora comunista, não fazia parte do Pacto de Varsóvia, o grande acordo militar da Cortina de Ferro durante a Guerra Fria.
Na verdade, Tito liderou o Movimento dos Não-Alinhados, uma terceira facção que pretendia se manter fora das disputas entre as polarizadas superpotências.
Com a morte de Tito em 1980, era de se esperar que a Iugoslávia encontrasse algumas crises sem seu maior baluarte. Os Balcãs foram, historicamente, um barril de pólvora, com diferentes etnias e religiões convivendo em uma harmonia tênue, que não costumava durar muito. Nesse contexto, entra a figura de Đorđe (ou Djordje) Martinović.
Martinovic era apenas um fazendeiro Sérvio de 56 anos na província do Kosovo. Qual sua relevância para a geopolítica mundial, você há de se perguntar. Até aquele ponto? Nenhuma. No entanto, em maio de 1985, tudo mudou quando o simplório fazendeiro foi até um hospital da região com uma aflição peculiar. Havia sido lesionado por conta da inserção de uma garrafa em seu ânus.
Ele alegava "ter sido atacado por dois homens que falavam albanês", sendo brutalmente violado enquanto trabalhava no campo de sua família. Embora a Albânia fosse vizinha da Iugoslávia e não parte dela, muitos albaneses viviam nas repúblicas do país e isso também aumentava as tensões étnicas na região.
A história chegou aos ouvidos de um coronel do Exército Popular Iugoslavo, que prontamente foi interrogá-lo. As possíveis implicações de um ataque de albaneses a um fazendeiro sérvio não seriam boas para a integridade da Iugoslávia.
A versão de Martinovic, então, mudou drasticamente: ele admitiu ter enfiado a garrafa por conta própria para fins de masturbação. O laudo escrito por um procurador constava que “Martinovic havia colocado uma garrafa amarrada num graveto preso ao chão e, então, sentou na garrafa”.
O fazendeiro foi enviado a Belgrado, capital da Iugoslávia, na república da Sérvia, para maiores investigações na Academia Médica Militar. Após examiná-lo, um time de doutores concluiu que as feridas eram inconsistentes com a história da masturbação. Era quase impossível, segundo eles, que Martinovic tivesse se machucado de tal forma e que suas lesões provavelmente tinham sido causadas por dois ou mais indivíduos, o que condizia com a versão inicial.
O serviço de inteligência da Iugoslávia buscou, então, uma terceira opinião, de um professor doutor, que apenas corroborou a versão oficial proclamada pelo coronel e pela procuradoria. Os órgãos oficiais do país deram o caso como encerrado, mas já era tarde demais. A história havia chegado à imprensa.
Por muitos anos, os diferentes nacionalismos na Iugoslávia foram suprimidos em prol da união, desencorajados pelo próprio Estado na imprensa e na mídia. Sem o totem legalista de Josip Tito a vigiar, o incidente de Martinovic foi uma faísca no grande barril de pólvora balcânica. Jornais sérvios deram grande atenção ao caso e, de uma hora pra outra, manifestações nacionalistas sérvias e anti-albanesas começaram a pipocar no território Iugoslavo.
O próprio Martinovic admitiu ter sido coagido a mudar seu relato em troca de empregos para seus filhos, e os jornais diziam que albaneses estavam atacando pessoas de etnia sérvia afim de expulsá-las do território considerado por eles como a Grande Albânia, ou seja, terras que pertenciam ao país por direito.
Tais alegações reverberaram entre os sérvios, que já estavam preocupados com o êxodo dos seus da república do Kosovo, expulsos por albaneses que queriam suas terras. A cobertura dos jornais rompeu de vez os antigos tabus acerca do nacionalismo, e diversos intelectuais sérvios abraçaram a causa do fazendeiro.
Comparações foram feitas ao fascismo e aos campos de concentração e extermínio de sérvios na Segunda Guerra Mundial, além de manifestações islamofóbicas e, principalmente, associação aos Turcos Otomanos. Soberanos da região por séculos, existe um grande ressentimento por parte dos habitantes dos Balcãs contra os otomanos e, por consequência, aos turcos.
Os albaneses que moravam no Kosovo entendiam que a história oficial estava mal contada, mas achavam que era injusto utilizá-la para representar as relações entre albaneses e sérvios. As outras repúblicas iugoslavas tinham a nítida impressão de que o caso estava sendo usado ostensivamente pela Sérvia a fim de reafirmar o ideal da Grande Sérvia, algo bem irônico se considerar a acusação aos albaneses.
A história provou que elas estavam certas quando, quatro anos mais tarde, o então presidente da República Socialista da Sérvia, Slobodan Milosevic, fez o famoso Discurso de Gazimestan na mesma província de Kosovo, onde, 600 anos antes, o reino Sérvio foi derrotado pelo Império Otomano, porém foi exaltado por Milosevic como o bastião da Cristandade europeia contra o islamismo turco.
Em 1991, porém, a tensão na Iugoslávia chegou ao seu limite. As manifestações nacionalistas sérvias desde o caso de Martinovic, aliadas aos ideais imperialistas de Milosevic levaram tanto a Croácia quanto a Eslovênia a declararem independência.
Iniciava-se a Guerra da Iugoslávia, um dos conflitos mais sangrentos da Europa no pós-Segunda Guerra. As inúmeras violações de direitos humanos, genocídios e crimes de guerra levaram Milosevic e outros líderes sérvios ao Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade, e levaram Bono Vox aos palcos com Luciano Pavarotti para cantar “Miss Sarajevo”, música inspirada em um documentário que visava trazer à luz o aspecto humano da Guerra da Bósnia.
A história geopolítica conta com diversos casos peculiares, mas poucos são tão estranhos como uma sangrenta guerra étnica que tem suas raízes em uma mera garrafa de cerveja inserida no ânus de um fazendeiro.
+Saiba mais sobre o tema através das obras abaixo
O Século de Sangue - 1914-2014: as vinte guerras que mudaram o mundo, Emmanuel Hecht, Pierre Servent (e-book) - https://amzn.to/2RBxZjl
A Guerra da Iugoslávia: Uma Década de Crises nos Bálcãs, Sérgio Aguilar (2018) - https://amzn.to/2NzVfNn
Inferno: O mundo em guerra 1939-1945, Max Hastings (2012) - https://amzn.to/38gdu1Y
Vale lembrar que os preços e a quantidade disponível dos produtos condizem com os da data da publicação deste post. Além disso, assinantes Amazon Prime recebem os produtos com mais rapidez e frete grátis, e a revista Aventuras na História pode ganhar uma parcela das vendas ou outro tipo de compensação pelos links nesta página.