Evita se despediu do mundo em 1952. Seu corpo, contudo, vagou durante 24 anos, sendo usado até mesmo em rituais de bruxaria
Evita pesava pouco mais de 30 quilos quando parou de respirar. A mulher mais poderosa da Argentina foi vencida por um câncer aos 33 anos, após suplicar ao povo que não a esquecesse. Naquele 26 de julho de 1952, as rádios transmitiram a mensagem oficial: "Às 20h25, entrou na eternidade a senhora Eva Perón, líder espiritual da nação". Não eram meras palavras: o presidente Juan Domingo Perón (1895-1974) decidiu embalsamar o cadáver da esposa. Entregou-o ao anatomista espanhol Pedro Ara.
Na manhã seguinte, o doutor Ara declarou que o corpo estava incorruptível. Assistentes de Evita pentearam seu cabelo, pintaram as unhas e envolveram as mãos com o rosário que ganhara do papa Pio XII (1876-1958).
Após 13 dias de velório, Ara retomou seus trabalhos num laboratório secreto montado no 2º andar da Confederação Geral do Trabalho (CGT), em Buenos Aires. Submergiu o corpo em acetato, injetou glicerina nas artérias e parafina líquida no globo ocular. Evita ficou mais jovem que nunca.
O artista levou três anos retocando sua obra. A defunta continuaria na CGT até que se construísse um mausoléu mais alto que a Estátua da Liberdade, de acordo com a vontade da mãe dos descamisados. O projeto não se realizou. Com a queda de Perón, em 1955, o corpo de Evita embarcou numa odisseia macabra que só terminaria em 1976.
Na noite de 23 de novembro de 1955, um comando militar invadiu a sede da CGT. O então coronel Carlos Koenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE), olhou com desprezo para a múmia ao lado do doutor Ara e a levou para um caminhão. Cientistas extraíram um pedaço da orelha esquerda, cortaram a falange de um dedo, fizeram radiografias e decretaram: era mesmo o cadáver de Evita.
Essa confirmação levou pânico ao general Pedro Aramburu. Se os peronistas roubassem o corpo, poderiam usá-lo como uma bandeira da resistência. Evita morta era mais perigosa que viva! Alguns oficiais sugeriram cremá-la. Outros, jogá-la no rio La Plata. Já a Marinha queria desintegrá-la com ácido. Católico fervoroso, Aramburu decidiu dar ao corpo uma sepultura cristã. Por isso, ordenou a Koenig enterrá-lo num local seguro.
Mas a missão degringolou. O desprezo do coronel por Evita virou uma obsessão. Koenig já não podia viver sem ela. Precisava escondê-la para desfrutar sua presença, e por isso rodou com a defunta pela cidade. De acordo com algumas versões, tentou deixá-la com a Marinha. Ante a recusa, ocultou-a atrás da tela do cinema Rialto.
Em seguida, escondeu-a no sótão da casa do major Arandia, um velho amigo. Uma noite, Arandia ouviu ruídos e disparou a pistola, achando que os peronistas haviam invadido a casa. Acabou matando sua mulher, que estava grávida.
Koenig então levou a múmia ao seu escritório no SIE. Convidava pessoas até lá e lhes mostrava o corpo. Quando Aramburu soube disso, os militares já comentavam que Koenig masturbava-se na frente do corpo, urinava em cima... e vai saber o que mais. Tanto fez que foi confinado num regimento da Patagônia.
No lugar de Koenig, assumiu o coronel Héctor Cabanillas. "Foi uma emoção bastante violenta ver que o féretro de Eva Perón estava intacto ao lado de minha sala", disse Cabanillas (morto em 1998) num documentário da TV Plus, na Espanha. "Parecia uma boneca que não era de cera, e sim de carne e osso."
Cabanillas via flores perto do SIE, sinal de que mais gente sabia que o corpo estava lá. "Suspeitávamos que havia comandos peronistas preparados para roubar o cadáver", afirmou. "Diante de tantas pressões, veio a necessidade de tirá-lo do país."
A ideia partiu do padre Francisco Rotger, capelão das Forças Armadas da Argentina. Rotger logo mexeu os pauzinhos na Companhia de São Paulo, com sede na Itália. E convenceu seu superior, o padre Giovanni Penco, a enterrar o cadáver em Milão. Os detalhes eram tão secretos que nem o presidente tomou conhecimento. Apenas deu o sinal verde. Começava a Operação Traslado.
O corpo sairia de Buenos Aires com o nome de María Maggi de Magistris, uma italiana morta em 1951. O coronel Hamilton Díaz, do SIE, fingiria ser o viúvo, e o suboficial Manuel Sorolla usaria sua identidade real. Chegando a Gênova, o corpo seria recebido por uma monja paulina, Giuseppina Airoldi, que não imaginava que a morta era Evita.
Para despistar, Cabanillas deixou vazar a versão de que o cadáver tinha sido destruído. Há quem diga que ele também forjou outros dois caixões: um foi enterrado em Buenos Aires e o outro, levado para a Alemanha.
Como Evita pesava pouco, os militares puseram pedras junto com o corpo. Mas exageraram. Os fiscais do porto desconfiaram do enorme peso e quiseram abrir o caixão. O padre Rotger entrou em cena. "Era uma mulher muito gorda", justificou. Deu certo, e a transferência foi autorizada.
Na Itália, o falso viúvo colocou Evita num furgão rumo ao Cemitério Central de Milão. Na folha 4609 do registro, um empregado anotou: "María Maggi de Magistris. Data de falecimento: 23-02- 1951. Fossa 41. Data de enterro: 13-05-1957."
Nos anos 60, o cadáver intrigava os argentinos. Havia sido destruído? Jogado no rio? Enquanto Giuseppina levava flores à tumba em Milão, cresciam em Buenos Aires os rumores de que os paulinos tinham ligação com o sumiço do corpo. A tensão chegou ao máximo em 1970, quando o presidente Aramburu foi sequestrado pelos montoneros, jovens peronistas de esquerda. Como não lhes disse onde estava Evita, eles o mataram.
Em 1971, o coronel Alejandro Lanusse chegou à Presidência admitindo negociar com Perón. Como gesto de boa vontade, decidiu entregar o corpo ao marido, que vivia exilado em Madri. Lanusse chamou o amigo Rotger para dizer que era hora da Operação Devolução... 14 anos depois. Desta vez, Sorolla fingiu ser irmão de María.
Após dois dias de viagem de carro, o corpo chegou a Madri em 3 de setembro de 1971. Perón recebeu-o em sua residência no bairro de Puerta de Hierro, junto à terceira mulher, Isabel Martínez, e seu assistente José López Rega — conhecido como o bruxo.
E haja bruxaria: López Rega passou a usar a falecida em rituais ocultistas. "Ele fazia Isabel se deitar sobre o cadáver e pronunciava orações. O objetivo: fazer a alma de Evita passar ao corpo de Isabel", afirma o jornalista Sergio Rubín.
Com o retorno da democracia, em 1973, Perón regressou ao país e venceu as eleições para presidente, com Isabel de vice. Mas os montoneros não o perdoaram por deixar Evita na Espanha. Sequestraram o corpo de Aramburu e anunciaram que só devolveriam se a Madre Mía retornasse também.
Em 1974, Perón morreu e Isabel se tornou presidenta. Ela contratou o restaurador Domingo Tellechea para reparar o cadáver. Anos depois, ele revelou que o corpo apresentava uma profunda incisão no pescoço, o nariz destroçado e um dedo do pé a menos. "Esses danos não se produziram pelo movimento do corpo, e sim por uma grande força exercida contra ele", disse. Fica a suspeita de que os militares atacaram a múmia antes de devolvê-la.
Em setembro, Evita finalmente foi levada de volta à Argentina, num voo charter, e colocada na residência presidencial de Olivos, junto ao corpo do marido. Em março de 1976, um novo golpe levou a Argentina à sua ditadura mais cruel. Os militares entregaram o corpo de Evita a suas irmãs, que o depositaram no Cemitério da Recoleta. É lá que ele hoje descansa, a 6 metros de profundidade.