Neste dia, em 1910, nascia o compositor cujos versos deram vida a personagens impagáveis, que traduzem como ninguém a alma da cidade
Se toda a diversidade cultural e as contradições de São Paulo pudessem ser resumidas e encerradas num só rosto, este certamente viria sob um nostálgico chapéu de feltro e acima de uma indefectível gravata-borboleta.
Mais do que qualquer paulistano, Adoniran Barbosa incorporou e difundiu as vertentes, as tendências e as realidades suaves e doloridas de sua gente e de sua terra.
Ainda que tenha nascido em Valinhos, no ano de 1910, sua chegada na capital bandeirante, em meados da década de 1930, decretou o início de uma cúmplice amizade que duraria até 1982, ano de sua morte. Poeta e cidade cresceriam juntos, e juntos testemunhariam o crescimento vertiginoso da metrópole. A provinciana São Paulo tornou-se uma famigerada selva de pedra - a qual Adoniran desbravaria em forma de personagens e versos.
Nascido João Rubinato, o artista popular no mais popular dos sentidos extraiu da cidade a inspiração para compor suas canções e seus tipos. Como radialista, comediante, artista de circo, ator de televisão e compositor, colocou em cada um de seus trabalhos a essência de uma São Paulo que, apesar de gigante e opressora, acolheu a todos com instinto maternal.
Nos áureos tempos na Rádio Record, Adoniran era um dos mais respeitados integrantes do estrelado grupo da Maior. Seus personagens cômicos caíram nas graças da população de todos os estratos sociais - talvez porque tivessem exatamente a representação lúdica de cada um deles. Entre eles, o malandro Charutinho Espúrio da Silva, o motorista de táxi Giuseppe Pernafina, o professor de inglês Richard Morris, o moleque Barbosinha, o grã-fino Osvaldo Luiz das Gardênias Lilases e o vendedor Moisés Rabinovich.
Tais figuras individualizam a essência da multidão que ergueu a terra de Piratininga. Uma terra que, durante a vida de Adoniran, explodiu em tamanho: de pouco mais de 130 km² em 1930, passou a 900 km² em 1980. Em um espaço de quarenta anos, de 1940 a 1980, São Paulo passou dos 1,3 milhão de habitantes para 13 milhões.
E são as conseqüências desse crescimento - ou melhor, do pogréssio -, para o bem ou para o mal, que o compositor levou para músicas como Saudosa Maloca, Abrigo de Vagabundo, Luz da Light, Samba do Metrô, Viaduto Santa Ifigênia, Despejo na Favela e Iracema. O samba da mulher atropelada por um carro a poucos dias do casamento só poderia ter sido feito em São Paulo - e por Adoniran Barbosa.
Muito além da irreverência e dos escorregões propositais no idioma, sua obra é um verdadeiro inventário da metrópole. O artista elenca não só personagens como Iracema e o Arnesto e cartões postais como a Praça da Sé ou o Viaduto Santa Ifigênia, como também temas viscerais à cidade, como a fome, a falta de moradia e o desemprego.
Praça da Sé
Praça da Sé / Praça da Sé / Hoje você é / Madame Estação Sé / Você está bonita por baixo / Está bonita por cima / Só indo lá pra ver / Mas não vá sozinho, meu senhor / Que o senhor vai se perder
Centro nevrálgico da cidade de São Paulo, a velha Praça da Sé, até os idos de 1960 e 1970, era a fiel companheira da boemia paulistana. Adoniran, que trabalhou por décadas a alguns metros dali - no antigo prédio da Rádio Record, na Quintino Bocaiúva, 22 -, costumava bater cartão na praça, fosse para um samba na caixa de fósforos ou para uma acirrada partida de palitinho.
Democrática, a Sé acolhia artistas, indigentes, malandros, nababos, engraxates, meliantes, papa-hóstias e demais espécimes da fauna urbana bandeirante, que, independente de raça, credo ou cor, viravam as noites no local.
A atmosfera boêmia, porém, se evacuaria com a grande reforma da praça, iniciada em janeiro de 1972. Abaixo do solo do marco zero da capital paulista, seria construída uma estação de metrô. Foram 150 mil viagens de caminhão para retirar 380 mil metros cúbicos de terra de até 27 metros de profundidade. A estação de metrô utilizou 90 mil metros cúbicos de concreto armado, volume 10% superior ao usado para construir o Maracanã.
Em fevereiro de 1978, Adoniran foi conferir pessoalmente a inauguração, com 50 mil metros quadrados de área, 18 mil deles ocupados por árvores e gramados e 2 mil metros quadrados de um lago. Na oportunidade, o quase septuagenário apresentou sua homenagem em forma de versos: Praça da Sé, composição que revelava a nostalgia do poeta pelos anos dourados do local.
Viaduto Santa Ifigênia
Venha ver / Venha ver, venha ver Eugênia / Como ficou bonito / O viaduto Santa Ifigênia / Eu me lembro que uma vez você me disse / Que o dia que demolissem o viaduto / Que tristeza / Você usava luto / Arrumava suas mudanças Ia embora pro interior
Os gradis trabalhados em estilo art nouveau do Viaduto Santa Ifigênia, construído entre 1911 e 1913 com peças metálicas vindas da Bélgica, quase viraram sucata na década de 70. Por ocasião da passagem do metrô pelo subterrâneo da região central de São Paulo, correu o boato de que o viaduto de 225 metros de comprimento poderia beijar o chão do Vale do Anhangabaú.
Diante da reação negativa da população, as autoridades logo descartaram a execução deste assassinato arquitetônico no coração da cidade, e ainda por cima reformaram o Santa Ifigênia, revestindo seu piso com pastilhas e destinando-o exclusivamente a pedestres.
Adoniran Barbosa, cujas pernas já atravessavam o viaduto sozinhas, encontrou certa tarde no Centro de São Paulo o compositor Nicola Caporrino, com quem havia criado o clássico Samba do Arnesto.
Flauteando pela região, comentaram sobre a frustrada demolição do Santa Ifigênia, que, além de um dos mais charmosos da capital, pode ser considerado também um imponente monumento ao calote - reza a lenda que a prefeitura paulistana jamais pagou o financiamento liberado pelo governo da Inglaterra para a compra das peças do projeto dos italianos Giulio Michetti e Giuseppe Chiapori.
A dupla então compôs o samba.
Iracema
Iracema / Eu sempre dizia / Cuidado ao travessar essas ruas / Eu falava / Mas você não me escutava não / Iracema você travessou contramão
Em meados da década de 50, um atropelamento na rua da Consolação não mereceu mais que uma notinha em um jornal da cidade. Mas o cronista Adoniran Barbosa resolveu transformar a tragédia anônima em samba, que estourou nas paradas no ano de 1956. Assim, nasceu Iracema, já devidamente morta, pinchada no chão por ter atravessado na contramão a Avenida São João - o local do sinistro foi modificado pelo compositor para fins métricos.
A desafortunada moça, que casaria dentro de vinte dias, legou para o noivo um espólio dos mais sintéticos e menos ortodoxos: um par de meias e outro de sapatos. O samba de tema igualmente ímpar assustou a atriz Nair Belo, a quem Adoniran mostrou o rascunho da composição.
"Adoniran, você está louco? O que é isso, fazer um samba sobre mulher atropelada? Ninguém vai gostar de uma coisa dessas. Pode ter certeza", comentou.
Ledo engano. Na gravação dos Demônios da Garoa, Iracemaatropelou as concorrentes e foi uma das músicas mais ouvidas daquele ano. Anos depois, Nair Belo concluiria: "Eu não entendo mesmo porra nenhuma de música".
Arnesto
O Arnesto nos convidou / Prum samba ele mora no Brás / Nóis fumos num encontremos ninguém / Nóis vortemos cuma baita de uma réiva / Da otra vêis / Nóis não vai mais / Nóis num semos tatu
Não fosse pelo fato de ser um hominídeo, Ernesto Paulelli poderia estar tombado pelo patrimônio histórico de São Paulo. O advogado foi uma verdadeira instituição bandeirante, já pertencente ao folclore da cidade, especialmente no Brás e na Mooca.
Se não pelo fato de se vestir como um autêntico paulistano de mil-novecentos-e-guaraná-com-rolha, morar na mesma casa desde a década de 40, e, já nonagenário, dedicar-se ao estudo de matemática avançada e latim clássico todas as manhãs, o tombamento justificava-se pelo simples motivo de ter batizado um dos vértices da santíssima trindade musical de Adoniran Barbosa, o famigerado Samba do Arnesto.
Homenageado – ou quase isso – com a referida canção, Ernesto tem passado os últimos cinquenta anos de sua vida explicando que, não, não chamou Adoniran para samba algum, e muito menos deixou o compositor e sua turma de amigos na mão. O músico apenas usou sua alcunha para ilustrar a fictícia história do anfitrião que deu mancada.
Criador e criatura conheceram-se nos idos de 1930, quando Paulelli fazia bico como violonista do programa Saudades do Sertão, de Nhá Zefa, na Rádio Bandeirantes, e Adoniran bebia nos bares dos arredores. O diálogo de apresentação entre ambos, que explica a confusão da primeira letra do nome, foi surreal.
Adoniran: Me dá um cigarro. Ernesto: Desculpe, eu não fumo. Adoniran: Então me dá seu cartão. Arnesto entregou ao músico um cartão de seu ofício principal, o de vendedor da cera Recorde. O compositor olhou para o papel e disparou: Adoniran: Arnesto? Ernesto: Não, é Ernesto. Com E. Adoniran: Não é não. É Arnesto. E eu não vou te entregar meu cartão porque não tenho. Mas vou fazer um samba para você. Duvida?
Dito e feito. Meio século depois do lançamento da música, Ernesto ainda precisava explicar pacientemente a gênese do samba a qualquer indivíduo que o interpele. Nas imediações da rua Tagi, praticamente na fronteira geográfica entre o Brás e a Mooca, não há quem não tenha ouvido pelo menos umas trinta vezes sua história.
Aqui, Gerarda!
Gerarda saiu de casa / Onde será que Gerarda foi parar / Aqui, Gerarda! / Aqui, Gerarda! / O Charutinho tá cansado de esperar
Expressão consagrada em São Paulo nas ondas do rádio por Charutinho Espúrio da Silva, personagem de Adoniran no programa Histórias das Malocas, Aqui, Gerarda! virou música no carnaval do ano de 1959.
O nome foi inspirado em uma empregada doméstica do compositor, que à época morava no número 579 da rua Aurora. E o samba Gerarda só não fez mais sucesso naquele fevereiro do que o rinoceronte Cacareco, símbolo de protesto político e elemento mais votado na eleição para a Câmara Municipal de São Paulo do ano anterior.
De qualquer forma, o sucesso da marchinha momesca foi tamanho que, ao final daquele carnaval, uma música assinada pela dupla Dioguinho e José Roy celebrava um grande acontecimento: o casamento das duas figuras que se tornaram a coqueluche daquele reinado de Momo.
Unidos em matrimônio e felizes para todo o sempre, os pombinhos Gerarda e Cacareco. Certamente a doméstica não aprovaria o destino de sua homônima. Cacareco não era um bom partido.
Vila Esperança
Vila Esperança / Foi lá que eu passei / O meu primeiro Carnaval / Vila Esperança / Foi lá que eu conheci / Maria Rosa meu primeiro amor
Composta no final da década de 60, por Adoniran e Marcos César, a marcha-rancho em tributo ao bairro da Zona Leste paulista, historicamente famoso por seu carnaval de rua, foi parte integrante da era dos festivais de São Paulo.
Em 1969, quando a TV Tupi organizou seu I Festival de Músicas de Carnaval, Vila Esperança era favoritíssima para levar o caneco. Corria por fora também Transplante Corintiano – "Doutor, eu não me engano/ Meu coração é corintiano" –, defendida pelo inconfundível Silvio Santos, o futuro homem do Baú. Contudo, o samba-zebra Estou Ficando Louco desbancou as mais cotadas e deu o prêmio máximo ao até então desconhecido eletricista e dublê de compositor Luiz Lucas Ribeiro.
Ao chegar em casa derrotado, no bairro de Cidade Ademar, Adoniran encontrou a esposa, Matilde de Lutiis, chorando aos cântaros. O compositor apressou-se em consolá-la, dizendo que, além do segundo lugar ser uma posição muito respeitável, ainda haveriam de aparecer outras chances em novos festivais.
Depois de ouvir o sermão do marido, Matilde respirou fundo, enxugou as lágrimas e olhou para Adoniran assustada: "Eu não estou chorando por causa disso. É a Loirinha que fugiu". O sambista não teve outra alternativa a não ser procurar a cachorrinha pelas ruas de Cidade Ademar madrugada adentro.
Dotô Vardemá
Meu povo, minha gente / Estou aqui para atender / Se precisar de alguma coisa / É só falar com Valdemar / Dotô Vardemá Vardemá Dotô
Somando-se suas passagens como interventor, governador, prefeito da capital e deputado estadual, Adhemar de Barros (1901-1969) permaneceu durante três décadas como figura axial da vida política paulista. O polêmico piracicabano estreou como deputado estadual, em 1935, e só saiu quando foi cassado do cargo de governador pelo Governo Federal, em 1966.
Pioneiro do populismo em terras de Piratininga, rivalizou com Jânio Quadros no quesito folclore. Ventre protuberante, suspensórios, cunhava slogans arrojados, como "Fé em Deus e pé na tábua", que disputavam palmo a palmo com os "fi-lo porque qui-lo" atribuídos ao seu principal rival político, Jânio, o homem da vassoura.
Em 1957, Adoniran, Geraldo Blota e Raguinho compuseram a marcha Conheço muito Dotô Vardemá, inspirada no chamado Promessinha. Naquele ano, Adhemar venceria a disputa com Prestes Maia e seria eleito prefeito de São Paulo. No ano seguinte, porém, perderia a briga pelo Governo para Carvalho Pinto, apoiado por Jânio.
O personagem Dotô Vardemá era um regular no programa Dose das Doze, apresentado por Blota. O comediante Paulo Augusto achincalhava o político. "Chamem-me de Promessão, doutor Valdemar, de Promessinha, de Sete Dedos, do que quiserem. Mas votem em mim em 3 de outubro."
Não por coincidência, os correligionários de Adhemar inauguraram o uso da frase que, mais tarde, seria aplicada sem constrangimento para outro lendário político paulista, Paulo Maluf: "Rouba mas faz".