Famosa transeunte das ruas de Salvador, a Mulher de Roxo se tornou uma figura emblemática em meados dos anos 1970, mas foi enterrada como indigente
Entre meados dos anos 1970 até perto do fim do século passado, uma figura enigmática — e até certo ponto assustadora — chamava a atenção de quem circulava pela Rua Chile, a principal via de comércio de Salvador.
A calçada se tornara palco para o desfile de uma mulher vestida de roxo, com trajes que mais lembravam um hábito religioso, como o das freiras. Para completar, ela ainda carregava um grande crucifixo pendurado na altura do peito.
Apesar de folclórica, a imagem da Mulher de Roxo, como passou a ser conhecida de maneira geral, causava os mais diversos tipos de sentimentos: medo, receio, compaixão, arrepios e até mesmo pena.
A narrativa se tornava mais complexa e interessante pelo fato de que ninguém sabia ao certo quem era aquela pobre moribunda. As divergências começam, inclusive, por seu nome: muitos diziam que a Mulher de Roxo se chamava Florinda Santos, outros alegavam se tratar de Doralice. A dúvida até hoje permanece.
Assim como também não há conhecimento sobre sua história e a razão de ela repetir o ritual quase diário, que ia de um lado a outro da rua pedindo dinheiro de forma muito educada.
Uma versão da lenda defende que a mulher tinha um certo poder financeiro, mas enlouqueceu após perder toda a sua riqueza. Outra versão, mais macabra, diz que sua insanidade começou após ela presenciar a mãe matando seu pai e cometendo suicídio logo em seguida. No entanto, nada garante que a origem da Mulher de Roxo tenha ligações com a morte.
Outros ainda dizem, aliás, que essa personagem endoidou após ser abandonada no altar. A tese do coração ferido explicaria algumas aparições dela usando um vestido de noiva, com direito a véu e grinalda. Seja qual for o pano de fundo da história, na estética, o batom vermelho sempre lhe fazia companhia.
Por trás da aparência de Florinda — ou Doralice — havia um certo tom de liberdade. A rua era sua verdadeira casa, seu mundo, seu espaço… A intimidade dela com a via era tão grande que seus pés tocavam naturalmente o solo, sem nenhum calçado, enquanto ela dizia ser a dona da rua.
Quando a noite caía, a Mulher de Roxo voltava caminhando até o albergue noturno da prefeitura, que ficava situado na Baixada dos Sapateiros. O refúgio era seu único abrigo e, por lá, tentava colocar os pensamentos em ordem antes de retornar ao local de sempre, na manhã seguinte, para reivindicar seu espaço: além da Rua Chile, ela afirmava que o Palácio do Rio Branco também lhe pertencia.
Em 5 de abril de 1997, a Mulher de Roxo morreu, aos 80 anos. Apesar de ter sido sepultada como indigente, sua história se tornou quase um mito, transcendendo as barreiras regionalistas e servindo de inspiração para um personagem criado pelo cineasta, Glauber Rocha, no filme 'O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro', de 1969.
Além da ficção, a memória da Mulher de Roxo também foi contada no documentário homônimo dirigido por Fernando Guerreiro e José Américo Moreira da Silva. Já a sua imagem foi eternizada na Galeota Gratidão do Povo, um painel pintado pelo artista Carlos Bastos que decora o plenário da Assembleia Legislativa da Bahia.