Famosa transeunte das ruas de Salvador, a Mulher de Roxo se tornou uma figura emblemática em meados dos anos 1970, mas foi enterrada como indigente
Publicado em 13/10/2024, às 12h00 - Atualizado em 14/10/2024, às 16h40
Entre meados dos anos 1970 até perto do fim do século passado, uma figura enigmática — e até certo ponto assustadora — chamava a atenção de quem circulava pela Rua Chile, a principal via de comércio de Salvador.
A calçada se tornara palco para o desfile de uma mulher vestida de roxo, com trajes que mais lembravam um hábito religioso, como o das freiras. Para completar, ela ainda carregava um grande crucifixo pendurado na altura do peito.
Apesar de folclórica, a imagem da Mulher de Roxo, como passou a ser conhecida de maneira geral, causava os mais diversos tipos de sentimentos: medo, receio, compaixão, arrepios e até mesmo pena.
A narrativa se tornava mais complexa e interessante pelo fato de que ninguém sabia ao certo quem era aquela pobre moribunda. As divergências começam, inclusive, por seu nome: muitos diziam que a Mulher de Roxo se chamava Florinda Santos, outros alegavam se tratar de Doralice. A dúvida até hoje permanece.
Assim como também não há conhecimento sobre sua história e a razão de ela repetir o ritual quase diário, que ia de um lado a outro da rua pedindo dinheiro de forma muito educada.
Uma versão da lenda famosa defende que a mulher tinha um certo poder financeiro, mas enlouqueceu após perder toda a sua riqueza. Outra versão, mais macabra, diz que sua insanidade começou após ela presenciar a mãe matando seu pai e cometendo suicídio logo em seguida. No entanto, nada garante que a origem da Mulher de Roxo tenha ligações com a morte.
Outros ainda dizem, aliás, que essa personagem endoidou após ser abandonada no altar. A tese do coração ferido explicaria algumas aparições dela usando um vestido de noiva, com direito a véu e grinalda. Seja qual for o pano de fundo da história, na estética, o batom vermelho sempre lhe fazia companhia.
Por trás da aparência de Florinda — ou Doralice — havia um certo tom de liberdade. A rua era sua verdadeira casa, seu mundo, seu espaço… A intimidade dela com a via era tão grande que seus pés tocavam naturalmente o solo, sem nenhum calçado, enquanto ela dizia ser a dona da rua.
Quando a noite caía, a Mulher de Roxo voltava caminhando até o albergue noturno da prefeitura, que ficava situado na Baixada dos Sapateiros. O refúgio era seu único abrigo e, por lá, tentava colocar os pensamentos em ordem antes de retornar ao local de sempre, na manhã seguinte, para reivindicar seu espaço: além da Rua Chile, ela afirmava que o Palácio do Rio Branco também lhe pertencia.
Em 5 de abril de 1997, a Mulher de Roxo morreu, aos 80 anos. Apesar de ter sido sepultada como indigente, sua história se tornou quase um mito, transcendendo as barreiras regionalistas e servindo de inspiração para um personagem criado pelo cineasta, Glauber Rocha, no filme 'O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro', de 1969.
Além da ficção, a memória da Mulher de Roxo também foi contada no documentário homônimo dirigido por Fernando Guerreiro e José Américo Moreira da Silva. Já a sua imagem foi eternizada na Galeota Gratidão do Povo, um painel pintado pelo artista Carlos Bastos que decora o plenário da Assembleia Legislativa da Bahia.