No Japão, todos os anos, pessoas desaparecem espontaneamente em busca de uma vida nova; saiba mais detalhes sobre a prática de jouhatsu
Publicado em 08/12/2024, às 12h00 - Atualizado em 11/12/2024, às 07h09
Pressão familiar, crises financeiras, problemas no relacionamento, falta de perspectiva de futuro… Pensar em qualquer um desses tópicos pode fazer muitas pessoas entrarem em crise e desejar 'sumir'.
É difícil enfrentar a realidade da vida em diversas situações. Muito mais fácil se os problemas deixassem de existir. Como seria ainda se você recomeçasse do zero, mas com toda a vivência que tem? Uma nova vida; novos desafios. Um novo futuro.
No Japão, anualmente, muitas pessoas conseguem desaparecer sem deixar rastros. E, uma empresa se destaca no assunto. Não se trata de nenhum crime hediondo, a prática até mesmo tem nome: jouhatsu — termo que significa 'evaporação'.
+ A emocionante história por trás do curioso Restaurante dos Pedidos Errados
Jouhatsu é o nome usado para se referir as pessoas que, por anos, décadas ou até mesmo para sempre, decidiram abandonar suas próprias vidas para começar uma nova. "Fiquei farto das relações humanas. Peguei uma mala e desapareci", diz um homem identificado como Sugimoto em entrevista à BBC.
O sujeito aponta que vivia em uma pequena cidade, onde era conhecido por todos devido ao prospero negócio familiar; que ele teria sido destinado a cuidar. No entanto, a pressão lhe causou tanta angústia que ele achou melhor deixar tudo para trás. "Eu simplesmente fugi".
Ao longo dos últimos anos, diversas pessoas passaram a procurar essas operações, chamadas de 'mudanças noturnas', pelas mais diferentes motivações: a falta de amor no casamento fadado ao fracasso; dívidas que parecem impagáveis; a cultura estrita do ambiente de trabalho no Japão; a falta de apoio familiar…
Por lá, as empresas especializadas em Jouhatsu ajudam as pessoas a sumirem discretamente de suas vidas. Os serviços de 'mudança noturna' também fornecem hospedagens em regiões distantes para seus clientes começarem uma nova vida.
Sho Hatori, que fundou uma empresa que oferece tal tipo de serviço, conta que começou com os trabalho na década de 1990, quando a bolha econômica japonesa estourou. "Normalmente, os motivos para a mudança costumam ser positivos, como ir para a universidade, conseguir um novo emprego ou um casamento", explica.
Hatori diz que sempre acreditou que as crises financeiras eram a principal motivação para a 'evaporação' das pessoas, mas mudou de pensamento depois que começou no ramo do Jouhatsu; descobrindo também "motivos sociais" por trás disso.
O fenômeno é bem mais antigo que a crise econômica de três décadas atrás. Segundo o sociólogo Hiroki Nakamori, que estuda o fenômeno há mais de década, o termo começou a ser usado ainda nos anos 1960.
Uma explicação para isso é que as taxas de divórcio no país eram muito baixas — e ainda são. Portanto, para evitar complexos procedimentos formais de separação, muitas pessoas decidiram que era muito mais fácil desaparecer, contextualiza à BBC.
Outro ponto que ajuda a explicar a questão é o direito à privacidade dos japoneses. Afinal, no país, uma pessoa desaparecida pode, por exemplo, sacar dinheiro em caixas eletrônicos se ser descoberta.
Além disso, familiares não podem pedir consultas a câmeras de segurança, que gravaram o 'sumiço' de seus entes queridos. "A polícia não vai intervir a menos que haja outro motivo, como um crime ou um acidente. Tudo o que a família pode fazer é pagar caro a um detetive particular", diz Nakamori.
Mas toda ação tem seus dois lados. Enquanto as pessoas buscam fugir das pressões de suas vidas atuais, suas 'evaporações' também causam efeitos naqueles que continuam sua rotina normalmente.
Afinal, como explicar para uma mãe que, de um dia para o outro, seu filho de apenas 22 anos decidiu que nunca mais voltaria para casa? "Eu fiquei chocada", disse a mulher, que preferiu não ter sua identidade revelada.
Certo dia, ela conta, parou de ter notícias sobre o filho. Ao ir até sua casa, notou que ele não estava mais lá. Ela ainda o esperou em seu carro por mais alguns dias, mas ele nunca voltou.
A polícia relatou que só poderia interferir no caso se existir alguma pista que leve a crer que ele tirou a própria vida. "Com a lei atual e sem dinheiro, tudo o que posso fazer é verificar se meu filho está no necrotério. É tudo o que me resta", diz arrasada.
O arrependimento, a tristeza e a angústia também acompanham muitas pessoas que optam pela 'evaporação'. No caso de Sugimoto, ele diz conviver com a constante sensação de que fez algo errado ao deixar sua esposa e filhos na cidade onde morava.
Não vejo [meus filhos] há um ano. Disse a eles que faria uma viagem de negócios", aponta.
Atualmente, o sujeito vive em uma região residencial de Tóquio. Mesmo com uma vida 'nova', ele diz que os rastros de sua vida antiga ainda o perseguem. "Só meu primeiro filho sabe a verdade. Ele tem 13 anos. As palavras que não consigo esquecer são: 'O que o pai faz da vida é problema dele, e não posso mudar isso'. Soa mais maduro do que eu, não?".