Responsável pela fomentação do futebol feminino nos anos 1930 e 1940, Dona Carlota Resende sofreu grave campanha de difamação que resultou em sua prisão por 48 horas
A história do futebol no Brasil todos conhecem: o paulistano Charles Miller retornou a terras tupiniquins, em 1894, após passar alguns anos estudando no Reino Unido. Em sua bagagem, ele trouxe duas bolas, uniformes e um livro de regras.
Foi o suficiente para fazer o futebol o esporte mais popular por aqui. Tido, hoje, como o mais democráticos da esfera esportiva, o futebol possui uma origem totalmente diferente no Brasil, sendo praticado pela elite branca e abastada.
A integração dos negros e mais pobres nos campos só foi conquistada sob muita luta e depois de vários anos. Imagina como seria a história da Seleção sem nomes como Pelé, Garrincha, Djalma Santos, Jairzinho, Carlos Alberto Torres, Ronaldinho Gaúcho, Vinícius Júnior…
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Mesmo assim, durante anos, grupos minoritários ou fora dos 'padrões sociais' de suas épocas sofreram — e sofrem — com as mentes retrógradas que ainda rondam o futebol. Um caso exemplar é do goleiro Barbosa. Ídolo do Vasco da Gamar, o arqueiro de pele preta foi crucificado pelo derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950.
Mas se para os homens a situação já atinge extremos, o que dizer do mesmo cenário para as mulheres? Afinal, elas foram proibidas de jogarem futebol durante quase quatro décadas: após decreto-lei estabelecido no Governo de Vargas, em 1941, a decisão só foi revogada em 1979. O futebol feminino só começou a ter a estruturação e reconhecimento que merecem nos últimos anos. Ainda longe do ideal, é claro.
Voltando ao assunto de campanhas difamatórias e apagamento de personagens essenciais para essa luta, é impossível não levantar o nome de DonaCarlota Resende — pioneira dirigente brasileira.
Os registros iniciais do futebol feminino no Brasil remetem aos anos 1920, quando as partidas não eram disputadas como jogos oficiais, mas sim como atrações circenses. O esporte feito para a elite branca passou a fazer sucesso entre mulheres periféricas no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Norte. Embora que de forma muito tímida.
Por conta de passarem a ocupar um espaço que não foi 'criado' para elas, os registros sobre o início do Futebol Feminino no Brasil são extremamente escassos. O monopólio da elite branca no esporte só começou a definhar na década de 1930, principalmente após a profissionalização do futebol em 1933.
Ainda assim, as mulheres ainda lutavam por seu espaço e tiveram no nome de DonaCarlota Resende uma porta-voz importante para esse crescimento. Moradora do bairro de Pilares, no Rio de Janeiro, DonaCarlota Resende foi uma importante dirigente esportiva da época.
Uma pessoa simples do subúrbio, à época na casa dos seus 60 anos, Dona Carlota era uma pessoa influente entre os homens que estavam envolvidos na organização do futebol nos bairros cariocas — sejam eles de várzea ou amadores.
A casa de Dona Carlota Resende, inclusive, havia praticamente se tornado a sede do Primavera A.C. — um dos principais times femininos da época. Além disso, ela havia "ajudado a fomentar a criação de uma dezenas de equipes femininas", aponta Aira Bonfim, mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com pesquisas dedicadas às práticas esportivas contra hegemônicas, em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História.
Em artigo ao site Torcedores.com, Aira Bonfim — que atuou quase uma década como pesquisadora no Museu do Futebol e hoje é curadora do espaço — escreve que o nome de Dona Carlota se tornou familiar para muitas jogadoras: era responsável por formar equipes em bairros e também era a responsável por coordenar festivais amadores de futebol aos finais de semana.
Mas o sucesso de Dona Carlota Resende incomodava. A coach-woman estava popularizando o Futebol Feminino. Suas atletas passaram a estampar manchetes de jornais e até mesmo a receberem dinheiro para realizarem jogos preliminares as partidas masculinos.
O Primavera A.C. recebeu convites para jogar fora do Rio de Janeiro. O empresário argentino Afonso Doce havia convidado a equipe para excursionar no Uruguai e Chile em 1941. Algo precisava ser feito para detê-la!
Ainda em 1940, campanhas de difamação foram feitas contra Dona Carlota Resende", relata Aira ao site Aventuras na História.
Cronistas e jornalistas da época passaram a acusá-la de aliciar suas atletas: o Futebol Feminino seria uma enorme fachada para casos de exploração sexual. "[Dona Carlota] passou a ser acusada de aliciar meninas pobres e ganhar dinheiro para fazê-las jogar; ou, em casos mais absurdos, de encaminhar essas atletas ao ambiente noturno, nas boates e, talvez, até na prostituição", aponta Bonfim.
"Tudo isso é colocado nos jornais. É uma associação direta entre a praticante do futebol desse período com esse universo considerado, no período, como uma baixa moralidade", explica a historiadora do esporte.
A casa de Dona Carlota Resende, na Rua Gaspar, número 45, passou a ser classificada como um 'antro de perdição'. Por conta disso, a dirigente chegou a ser presa por 48 horas em janeiro de 1941, recorda matéria do O Globo. Como consequência, a excursão foi cancelada logo em seguida.
A apunhalada final nas costas do Futebol Feminino aconteceu em abril de 1941, quando o artigo 54 do decreto-lei número 3.199 impediu as mulheres, no Brasil, de praticarem esportes considerados violentos e não condizentes com o que se esperava de uma mulher na época. Embora não tenha sido citado nominalmente, o futebol fazia parte desta proibição.
Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país".