Vinícius Jr. foi novamente vítima de racismo no último final semana. Até quando o futebol será conivente e omisso?
O futebol deveria ter sido um dos principais assuntos desses final de semana, afinal, a Europa vive sua fase final de temporada, com diversas equipes lutando pelos títulos de suas respectivas ligas ou para se manterem na elite de seus campeonatos.
Mas, lamentavelmente, a discussão foi outra. No domingo, 21, o Real Madrid foi até o Estádio Mestalla enfrentar o Valencia, mas a vitória do time mandante perdeu os holofotes para os atos racistas de sua torcida. A partida chegou a ficar paralisada por cerca de oito minutos após milhares de torcedores chamarem o brasileiro Vinícius Júnior de "mono" ('macaco').
Vinícius Jr. se revoltou com o acontecido e uma confusão acometeu parte dos jogadores madridistas e do Valencia. Um ato mais estapafúrdio aconteceu depois, quando o juiz da partida resolveu expulsar o brasileiro, que fora agredido por outros atletas do time da casa.
Segundo a própria LaLiga, esse é o nono caso de racismo registrado no Campeonato Espanhol, sendo o oitavo contra Vinícius Jr., que sempre manteve um posicionamento de luta contra as injustiças raciais.
Vinicius vem sendo vítima não só dentro de campo, mas principalmente fora dele. Presidente da LaLiga, Javier Tebas, foi conivente e omisso, preferindo atacar o atleta brasileiro pela confusão do que reconhecer os atos racistas dos espanhóis.
Ya que los que deberían no te explican qué es y qué puede hacer @LaLiga en los casos de racismo, hemos intentado explicártelo nosotros, pero no te has presentado a ninguna de las dos fechas acordadas que tú mismo solicitaste. Antes de criticar e injuriar a @LaLiga, es necesario… https://t.co/pLCIx1b6hSpic.twitter.com/eHvdd3vJcb
— Javier Tebas Medrano (@Tebasjavier) May 21, 2023
O Valencia defendeu seus torcedores, alegando ter sido poucos que propagaram a fala. Um gesto isolado. Já jornalistas questionaram se o brasileiro não iria se desculpar por toda a confusão. O Real Madrid, clube que Vinícius Jr. atua desde 2018, demorou horas para defender seu atleta.
Mas casos de racismo não são exclusividade do Campeonato Espanhol — embora sejam os mais coniventes. A federação italiana já foi criticada por promover uma campanha contra racismo utilizando macacos. Brasileiros já foram hostilizados na Rússia. O próprio Campeonato Brasileiro é marcado por casos de discriminação contra minorias. A grande pergunta que fica é: Por que o racismo ainda existe no futebol?
Em entrevista ao Aventuras na História, em parceria com o portal SportBuzz, em uma série de podcast especiais vinculados durante a Copa do Mundo de 2022, Marcelo Carvalho, fundador e atual diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, falou sobre a questão do racismo no futebol brasileiro.
"Não existe uma campanha efetiva de nenhum clube e de nenhuma federação, e de nenhum campeonato de combate ao racismo no futebol brasileiro e nunca existiu. O que a gente acompanha são ações pontuais", afirma.
"Hoje a gente tem muito mais clubes fazendo ações, mesmo que muitas vezes sejam ações midiáticas ou ações voltadas à questão financeira que seria uma venda de camisetas… Quando um clube participa disso, a gente acaba tendo um maior debate entre os torcedores, porque nem todos os torcedores concordam com as ações dos clubes, então gera um debate", pontua.
Marcelo, porém, ainda conta que um ponto importante que vem sendo monitorado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol: os clubes de futebol vem aumentando de diretorias ou de grupos de diversidade. Fora dos gramados, coletivos de torcidas também buscam fomentar essas causas.
"Hoje ainda tá muito preso a ações publicitárias e de marketing, mas eu creio que elaborando esses grupos e a gente pautando mais esse debate, a gente vai sair dessas ações de marketing e entrar de fato nessas iniciativas que vão ter resultado. Iniciativas de pensar diversidade, pensar inclusão. Acho que isso é um caminho que a gente tá trilhando", aponta.
Mas se, administrativamente e até mesmo entre torcedores, a luta por pautas raciais e de inclusão ainda tem um longo caminho a se percorrer. Como essa mesma discussão é vista pelos atletas?
Em agosto de 2022, durante a primeira edição do Seminário de Combate ao Racismo e à Violência no Futebol, o Observatório divulgou o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, que condiz com casos de racismo no esporte apenas em 2021.
Segundo os dados, houve 158 casos de discriminação no esporte brasileiro, sendo 124 ocorreram no meio do futebol. Deste montante, 74 deles são oriundos de ofensas racistas; 25 de descriminação contra a população LGBTQIA +; 15 casos de machismo e os dez restantes de xenofobia.
Com esses números alarmantes, Marcelo Carvalho explica uma questão crucial: afinal, por que poucos atletas brasileiros se posicionam em tais pautas?
"Quando a gente fala de posicionamento de jogador, a gente tem que lembrar o histórico do Brasil, que é um histórico de apagamento e silenciamento dos atletas que um dia falaram sobre racismo", explica.
Para pontuar sua fala, Marcelo recorda sobre o que aconteceu em 2014, na Arena do Grêmio, quando o goleiro Aranha, do Santos, foi alvo de racismo em partida válida pela Copa do Brasil. O episódio é um dos mais emblemáticos do futebol brasileiro.
O fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol explica que tanto o arqueiro santista quanto o árbitro Marcio Chagas tiveram suas carreiras encurtadas por relatarem o episódio de racismo.
"O Márcio teria ainda dez anos mais ou menos a possibilidade de apitar e o Aranha teria mais alguns anos jogando e os dois interrompem a carreira muito marcados por esse acontecimento que eles denunciaram. Isso é histórico do Brasil, então a gente não pode olhar para um atleta e achar que o atleta tem que falar e que o atleta vai falar sobre o racismo, não vai falar, porque ele sabe o que pode acontecer com a carreira dele, mas essa mudança nos clubes a gente tá percebendo que os atletas vêm quebrando o silenciamento", celebra.
Mário Lucio Duarte Costa, ou apenas Mário Aranha, foi vítima de um dos episódios de racismo mais marcantes do futebol brasileiro. Foi no segundo tempo do jogo entre Grêmio e Santos, pela Copa do Brasil de 2014, que o então goleiro do clube paulista foi alvo de parte da torcida gaúcha, que estava acomodada atrás do gol.
A denúncia do caso ganhou validação graças às câmeras da televisão, que registraram o momento em que ele foi hostilizado e chamado de "macaco".
Uma semana após o episódio, e depois de quase quatro horas de julgamento, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD, decidiu pela exclusão do Grêmio da competição pelo ato racista de seus torcedores, em uma decisão inédita no futebol nacional. O clube também foi multado em R$ 50 mil.
Marcelo explica que, desde então, a visão do atleta brasileiro sobre os casos de racismo dentro do esporte mudou. "O atleta, até ontem, entendia que sofrer racismo dentro de campo era parte do futebol, que 'aquilo que acontece no campo, morre no campo', era a frase que a gente sempre ouviu. Hoje, muitos atletas estão entendendo que racismo é violência e que o racismo não pode passar despercebido, não pode passar de forma silenciosa".
Naquele mesmo ano de 2014, Aranha voltou a jogar no estádio do Grêmio. Resultado? Passou a partida inteira sendo vaiado pela maior parcela dos gremistas nas arquibancadas. Por apenas denunciar uma prática de injúria racial, o goleiro não foi visto como vítima pelo lado tricolor.
Aranha, que hoje é escritor e ativista, fez a maior parte de sua carreira profissional como goleiro da Ponte Preta. Ele ainda defendeu as cores de outros importantes clubes do cenário nacional, como Atlético Mineiro, Palmeiras e Santos. Campeão do Campeonato Paulista do Interior, da Taça Libertadores da América, da Recopa Sul-Americana e da Copa do Brasil, ele encerrou sua carreira em 2018, pelo Avaí.
Também em entrevista ao Aventuras, em parceria com o SportBuzz, Aranha recordou o lamentável episódio ocorrido em 2014. "Pela agilidade da época, pelo clube que eu passava, o momento que eu passava, já como jogador experiente. Encaminhando-me para um final de carreira. Eu acho que tiveram alguns imprevistos, mas poucos. Olhando para o lado positivo, ele me deu a oportunidade de expor um trabalho que eu fazia desde a minha adolescência e que eu já fazia enquanto jogador, porém não tinha espaço de expor isso na mídia".
"Dizem que os jogadores sempre falam as mesmas coisas, dão as mesmas respostas, mas é porque as perguntas são sempre as mesmas. Principalmente, porque são direcionadas ao jogo. E a partir daquele momento, o microfone e atenção da mídia veio para mim para falar sobre outras questões. E aí eu acho que a população brasileira começou a perceber que existe algo mais em um jogador de futebol, existe um ser humano por trás daquele personagem", discorreu o ex-goleiro.
Em concordância com debate iniciado por Marcelo Carvalho, Aranha reitera que jogadores que se posicionam em pautas sociais podem sofrer com represálias em sua carreira. Por isso o assunto ainda é muito frágil dentro das quatro linhas.
"Primeiro que oportunamente os jogadores de futebol podem sofrer represálias muito grandes, podem colocar uma limitação em sua carreira, então é muito complicado. Aliado a isso tem o fato que o brasileiro, de um modo geral, não conhece sua história, a história real. Eles conhecem uma história fantasiosa, podemos dizer que o Brasil passou por um photoshop histórico e de que todos os eventos históricos do Brasil tiveram uma mudança. Então, o negro, ele não conhece sua história e quando ele se torna um ídolo, acaba não tendo conteúdo suficiente para se posicionar. O máximo que ele pode fazer é dizer que concorda ou não concorda e que repudia tais tipos de atitudes, mas isso baseado em sua vivência", explica Aranha.
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O ex-goleiro Mário Aranha, que hoje se tornou uma voz importante no debate racial no Brasil, aponta, porém, que o episódio sofrido por ele, em 2014, na Arena do Grêmio, não foi o único caso de racismo do qual foi vítima. Um episódio muito pior aconteceu em seus tempos de Ponte Preta, fruto de um preconceito enraizado em nossa sociedade.
"A minha carreira inteira eu tive que lidar com aquele estigma que foi implantado propositalmente por Barbosa de que pessoas negras não eram confiáveis para jogar no gol. Eu passei por vários episódios relacionados a isso, como dispensas de clube ou ser o melhor do jogo e não ser aprovado. Falavam: 'mas ele é negro e não vai vingar para que aprovar ele na avaliação'. Aconteceram outros casos também, mas como era outra época não tem como eu provar com vídeos, fotos ou testemunhas. É muito arriscado eu levantar nomes, situações, porque pode voltar contra mim de uma maneira muito pesada e que eu sei muito bem como esse sistema…, mas eu já fui muito humilhado. Já teve episódios piores do que o do Grêmio e que já aconteceram comigo dentro do futebol, mas por não ter provas, meios e um apoio acabou ficando por isso mesmo", aponta.
"Tem um que eu posso falar com mais tranquilidade, porque está na internet. Quando eu estava no time da Ponte Preta a polícia me confundiu com bandido, então fui espancado e algemado e preso. Depois foi tudo esclarecido e viram que eu era jogador e aí fui liberado. Então é assim, eu convivi com isso a minha carreira inteira e na minha vida toda. Desde que nasci e até agora. Se eu saio para fazer uma caminhada no bairro em que eu moro, as pessoas vão trocar de calçada ou se elas estão no portão de casa, vão entrar, então é uma coisa que não tem como escapar, isso independente da sua condição financeira", continua.
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Por anos, o Brasil e o mundo se negaram a debater o racismo no esporte, embora exemplos não faltem de atletas negros que superaram a barreira racial e se tornaram referências dentro de suas próprias modalidades. Pelé, Usain Bolt, Jesse Owens, que enfrentou Adolf Hitler…
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Por anos, Aranha salienta que a sociedade brasileira se negou a falar de racismo. "A gente tem o absurdo de muitas pessoas ainda hoje dizerem que o racismo não existe. Então era um tema que ninguém abordava, tanto as pessoas negras, que viam como um tema constrangedor, quanto as pessoas que não eram negras".
Não existe ou pelo menos não conheço uma maneira de resolver um problema sem falar sobre ele, sem debater esse problema”, finaliza.
O racismo no esporte brasileiro, na Espanha, ou em qualquer outro país, é um reflexo da sociedade. Enquanto grandes instituições, governos e federações continuarem tratando as vítimas como culpadas, casos de descriminação racial continuarão surgindo e devem ser combatidos.
Vinícius Júnior se tornou não só um exemplo de atleta dentro de campo, mas referência da luta pelos direitos dos negros também fora das quatro linhas. "Eu sou forte e vou até o fim contra os racistas".
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