Fundador da filosofia ocidental morreu por suas ideias – e elas não combinam com os valores políticos modernos
Um dos maiores jornalistas investigativos dos Estados Unidos, Isidor Feinstein Stone, ou Izzy Stone para os íntimos, acabara de se aposentar. Era 1971 e ele, embora começasse a sofrer de problemas cardíacos, não conseguia largar o vício de repórter, apurado por décadas chafurdando em documentos do governo americano sobre as guerras da Coréia e do Vietnã. Com o mesmo espírito curioso com que se dedicou ao jornalismo, Stone decidiu “cobrir” um dos casos mais importantes da humanidade: o julgamento de Sócrates, pai da filosofia ocidental, em 399 a.C.
O objetivo do jornalista era entender por que o filósofo fora condenado à morte pelas idéias que defendia, já que vivia em pleno berço da democracia e liberdade de expressão. “Como pôde Atenas trair seus princípios de tal modo?”, perguntava-se Stone. Para encontrar a resposta, passou uma década estudando freneticamente latim e grego arcaico. O esforço resultou em uma espécie de milagre jornalístico: um “furo de reportagem” quase 2400 anos depois do fato que o originou, descrito no livro O Julgamento de Sócrates. É possível entender a dimensão da descoberta reexaminando a imagem de Sócrates.
Um homem superior, que enfrenta a multidão ignorante com serenidade e senso de humor. Um verdadeiro santo profano. Foi essa a visão de Sócrates imortalizada por seu mais importante e famoso biógrafo, Platão. O discípulo não poupa talento literário ao descrever a sapiência e espirituosidade com que seu professor demolia as crenças dos cidadãos de Atenas. O Sócrates dos diálogos platônicos é um dos personagens heroicos mais bem construídos da literatura ocidental.
Nos escritos menos literários de outro de seus alunos, Xenofonte, Sócrates é “apenas” o mais sábio dos homens. Afirmou o Sócrates de Xenofonte: “Interrogava a meu respeito o Oráculo de Delfos. Respondeu Apolo que não havia homem mais livre, mais justo nem mais sensato que eu”. Depois de ouvir isso do Oráculo, a entidade mística pela qual os deuses falavam aos homens, Sócrates passou a questionar todos os cidadãos de Atenas para descobrir se a mensagem era realmente verdadeira. E começou a se comparar a uma parteira, capaz de trazer à luz os pensamentos de seus interlocutores.
Se o sujeito era um homem sábio, preocupado com o progresso intelectual de seus companheiros e que passou a vida inteira em busca da verdade e do conhecimento, por que então mandá-lo a julgamento como má influência para a juventude da cidade? Talvez porque o Sócrates histórico seja apenas uma sombra do Sócrates real.
A verdade mesmo é que Sócrates era um idiota. Mas a palavra “idiota” – derivada do grego idiotes – não tinha naquela época o significado de hoje. Na Grécia clássica, idiotes era usado para designar os cidadãos que não participavam dos debates políticos da cidade. E Sócrates, que não costumava elevar a voz nas assembleias públicas e desdenhava o debate, certamente era considerado um. Só que isso, embora mal visto na Grécia, não era razão para condenar ninguém. Os motivos que levaram Sócrates ao tribunal foram mais complexos.
Sócrates era um homem feio, narigudo e desleixado. Andava sempre descalço e usava apenas uma mesma túnica durante o ano inteiro. Pai de três filhos, desprezava sua esposa Xantipa, a quem chamava de megera. Chegou aos 70 anos sem nunca ter tido um único trabalho. Passava os dias no ócio, conversando e bebendo com os amigos. Apesar disso, criticava os sofistas, os professores de retórica e filosofia que cobravam para dar aulas. Também desprezava todo tipo de trabalho manual, a exemplo dos aristocratas da época.
Segundo Stone, registros mais populares da Grécia revelam um outro Sócrates. “Os fragmentos que chegaram até nós da chamada comédia antiga ateniense do século 5 a.C. mostram que seus concidadãos sempre o consideraram um excêntrico, um esquisitão, embora simpático, um ‘personagem’ local. Era assim que o viam seus contemporâneos, e não pelas lentes douradas dos diálogos platônicos”, escreve.
Além disso, os “questionamentos socráticos” nem sempre eram bem-vindos. Não eram todos os que gostavam de ser interpelados em público por Sócrates, muitas vezes visto como arrogante por lançar-se na missão que recebera do Oráculo de Delfos – que ele dizia comunicar-se pessoalmente com ele – de testar a inteligência alheia. “A missão divina que o oráculo lhe impôs seria na época o que hoje chamamos de egotrip”, escreve Stone. E seu método de trazer à luz os pensamentos dos outros, à semelhança de uma parteira, também nem sempre era bem-sucedido. “No Laques, como em tantos outros diálogos platônicos, Sócrates sufoca-os um por um à medida que emergem do útero dialético. A parteira parece ser perita em abortos.”
Mas também não foi por aborrecer cidadãos em público que Sócrates foi parar no tribunal. Isso era fichinha para os gregos, acostumados a ser parodiados e criticados até nas peças públicas de teatro. O problema de Sócrates não era a liberdade que tinha em relação aos outros. Na verdade, o que fez dele um réu foi o contrário: suas críticas em relação à liberdade alheia.
A Atenas do século 5 a.C. tinha um oponente econômico, político e militar bem claro: Esparta. Cidade em que a disciplina dos guerreiros era muito mais valorizada que a liberdade de expressão, Esparta representava tudo o que os políticos democráticos de Atenas mais detestavam. No entanto, diversos episódios de golpes contra a democracia ateniense ocorreram nos anos 411, 404 e 401 a.C. E em todos eles estavam envolvidos políticos simpáticos aos ideais espartanos, vários deles alunos de Sócrates. “Entre os discípulos de Sócrates, contavam-se Crítias e Alcibíades, e ninguém causou tantos males ao Estado quanto eles”, escreveu Xenofonte. As teorias antidemocráticas estavam tão identificadas com Sócrates que o dramaturgo Aristófanes chegou até a descrever assim os jovens aristocratas atenienses alinhados a Esparta: “Laconômanos, andavam cabeludos, famélicos, sujos, socratizados, com porretes nas mãos”.
A situação de Sócrates ficou ainda pior por ele não ter feito absolutamente nada nos períodos de golpe político em Atenas. “O homem mais tagarela de Atenas calou-se quando sua voz era mais necessária”, escreve Stone. Se levarmos em consideração o autoritarismo da obra política de Platão, a posição do filósofo fica quase indefensável. Para entender o grau de autoritarismo de seu pensamento, basta ler o que o Sócrates platônico diz sobre o método mais rápido e fácil de formar a sociedade ideal: “Todos os habitantes com mais de 10 anos de idade serão enviados para o campo, e os reis-filósofos se encarregarão das crianças, subtraindo-lhes os costumes de seus pais e educando-as segundo seus próprios costumes e leis”. A respeito dessa ideia excêntrica, que na verdade pode pertencer mais a Platão que a Sócrates, afirma Stone: “Um método fácil? Só mesmo um solteirão como Platão, que nunca na vida trocou uma fralda, poderia levar a sério uma proposta dessas”. Foram idéias assim, influentes junto aos jovens, a principal causa de Sócrates ter ido a julgamento.
O ano é 399 a.C. Um homem de 70 anos entra no tribunal de Atenas, acusado de desrespeitar os deuses da cidade (por ter um oráculo pessoal, a comunicação direta com Delfos) e, principalmente, por corromper a juventude ateniense. Diante do júri, preocupa-se mais em ironizar seus acusadores e desmoralizar os atenienses que em se defender da acusação. Veredicto: culpado, por uma vantagem pequena de votos. Penas possíveis: banimento da cidade ou morte. Antes de a pena ser anunciada, Sócrates ironiza ainda mais o júri. Pena final: morte, por maioria esmagadora de votos.
Depois de um julgamento completamente atípico, restou uma pergunta a ser respondida. Quem foi realmente julgado: Sócrates ou a democracia ateniense? “Sócrates pura e simplesmente queria morrer”, afirma Stone. Daí o motivo pelo qual não fez nada para se defender. Apesar das idéias antidemocráticas e da crença em um oráculo pessoal, não cometera nenhum crime além de expressar livremente seu pensamento. Segundo Stone, se tivesse usado esse fato como argumento, provavelmente seria absolvido. Mas Sócrates não acreditava na expressão livre do pensamento, e preferiu a morte à incoerência. Sócrates morreu sem negar o que acreditava. Mas a democracia grega negou seus próprios valores ao condená-lo. “Uma nódoa indelével manchou o nome da democracia. É esse o crime trágico de Atenas”, diz Stone.
Um tribunal composto de 500 jurados e três acusadores foi o palco do famoso episódio. “Nenhum outro julgamento, à parte o de Jesus, deixou impressão tão forte na imaginação do homem ocidental quanto o de Sócrates”, escreve Stone. O “pai da filosofia” foi acusado de corromper a juventude ateniense e desrespeitar os deuses da cidade. Tudo o que temos para entender o que se passou ali vem de relatos posteriores. Não se conhecem os argumentos da acusação nem os autos do processo. Mas sabe-se muito bem quem mais sofreu naquele dia: a democracia ateniense.
Sócrates negou-se a abandonar a cidade antes do julgamento e não quis o auxílio de nenhum advogado para enfrentar a acusação. Passou todo o julgamento atacando os acusadores, as instituições atenienses e até mesmo o próprio júri. Como resultado, recebeu o veredicto máximo: morte por envenenamento com cicuta.
Platão, aluno mais brilhante e influente de Sócrates, assistiu ao julgamento inteiro de seu ídolo. Depois escreveu a principal obra a respeito: Apologia. Traumatizado com o tratamento dado a seu mestre, e temendo o mesmo futuro para si, abandonou Atenas assim que o julgamento terminou. Os principais cidadãos de Atenas uniram-se para acusar Sócrates. Lícon representava os oradores. Meleto, os poetas. E Ânito, os artesãos e líderes políticos. A acusação de Ânito pode ter sido motivada por uma ofensa de Sócrates: “Predigo que o filho de Ânito não permanecerá no ofício servil em que seu pai o colocou”.
O júri, formado por 500 pessoas sorteadas entre a população ateniense, condenou Sócrates por poucos votos de diferença: 280 a 220. Mas, depois de Sócrates pegar pesado na ironia no momento da definição da pena, mais 80 jurados votaram a favor da pena de morte. Placar final: 360 x 140.
O Julgamento de Sócrates, Isidor Feinstein Stone, Companhia das Letras