Presidente deposto no Golpe de 64 era considerado inimigo do Governo
Publicado em 14/11/2021, às 00h00 - Atualizado em 11/02/2022, às 10h00
46 dias antes de ser assassinado, em 22 de novembro de 1963, o presidente americano John Fitzgerald Kennedy conversou por telefone com o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, sobre uma possível intervenção política dos EUA no país sulamericano.
“Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar”, questionou o 35º presidente dos Estados Unidos, como mostra vazamentos divulgados pelo jornalista e colunista da Folha e do O Globo Elio Gaspari no portal Arquivos da Ditadura. A conversa também é retratada no documentário ‘O Dia que Durou 21 Anos’, do diretor Camilo Tavares.
“Até onde a historiografia pode pesquisar, pois muitas fontes ainda continuam ‘classificadas’ (secretas), sabe-se que Kennedy foi convencido pelo Departamento de Estado e pelo embaixador Lincoln Gordon a incrementar um plano de desestabilização do governo Goulart em meados de 1962”, explica Marcos Napolitano, professor titular de História do Brasil da Universidade de São Paulo (USP) e autor de ‘1964: História do regime militar brasileiro’ (Editora Contexto), em entrevista ao Aventuras na História.
Segundo Napolitano, as eleições de outubro de 1962 foram alvo de grande atenção do governo norte-americano, que financiou e apoiou vários candidatos anticomunistas e antinacionalistas.
“A ação dos Estados Unidos contra o presidente João Goulart se baseava em uma doutrina da geopolítica norte-americana para a América Latina durante a Guerra Fria que entendia a ascensão de lideranças nacionalistas apoiadas pelas esquerdas, sobretudo pelos comunistas”, continua.
No auge da Guerra Fria, a preocupação americana era de que governos nacionalistas dificultassem os interesses da nação no continente. Depois da Revolução Cubana, descrita por Marcos como “mais nacionalistas e anti-imperialista do que propriamente socialista”, esse medo se tornou ainda maior, ainda mais pelo fato de Goulart ser visto pelo governo de Kennedy como uma liderança “pouco confiável”.
"João Goulart não era comunista”, ressalta o professor. “Ele estava mais para um político moderado de esquerda, mais preocupado com políticas de inclusão social e retomada do desenvolvimento econômico em bases mais nacionalistas, mas ainda assim muito longe de defender uma economia autárquica sem conexões com o capitalismo internacional”.
Em 1964, durante seu discurso de abertura do ano legislativo, o governo de Jango tentou detalhar um pouco mais o que seria seu projeto de Reformas de Base (que envolveriam as áreas agrária, eleitoral, fiscal, política, educacional, entre outras). “Mas aí veio o golpe, e o Congresso Nacional brasileiro já estava dominado pelos grupos anti-Goulart”.
Marcos Napolitano diz que uma questão divide os historiadores até hoje: o motivo de Jango não ter resistido ao Golpe de 64. “À época, foi um fator de crise das esquerdas, implodindo o trabalhismo e o Partido Comunista Brasileiro”.
Para tentar explicar esse episódio, o professor cita duas linhas de pensamento: a primeira, baseada em estudos do historiador Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que acredita que os movimentos de esquerda "capitularam", ou seja, decidiram não lutar ou resistir aos militares, já que imaginavam que o movimento seria passageiro e a vida política seria restaurada o quanto antes, como foram com os golpes de 1945, 1954 e 1961.
Já Jorge Ferreira, historiador da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) e principal biógrafo de João Goulart, entende que o presidente abriu mão da luta pois fora informado por Afonso Arinos, ex-chanceler, que os Estados Unidos apoiariam um plano de invasão em caso de Guerra Civil.
“Pessoalmente, acho que houve um cálculo por parte das lideranças depostas, de que seria melhor esperar os acontecimentos do que organizar uma resistência civil, fatalmente liderada por brizolistas e comunistas. Esta opção tinha um fator de imprevisibilidade muito grande, pois se você arma uma população de trabalhadores, como você consegue desarmá-los, posteriormente?”, questiona Napolitano.
“Lembremos que, apesar da retórica agressiva de algumas lideranças nacionalistas como Brizola e Francisco Julião (representante das Ligas Camponesas) não havia movimentos armados de esquerda no Brasil de 1964, ao contrário do que as narrativas negacionistas e mentirosas da internet sugerem. Havia, basicamente, a aposta em um processo político, de mobilização social e parlamentar, que não deu certo”, completa.
O que se sabe, de fato, é que após o Golpe de 31 de maio/1º de abril, Jango foi obrigado a se exilar. Além do Uruguai, o ex-presidente também morou na Argentina, onde morreu por conta de um ataque cardíaco em 6 de dezembro de 1976, aos 57 anos.
Porém, desde então, diversos fatores levaram a uma incredulidade quanto à versão oficial. Segundo recorda matéria da BBC, por exemplo, após seu falecimento, João Goulart não passou por uma autópsia e foi levado diretamente para São Borja, no Rio Grande do Sul, onde foi enterrado com o caixão fechado.
Muito especulou-se se o ex-presidente realmente teria falecido por conta de um problema no coração, uma enfermidade que ele já carregava há anos, ou se fora envenenado em uma ação da Operação Condor, que orquestrou diversos golpes militares na América do Sul a partir da década de 1960.
O que ajudou a fomentar essa teoria foi a declaração do ex-agente uruguaio Mario Barreiro Neira, em 2002. Ele disse que Jango foi morto em uma ação conjunta entre o governo brasileiro, uruguaio e norte-americano.
"É verdade que Goulart era vigiado, e que várias lideranças políticas democráticas tiveram mortes suspeitas nos anos 1970, como Juscelino Kubitschek, o que reforçou esta ‘teoria da conspiração’. Mas ele havia se retirado da vida política e já não incomodava os militares (ao contrário de JK e Brizola, tidos como inimigos ativos do regime)”, explica Napolitano.
Marcos cita que outros estudiosos do assunto, como o prof. Jorge Ferreira, principal biógrafo de João Goulart, e Luiz Alberto Moniz Bandeira, outro pesquisador assíduo de Jango, tampouco acreditam nesta possibilidade.
Para tentar sanar qualquer tipo de dúvida, o corpo de Jango foi exumado em 13 de novembro de 2013, após decisão estabelecida em maio daquele ano pela Comissão Nacional da Verdade.
Os resultados da perícia, divulgados no final daquele ano, foram classificados como inconclusivos, visto que a substância que poderia ter causado o envenenamento do ex-presidente já teria se deteriorado.
Além disso, como o coração já não existe mais, ele não pode ser periciado. Desta forma, não foi possível nem descartar e muito menos afirmar que tal teoria é verdadeira.
“Sobre este tema, as fontes historiográficas não são contundentes, nem conclusivas... Mas, como historiadores, precisamos ter muito cuidado com depoimentos de agentes da repressão, pois eles são treinados para mentir, e tendem a valorizar seu papel na história para conseguir vantagens em processos criminais por violação de direitos humanos”, conclui Napolitano.