Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero deu o pontapé à Reforma Protestante ao publicar suas 95 Teses; mas a história pode ser diferente
Publicado em 04/11/2024, às 14h00
Em meados do século 16, corria em parte da Europa uma forte insatisfação com a Igreja Católica, vista como rica e corrupta. Foi neste contexto que, em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano e professor de teologia alemão, Martinho Lutero, divulgou suas "95 Teses", o que serviu como pontapé para a Reforma Protestante.
Foi com esse movimento reformista cristão que ocorreu a divisão do Cristianismo no ocidente, de forma que surgiram novas doutrinas e ramificações como o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo, além de outros reformismos religiosos na Europa, também impulsionados por razões políticas e econômicas, levando a Igreja Católica a perder parte de seu poder.
Uma narrativa comum sobre o início da Reforma Protestante é que, no fatídico 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero caminhou até a igreja do castelo em Wittenberg, na Alemanha, e afixou suas "95 Teses" na porta.
Esse ato de clara revolta é o que teria servido de chama da Reforma, e é considerado um momento chave na história, sendo um símbolo da resistência à Igreja Católica mesmo mais de 5 séculos depois.
No entanto, o que aprendemos na escola, e em muitos livros de História, pode não ter sido exatamente como aconteceu, e muitos historiadores ainda questionam se Lutero realmente pregou suas teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg.
Segundo conta o professor Andrew Pettegree, especialista em Reforma da Universidade de St. Andrews, da Escócia, à revista Time, "é muito, muito improvável que o drama de Lutero caminhando por Wittenberg com seu martelo e seus pregos tenha acontecido".
A porta da igreja do castelo era o quadro de avisos normal da universidade. Isto não foi um ato de desafio por parte de Lutero, foi simplesmente o processo para fazer uma publicação formal. Provavelmente teria sido colado na porta em vez de pregado", complementa.
Já Peter Marshall, historiador em Reforma da Universidade de Warwick, da Inglaterra, teoriza até mesmo que as Teses nunca nem mesmo foram grudadas, e que, na verdade, essa história foi inventada posteriormente apenas para satisfazer as necessidades políticas dos luteranos.
É possível que Martinho Lutero tenha escrito uma carta a Alberto de Brandeburgo, então arcebispo de Mainz, marcando à ruptura com a Igreja Católica.
"O incidente foi registrado pela primeira vez quase 30 anos depois. O próprio Lutero nunca mencionou isso. Houve pouca discussão sobre a afixação das Teses antes do primeiro aniversário da Reforma de 1617", disse o historiador.
Em 1617, no primeiro centenário da Reforma Protestante, a Guerra dos Trinta Anos estava prestes a acontecer, e parte da Europa estava em grande efervescência. Assim, celebrações pelo centenário, organizadas por um governante da Renânia, foram feitas, pensando em aumentar suas chances em uma possível luta contra os Habsburgos, católicos.
Ao longo dos séculos, essas celebrações memoriais de centenários da Reforma foram, repetidamente, carregadas também por outros significados. Em 1917, no 400º aniversário, por exemplo, a Primeira Guerra Mundial já estava em curso, e segundo Marshall, os alemães viam as publicações das Teses de Lutero "como uma ação essencialmente alemã e nacionalista". Por isso, essa ideia foi usada para reforçar o nacionalismo e o moral dos alemães ao longo da guerra.
Os nazistas também se apropriaram da imagem da publicação das Teses para seus próprios fins. Eles se viram derrubando uma velha ordem corrupta", acrescenta Peter Marshall.
Andrew Pettegree conta à Time que, ironicamente, o próprio Lutero não gostaria de ser lembrado como um revolucionário que derrubou uma velha ordem, e que, talvez, nem mesmo pretendia iniciar uma "Reforma" com as suas Teses de 1517. "Lutero sempre se considerou um bom católico", afirma o pesquisador.
+ Há exatos 502 anos, Papa Leão X excomungava Martinho Lutero
Em 2016, no 499º aniversário da Reforma, o papa Francisco reuniu-se aos líderes da Federação Luterana Mundial, na Suécia, onde se reuniram para relembrar os 500 anos da divisão da Igreja Católica. Na ocasião, as instituições pretendiam usar a data para sinalizar não um "enfraquecimento" de uma igreja, mas sim uma ruptura com o passado, determinante nelas todas.
Temos a oportunidade de consertar um momento crítico da nossa história, indo além das controvérsias e desentendimentos que muitas vezes nos impediram de nos entendermos uns aos outros", disse o papa Francisco à congregação na época.
"Suponho que o perigo dos aniversários seja que eles podem servir para reforçar mitos e narrativas arraigadas do passado, em vez de nos encorajar a olhar de uma forma nova para eventos e processos históricos", pontuou Marshall, por fim.