Quando um incêndio começou no Boeing 707, o músico pensou rápido e tomou uma atitude crucial
No ano de 1973, o brasileiro Ricardo Trajano tinha 21 anos de idade e era estudante de engenharia em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Um jovem de elevada estatura - media 1,9 metros de altura - que sonhava bem alto. Músico e roqueiro, já tocara em várias bandas, e resolveu em nome dessa paixão que queria viajar até Londres.
Na época, a cidade inglesa era considerada "a Meca do rock" - nas palavras do próprio Ricardo. Só que aquele destino sagrado acabou levando o rapaz não ao céu, mas ao inferno: ele embarcou no voo da Varig, que terminou de modo trágico, com um pouso de emergência em Orly, na França. O resultado foi que a aeronave entrou em chamas, ceifando 123 vidas.
Ricardo, o único que desobedeceu às regras da tripulação, foi também o único entre os passageiros que acabou se salvando (entre os 11 sobreviventes somente ele era passageiro). Só que seu estado de saúde o deixou por um fio - estava tão mal que os médicos não lhe davam mais do que uma semana de vida.
Embarque
Aquele era o primeiro voo da vida do músico. A situação era bem animadora, mas o rapaz já estava com uma pulga atrás da orelha logo no momento do embarque no Boeing 707, da Varig. "Eu tinha lido que a cauda do avião ficava mais protegida em acidente aéreo, então decidi me sentar atrás", relatou ele, à BBC.
Porém, Ricardo teve que sentar na penúltima fileira, logo à frente da tripulação, para quem os últimos assentos já estavam reservados. Todos sabiam que o voo faria uma escala já prevista no Aeroporto de Orly, em Paris, França.
Porém, mal imaginavam o que estava prestes a ocorrer ao chegarem na região. Um incêndio começou de repente num dos banheiros do fundo do avião (o provável motivo: uma bituca de cigarro). Isso faltando apenas 5 minutos para o pouso.
"Uma fumaça branca começou a sair do banheiro atrás de mim. Os passageiros sentados atrás notaram, e os comissários, também. Um deles veio com um extintor e tentou apagar o fogo, mas eu vi que a fumaça não estava diminuindo", relembrou Ricardo.
O transgressor
Enquanto o avião descia e os outros passageiros estavam sentados e presos aos seus cintos, notando o que estava ocorrendo dentro da cabine, o rapaz saiu de seu assento e seguiu caminhando para a frente da aeronave. Tal atitude não era recomendada pela tripulação.
Porém, mesmo assim, Ricardo resolveu seguir andando. Um comissário o repreendeu. "'Rapaz, o que você está fazendo aqui? Vai sentar no seu lugar, você não pode ficar aqui, em pé!'", teria dito o funcionário.
Seguindo o que chamou de instinto, o passageiro ignorou mais uma vez completamente as ordens. "Eu podia ter voltado. E se eu não tivesse feito essa transgressão, eu provavelmente não estaria aqui hoje", afirmou.
Mortes
A situação começou a piorar. A fumaça ficou mais densa e negra. Vários passageiros começaram a morrer sentados e conforme as substâncias tóxicas chegaram na frente do avião, onde Ricardo estava, os comissários começaram a se calar.
"Eu senti que eles estavam morrendo porque pararam de falar. Eu não via mais de um palmo na minha frente. Estava tudo negro. Eu fechei o olho. O que me ajudou muito é que eu fiquei calmo. Veio aquele flashback na minha cabeça, me despedindo da vida, dos amigos, da minha família", recordou Ricardo.
Comissários começaram a se refugiar na cabine, em desespero. Um deles, segundo o rapaz, teria até mesmo solicitado ao piloto que jogasse o avião no chão para acabar com o sofrimento de todos.
Porém, os comandantes do avião permaneceram resilientes. Não dava mais tempo de chegar até o aeroporto de Orly, então tomaram uma atitude drástica. O comandante Gilberto Araújo fez um pouso forçado, acima de uma plantação de cebola. Quando o estrondo ocorreu, Ricardo apagou.
Primeiro-socorros
Os destroços do avião eram tão perigosos que as equipes demoraram entre dez a quinze minutos para chegarem até a zona de destruição. O teto da aeronave caiu sob as pessoas. Muitas delas teriam sobrevivido se não fosse isso, mas acabaram morrendo carbonizadas.
Uma placa de metal grande, parte da fuselagem, caiu sob Ricardo, o ferindo nas costas, nádegas e coxas. Ele foi socorrido ao chegar no hospital e ficou 30 horas em coma. O rapaz não tinha nenhum documento para identificá-lo.
"Pedi uma folha (de papel e uma caneta). Esse bilhete, eu posso dizer que psicografei. Eu estava desacordado, mas peguei uma caneta e com uma letra de criança, toda tremida, coloquei os telefones, o nome do meu pai, (meu) endereço", afirmou.
Apesar dos esforços, o nome de Ricardo não foi encontrado na lista dos tripulantes logo de primeira. Mas, os atendentes olharam a lista de passageiros e lá o identificaram. Ele permaneceu então 52 dias no CTI (Centro de Terapia Intensiva) do hospital na França.
Suas vias aéreas ficaram todas queimadas e os médicos não acreditavam que ele sobreviveria. Porém, depois de dois meses no hospital, as queimaduras começaram a cicatrizar. Assim que recebeu alta naquela instituição de saúde, a equipe médica francesa o enviou de volta para o Rio de Janeiro.
Superação na terra prometida
Apesar do grande trauma que passou, Ricardo quis voltar de avião e retornou em um compartimento separado. Corajosamente, se recusou a tomar remédios ou calmantes pra dormir durante o voo. Chegando no Brasil, o rapaz ficou mais um mês no hospital.
Um ano depois, ele retornou à mesma agência da Varig onde havia comprado sua passagem para o voo que acabou em tragédia. Queria completar a viagem interrompida. A atendente o reconheceu e o abraçou, em um gesto solidário.
Ricardo finalmente viajou. Decolou na companhia do fotógrafo e apresentador de rádio Maurício Valadares. Chegou em Londres em segurança e assistiu os shows de rock que tanto desejou. Foi até o Rainbow Theatre, no Royal Albert Hall, e até no Marquee, que foi fechado anos depois. "Fiquei doidão vendo as bandas - ali era o templo (do rock), né?", disse.
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