Com toque de nostalgia, 'Eu, Christiane F., 13 anos, Drogada e Prostituída' volta aos cinemas 40 anos depois
É quase que impossível não conhecer um brasileiro que saiba do enredo por trás de 'Eu, Christiane F., 13 anos, Drogada e Prostituída'. O filme alemão relata a perturbadora história real de Christiane Felscherinow, uma adolescente de 13 anos que se perde ao frequentar clubes de Berlim e se envolver com as drogas.
Entrando para a história como um dos mais polêmicos filmes da história, a obra cinematográfica eternizou a saga da jovem que precisou se prostituir para bancar seu vício em heroína. A Rolling Stone Brasil repercute uma entrevista da atriz Natja Brunckhorst, que protagonizou o filme aos 13 anos, e hoje é diretora e roteirista. Na conversa, ela relembra os principais momentos que marcaram as gravações do polêmico filme.
Natja Brunckhorst relembrou como surgiu o convite para participar do filme. Ela disse que a equipe buscava 'meninas magras' para um filme.
“Estava sentada no pátio comendo uma maçã. Uma mulher chega em mim e diz: ‘Ei, estamos buscando meninas magras para um filme. Você não tem vontade de fazer o teste?’ Então eu disse: ‘Hum. Se for necessário’. Uma típica berlinense, levemente mal-humorada. Depois [do teste] sumi por um tempo e eles ficaram desesperados me procurando. Me passaram do papel da irmã para o da Christiane. E não sabiam onde me achar. Foi um caos. Mais tarde, apareci de pés descalços e tudo se resolveu.”
Retratando uma história marcada pela tragédia, muitos costumam imaginar que as gravações representaram um momento ruim para a atriz, no entanto, ela diz que foi o contrário.
“Já me perguntaram se foi ruim filmar o longa. Costumo dizer que não. Foi muito divertido. Ninguém entende, mas é atuação, você está em um ambiente protegido. Tem comida gostosa no set. Eu tinha uma assistente a quem podia dizer, no meio da noite na Bahnhof Zoo [a estação de metrô de Berlim usada como locação], ‘Você pode me trazer um chocolate com chantilly?’ Um sonho, eu queria aquela vida até hoje.”
Enquanto rodava uma cena na qual a equipe não estava perto da atriz, Natja Brunckhorst quase vivenciou um pesadelo ao se deparar com um carro que não fazia parte do filme.
“Teve um momento em que percebi a realidade. Foi na cena que filmamos com uma lente de longa distância [a equipe estava toda longe] na Kufürstentrabe, no ponto da prostituição infantil. Eu estava ali e me disseram: ‘Natja, vai parar um carro e você vai entrar nele’. ‘Certo’, respondi. Fiquei à espera. Veio um carro, eu me aproximei quase entrando, quando vi com o canto do olho a equipe correndo na minha direção e gritando: ‘Natja!’ Vi que tinha algo errado. Era um cliente de verdade. E eu quase entrei naquele carro. Foi o único momento, durante toda a filmagem, no qual me deparei com aquela realidade. E me dei conta: ‘Ah, isso existe de verdade, estou aqui de verdade’. Pensei muito sobre. E também gravei em oito banheiros, todos reais. O cenógrafo limpava todos – para que pudéssemos entrar – e depois sujava com chocolate para que parecesse bem sujo.
Quem assiste ao filme talvez se pergunta como Natja incorporou Christiane Felscherinow. Na entrevista, ela destaca os 'truques' usados durante as gravações para dar o ar de realidade.
“Eu nunca tinha usado drogas. Antes de fazer este filme, tinha visto um viciado só uma vez. Ele dormiu uma noite na nossa República. E li o livro Christiane F... independentemente do papel. Eu sabia coisas básicas de como era. E tínhamos alguns truques que ainda vejo em algumas cenas – como os momentos com os olhos meio abertos ou quando ela está em abstinência - que é como se você tivesse uma gripe forte. Em algumas cenas pingaram algo nos meus olhos para diminuir ou aumentar as pupilas. Insinuaram que eu conhecia o assunto – o que não é verdade. Era sempre chamada para talk shows como ‘especialista’. E dizia: ‘Ei, eu estava atuando’. Ser atriz é muito legal porque posso viver aquilo que não quero fazer na vida real.”
O relato da atriz sobre o filme também conta com uma memória sobre como lidou com o medo que tinha de seringas, algo que não tinha como escapar num filme que narra a história de uma garota perdida em um mundo de drogas.
“Tinha um medo enorme de seringas. Desde sempre, ainda tenho. Ou seja, se tentassem se aproximar com uma seringa, não deixaria que chegassem nem perto. Para as cenas de longe, o maquiador fez algo incrível. Ele cortou a ponta da agulha, lixou. E quando alguém aperta algo plano na pele parece que está entrando porque a pele cede um pouco. E ele colocou uma mangueirinha atrás da seringa - para que pudéssemos injetar algo ou puxar no sentido contrário. Já as cenas em que a câmera estava bem próxima, dava para ver claramente que a agulha era pontiaguda. Nestas – como o momento em que ela faz a tatuagem - foram rodadas por um dublê. Meu irmão quem fez. E ele recebeu 50 marcos por agulhada. Para ele era muito dinheiro.”
Natja também revelou a tensão por trás das cenas que simulavam sexo, aglo que representou um desafio para a equipe.
“Meus pais eram de 1968. Cresci em uma República, então falávamos de sexo o tempo todo. Mas no filme surgiu outro sentido, outro tipo de vergonha. Tínhamos que deitar na cama e, de repente, todo mundo sumia no set. Não fazia ideia de que podia ser algo tão travado. Então o Uli [Edel, diretor do filme] disse: ‘Vamos gravar a cena do coito’. ‘Coito’, tive que pensar o que era isso. Achava que podia ser uma gíria da Bavária para sexo. A vergonha deles era mais desagradável do que as cenas em si.”
A atriz que hoje também é diretora revelou algo que pode despertar a curiosidade de muitos. Afinal, ela conheceu a Christiane da vida real? Bom, por mais surpreendente que seja, o encontro cara a cara aconteceu apenas uma vez.
“Realmente a encontrei uma vez pessoalmente. E foi só esta vez. Foi durante um show, eu já tinha 16 anos. Mal conversamos – porque a música estava alta. Mas agradeço a Christiane porque, por causa dela, estou aqui, hoje sou diretora e escrevi roteiros nos últimos 20 anos. Se não fosse pela sua vida, talvez hoje eu fosse professora de matemática, o que também não é um trabalho ruim.”