Análise tem como base os dados da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que reconheceu 434 pessoas como mortas ou desaparecidas pelo Estado brasileiro
Homens jovens, estudantes e moradores das capitais São Paulo e Rio de Janeiro compõem o perfil predominante das vítimas oficialmente reconhecidas da ditadura militar brasileira, segundo levantamento divulgado pelo Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
A análise tem como base os dados da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que reconheceu 434 pessoas como mortas ou desaparecidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988.
Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, no entanto, alertam que o número real de vítimas é provavelmente muito maior — e que o retrato atual tende a invisibilizar o impacto da repressão sobre outros grupos sociais.
O período mais violento identificado foi entre 1969 e 1978, auge do regime após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), com 351 mortos e desaparecidos. Mas o estudo também aponta episódios de violência anteriores ao golpe de 1964, indicando que a perseguição política já existia.
Mesmo nos últimos anos do regime, entre 1979 e 1985, quando o país se encaminhava para a abertura política, foram registradas 20 mortes, o que demonstra a persistência da repressão até o fim do ciclo autoritário.
Segundo o ObservaDH, 82,5% das vítimas estavam vinculadas a organizações políticas. Os filiados a partidos representavam 37,3% do total; sindicalistas, 4,1%; já os que não tinham filiação somavam 17,5%.
A maioria das vítimas era formada por estudantes (140), seguidos de operários (57) e trabalhadores rurais (30). Jornalistas e professores aparecem com 28 vítimas cada.
A média de idade das pessoas mortas ou desaparecidas era de 32,8 anos — 77,4% tinham entre 18 e 44 anos. O levantamento ainda revela cinco vítimas com idades entre 12 e 17 anos, além de uma criança com menos de um ano.
As mulheres representaram 11,8% do total (51 vítimas), número pequeno, mas que cresceu proporcionalmente no fim do regime. Entre 1979 e 1985, elas chegaram a representar 35% das mortes. O estudo aponta ainda que 68,7% das mulheres mortas tinham até 29 anos — entre os homens, essa faixa etária respondia por 48,3%.
A repressão também teve forte concentração geográfica. A maioria das mortes ocorreu em capitais, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, que somam 47,2% dos casos. Pará, Maranhão e Tocantins aparecem em terceiro lugar, com 70 vítimas, em razão da Guerrilha do Araguaia. Crimes também foram registrados fora do país, em países como Chile e Argentina.
Apesar da importância dos dados, historiadores alertam para as limitações do levantamento. À Folha, Gabrielle Abreu, historiadora e gerente de memória no Instituto Marielle Franco, diz que os números refletem um "equívoco metodológico" da CNV, que acabou focando em um perfil específico de vítimas — em detrimento de outros grupos atingidos, como indígenas, negros e moradores das periferias.
A Comissão chegou a reconhecer mais de 8 mil mortes de indígenas, mas essas não foram incluídas no total oficial. “Isso é um paradoxo”, afirma à Folha Lucas Pedretti, coordenador da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.
Ele destaca que o reconhecimento público de uma vítima depende de múltiplos fatores sociais — nem todos os atingidos pela repressão foram documentados como tal.
Pedretti lembra ainda do papel letal do Esquadrão da Morte nas periferias, grupo paramilitar que executava pessoas, muitas vezes negras, sob pretexto de combate ao crime. “Ser alvo de violência e ser reconhecido como vítima são coisas diferentes”, diz.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos destacou que o estudo foi feito com base nos dados oficiais da CNV e reiterou o compromisso com a memória, a verdade e a justiça. A pasta também defendeu o aprofundamento das pesquisas, especialmente sobre vítimas indígenas e camponesas, ainda subnotificadas nos registros oficiais.