Um estudo publicado na Nature Medicine, por outro lado, dá a entender que a informação defendida pelo virologista é um equívoco
Premiado com o Nobel pela co-descoberta do HIV em 2008, Luc Montagnier é defensor de posições polêmicas, como a homeopatia e a onda da anti-vacina. Agora, a sua mais recente controvérsia é a origem do coronavírus: o pesquisador acredita que a doença foi desenvolvida em decorrência de experimentos feitos em um laboratório chinês.
O professor comentou, em entrevista ao site francês "Pourquoi doctor?", que não crê que a Covid-19 tenha surgido a partir do mercado de animais de Wuhan. "É apenas uma história da Carochinha, mas não é real", afirmou.
Para ele, na verdade, o vírus teria saído de um laboratório da mesma cidade chinesa — uma instituição especializada no assunto desde os anos 2000. Ele teria chegado nessa conclusão após estudar "nos mínimos detalhes" a sequência genética do patógeno, junto de seu colega, o matemático Jean-Claude Perrez.
"Não fomos os primeiros, já que um grupo de pesquisadores indianos tentou publicar um estudo que mostra que o genoma completo desse coronavírus [possui] seqüências de outro vírus, o HIV, o vírus da AIDS", afirmou.
Segundo Montagnier, a sequência do HIV foi inserida no genoma desse coronavírus específico na tentativa de fazer uma vacina contra a Aids. Em decorrência desse processo, teria surgido por acidente o coronavírus causador da Covid-19, que se espalhou pelo planeta.
Onde está o equívoco?
Um estudo publicado em março pela Revista Científica Nature Medicine explicou que, na verdade, o coronavírus é resultado de uma evolução natural. Para chegar à essa conclusão, cientistas dos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido compararam dados do sequenciamento de genoma das cadeias do vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19.
"Os dados genéticos mostram irrefutavelmente que o SARS-CoV-2 não é derivado de nenhum antecedente de vírus usado anteriormente", escreveram os cientistas na pesquisa.
Ao site Science News, a pesquisadora Emma Hodcroft, que faz parte do grupo que estuda mudanças genéticas do vírus, Nextstrain.org, comentou que o estudo publicado na Nature Medicine derruba a teoria que diz que há partes do vírus do HIV no coronavírus.
Se considerado o estudo internacional, a hipótese, defendida por Montagnier, muito provavelmente é um equívoco: a Covid-19 não foi originada do laboratório. No máximo, segundo Hodcroft, alguns trechos do material genético do vírus são semelhantes ao HIV, mas isso é apenas algo que deriva daqueles vírus que compartilham um ancestral comum durante a evolução.
Por isso, afirmar que a sequência do HIV foi inserida no genoma do coronavírus é errado. "Essencialmente, é o mesmo que pegar uma cópia do livro Odisséia e dizer: Ah, tem a palavra A aqui. E então, pegar outro livro, ver a palavra A nele e afirmar 'Oh, meu Deus, é a mesma palavra. Deve haver partes da Odisséia nesse mesmo livro", exemplicou a cientista.
Outras polêmicas de Montagnier
Logo após ser consagrado com o Prêmio Nobel de Medicina, ao lado da pesquisadora Françoise Barré-Sinoussi, Luc Montagnier foi acusado de "desvios científicos". Em 2009, divulgou teorias controversas sobre a origem do HIV.
Em 2010, a Folha de S.Paulo divulgou que as teorias do pesquisador estavam relacionadas com a hemeopatia (uma forma de terapia pseudocientífica). Na palestra "O DNA entre a Física e a Biologia" ele discorreu por meia hora sobre marcas que suspostamente seriam deixadas pelo DNA de algumas bactérias e alguns vírus no arranjo de moléculas de água.
Tal tese era equivalente à "memória da água", um tabu científico que jamais foi comprovado. Além disso, em 2012, a Forbes noticiou que o pesquisador afirmou que, junto à sua equipe, eles teriam encontrado em crianças autistas "sequências de DNA que emitem, em certas condições, ondas eletromagnéticas".
"Análises de teorias biomoleculares nos permitem identificar que essas ondas estão vindo de espécies de bactérias", afirmou o pesquisador. O discurso foi, claro, muito criticado, pelo seu tom pseudocientífico.
Não por acaso, a teoria quântica (uma pseudociência) envolve justamente isso: ondas eletromagnéticas do DNA que supostamente curariam inúmeras doenças, como Alzheimer, Parkinson e Lyme.
Tais afirmações são reiteradas em um estudo de Montagnier, publicado no jornal arXiv. Em 2017, 100 acadêmicos denunciaram ainda o cientista por suas posições anti-vacina e pediram ao Colégio de Médicos que o condenasse à sanções. A polêmica só tende a continuar.