Na Idade Média, a hierarquia da sociedade erarígida até na alimentação. Enquanto os nobres tinham asua disposição uma grande variedade de carnes, oscamponeses viviam à base de legumes e frutas
Ele era uma das poucas unanimidades nas refeições da Europa medieval. Fosse na távola dos senhores ou na mesa dos camponeses, o pão estava sempre presente. Mas havia uma marcante diferença na aparência e no gosto do alimento, que variavam de acordo com o status de quem se sentava para comer. O pão branco, feito com o mais puro trigo, era reservado à alta sociedade. Macio, chegava fresquinho à mesa da aristocracia. Já o pão preto, feito com uma mistura de cereais rústicos e legumes secos (como cevada e ervilha), era o que restava aos plebeus.
A receita dos pobres era dura de engolir: a massa seca, preparada sob cinzas ou sobre uma placa de terracota aquecida, precisava ser mergulhada na água, no vinho ou em algum caldo para ser consumida mais facilmente. Esse tipo de distinção alimentar entre nobres e camponeses era comum na Idade Média, período que se estendeu do século 5 até o século 15. “A alimentação era uma questão social, marcada pelas diferenças entre as classes, especialmente a partir do século 9”, afirma Francisco José Silva Gomes, professor de História Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
De acordo com as regras da época, os produtos do solo eram reservados aos camponeses. Essa camada mais baixa da sociedade, que correspondia a cerca de 90 por cento da população, tinha que cultivar as terras do senhor feudal, com a obrigação de prestar-lhe serviços e pagar-lhe diversos tributos em troca de proteção. Seus alimentos eram as leguminosas, os legumes e os cereais – com exceção do trigo, um luxo reservado às mesas dos ricos. Já as carnes, associadas à idéia de força e poder, eram praticamente exclusivas das classes dominantes.
O marco do início da Idade Média é o ano de 476, quando o Império Romano do Ocidente sucumbiu às invasões de diversos povos germânicos (como visigodos, vândalos e hunos). A mistura de culturas resultante, consolidada entre os séculos 11 e 13, ficou marcada na culinária medieval. Dos romanos, as principais heranças foram o pão, o vinho e o azeite – esses três alimentos, muito importantes na liturgia cristã, serviam de instrumentos para que a Igreja Católica pregasse sua fé.
Já os rústicos povos invasores, chamados de “bárbaros”, serviram de inspiração para as preferências (e para o comportamento) dos nobres medievais à mesa. A classe dominante tinha prazer em manter uma imagem de “selvageria”, comendo grandes porções de animais grelhados, temperados com especiarias e condimentos, preparados sem o uso de água ou recipientes. Fazendo isso, os nobres acreditavam se tornar mais fortes e viris. Para eles, comer não era a satisfação de uma necessidade fisiológica, mas um meio de reiterar, a cada refeição, a sua superioridade.
A mudança de costumes com a chegada dos germânicos incluiu também a valorização da caça, que era desprezada pelos romanos. Tentando privar os pobres do consumo da carne, a classe dominante transformou as florestas em um lugar reservado a seus exércitos particulares de caçadores. Era uma forma de manter bichos como cervos, porcos selvagens e faisões somente nas mesas da aristocracia. Mas, apesar dessa restrição, a carne às vezes aparecia no menu dos camponeses, graças à criação de animais domésticos – o cargo de guardador de porcos, por exemplo, era uma das ocupações mais valorizadas entre os camponeses da Idade Média. Assim como no caso do pão, o preparo da carne era diferente entre os camponeses e os senhores. “Enquanto os primeiros comiam, basicamente, carne cozida, acreditando assim tirar dela toda a substância possível, a nobreza preferia os assados, as carnes grelhadas diretamente sobre o fogo em grandes espetos ou grandes grelhas”, diz o historiador Massimo Montanari, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e organizador do livro História da Alimentação.
Gostinho de conchavo
O cardápio dos aristocratas era marcado pela abundância e grande variedade de carnes consumidas: desde as mais finas, como a de ganso, até as mais comuns, como a de carneiro. Os animais caçados contavam com a preferência de muitos nobres. Era o caso de Raimundo Berengário IV, marido de Petronila, a rainha de Catalunha e Aragão – territórios que hoje ficam na Espanha. Ele tinha o hábito de devorar tetrazes (aves de porte médio, comuns no hemisfério norte), assadas e inteiras. Entre suas iguarias prediletas estavam também as exóticas coxas e patas de urso.
Além das carnes, a dieta da nobreza incluía ovos e queijos diversos. Já os legumes e frutas eram vistos com profundo desprezo. Entre abril e agosto de 1189, o nobre Guillemette de Montcada visitou várias vezes o castelo de Sentmenat, na atual Espanha. O livro de despesas do local registrou que, durante os 43 dias que Montcada esteve por lá, ele chegou a comer couve e espinafre. Mas foi uma vez só. “As teorias da época consideravam alimentos de origem vegetal como de difícil digestão para os estômagos refinados da nobreza”, diz Antoni Riera-Melis, professor de História Medieval da Universidade de Barcelona.
Nas grandes festas, as refeições eram compostas de vários serviços – até seis – que, por sua vez, incluíam um grande número de pratos diferentes – até 15. Servidas em baixelas de metais preciosos, as receitas eram postas, sucessivamente, à mesa: primeiramente as sopas, seguidas de diversos pratos de assados e grelhados. Enquanto os convidados esperavam pelo próximo serviço de pratos principais, quitutes eram servidos. Munidos de uma faca – na época, o único utensílio de uso individual à mesa –, os convivas serviam-se dos pratos que estavam mais próximos. Naquelas grandes refeições, era praticamente impossível provar todas as numerosas iguarias à disposição.
Como a culinária medieval não era lá muito sofisticada, ninguém esperava pratos saborosos. Muitas vezes, a aparência dos alimentos importava mais para os nobres do que o próprio sabor: cozinheiros lançavam mão de uma ampla gama de cores para seduzir os famintos olhos da classe dominante. Ingredientes como a salsa tingiam os pratos de verde, enquanto os ovos e o açafrão deixavam as receitas douradas. “O vermelho era obtido a partir de produtos exóticos, como extrato de sândalo vermelho e uma resina de árvore chamada de sangue-de-dragão”, diz o historiador Bruno Laurioux, da Universidade Paris VIII.
Naquele mundo de aparências, qualquer ocasião era digna de transformar um jantar cotidiano em um festival gastronômico: as tradicionais datas comemorativas cristãs, as festas familiares ou os acordos políticos entre a classe dominante. Banquetes eram organizados quando indivíduos ou reinos selavam a paz, faziam alianças ou simplesmente reforçavam a continuidade de seus laços de amizade. Se o gosto da comida não era lá essas coisas, tudo bem: o importante era reunir as pessoas para comer e beber. O ato de dividir a mesa era uma reafirmação de lealdade entre os nobres.
Pobreza saudável
Diante das orgias alimentares da nobreza, pode parecer que os servos tinham uma vida miserável. Em matéria de comida, pelo menos, não era bem assim. Um estudo da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, verificou que os habitantes do norte da Europa que viveram durante a Alta Idade Média (entre os séculos 5 a 10) tinham, em média, 1,73 metro de altura. Ou seja: eram quase tão altos quanto seus descendentes de hoje – o que indica que sua dieta permitia bom desenvolvimento corporal. “Os pobres da Idade Média tinham uma alimentação muito melhor do que supúnhamos, pois era bem balanceada, à base de legumes, frutas e peixes”, explica o medievalista Ricardo da Costa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo.
Se os pratos das classes populares não eram requintados, pelo menos eram muito nutritivos. Nas sopas, preparadas em caldeirões pendurados numa corrente ou colocados diretamente nas brasas, havia um pouco de tudo: leguminosas como favas e ervilhas, legumes como cenoura e cebola e, quando possível, um naco de carne. Era comum o caldo ficar cozinhando durante dias: à medida que ia sendo servido, também ia sendo engrossado com novos ingredientes.
Além do pão, outro alimento de consumo diário que a elite compartilhava com os camponeses era o vinho. Na Idade Média, o consumo da bebida se estendia por toda a Europa cristã. Assim como no caso do pão, a qualidade do vinho também variava de acordo com a classe social – as melhores uvas eram, naturalmente, reservadas aos senhores. Entretanto, na região onde hoje fica a Alemanha, o vinho rivalizava em preferência com a cerveja. Na verdade, ela ainda era uma bebida densa e doce, que só muito mais tarde, com a adição do lúpulo, se tornaria o líquido claro e transparente que conhecemos. De modo geral, os habitantes da Europa medieval ingeriam grandes quantidades de bebida alcoólica. Não só pelo prazer, mas também por questões higiênicas. “A água, portadora de germes e doenças, inspirava pouca confiança”, diz Massimo Montanari. “Toda a literatura medieval revela uma profunda desconfiança a seu respeito.” Na Idade Média, era comum que o vinho fosse misturado à água. O objetivo era purificá-la. “Mais do que um sinal de bom gosto, era uma medida de prevenção sanitária”, afirma Montanari.
A voracidade carnívora dos nobres medievais não era ilimitada. Ela esbarrava nas regras da todo-poderosa Igreja Católica, que proibia o consumo de carne vermelha nos dias religiosos – e, na Idade Média, eles eram muitos. “O jejum da Quaresma, costume que se iniciara no século 4, foi prolongado para 40 dias e, além dele, havia o jejum das sextas-feiras, dia da crucifixão de Cristo”, conta o jornalista Mark Kurlansky no livro Sal: uma História do Mundo. Assim, boa parte do ano estava destinada ao consumo de animais encontrados na água, o que também incluía os mamíferos marinhos. A carne de baleia geralmente era reservada aos ricos (a parte que fazia mais sucesso entre eles era a língua). Para os camponeses sobrava o craspois: uma tira das áreas mais gordas do corpo do animal. Mas esse toicinho de baleia não era lá muito apetitoso. “Diziam que, mesmo depois de passar o dia inteiro no fogo, o craspois continuava duro e áspero”, afirma Kurlansky. Além dos cetáceos, outro habitante dos mares ganhou a simpatia dos europeus medievais: o bacalhau do Atlântico. Sua carne branca é ideal para ser salgada para conservação, já que praticamente não apresenta gordura – tecido que dificulta a fixação do sal na carne. Em tempos em que ainda não existia geladeira, essa era uma questão de grande importância. Por causa dessa característica, o bacalhau entrou no repertório da maioria das cozinhas européias – incluindo os países do sul do continente, onde não se encontrava o peixe fresco.
Apesar de serem feitos com ingredientes bastante diferentes, os pratos comidos por nobres e plebeus tinham uma característica comum: a simplicidade. “Naquele período, em que o prazer foi muito oprimido pela religião, os pratos eram básicos, preparados com ingredientes locais, facilmente disponíveis”, afirma o chef Alessandro Nicola, professor de Gastronomia do Centro Universitário Senac, de São Paulo. Exemplo disso eram as sopas dos camponeses, receitas elementares que remetem a uma culinária de poucos recursos. Bastava juntar alguns legumes a uma carcaça de animal e cozinhar tudo por algumas horas (ou dias). O caldeirão ficava na sala, não na cozinha: reunidos em torno do fogo, os camponeses se aqueciam do rigoroso inverno europeu tomando um caldo quente. Do lado dos nobres, o faisão era uma das mais apreciadas iguarias. As aves eram perseguidas e capturadas no interior das florestas. Uma vez abatidas, eram limpas e deixadas de molho na cerveja durante dias, antes de ser assadas diretamente sobre o fogo em espetos. A mistura com a bebida não servia para dar um sabor especial à carne: era apenas um modo de conservá-la por mais tempo. A cerveja evitava que a carne apodrecesse, mas fazia com que ela fermentasse – deixando-a com um sabor intragável para os padrões atuais. A seguir, você vai ter a oportunidade de sentir um gostinho de Idade Média. Se estiver num clima camponês, escolha a sopa. Se preferir dar um ar de nobreza à sua vida, vá de faisão (não estranhe o uso de geladeira no preparo: o clima brasileiro é muito quente para que a ave fique de molho sem estragar). Qualquer que seja sua escolha, uma regra de etiqueta medieval é indispensável: nada de usar garfo.
Faisão marinado em cerveja*
Ingredientes
1 faisão limpo
70 g de aipo-rábano
200 g de cebola picada
1 colher de sopa de zimbro
10 folhas de louro
1 litro de cerveja rústica
1 colher de sopa de sal
200 g de banha de porco
2 pães italianos bem rústicos
Modo de preparo
1. Junte o aipo-rábano, a cebola, o zimbro, o louro e a cerveja. Deixe marinar por, no mínimo, 24 horas em geladeira (o ideal é chegar a 72).
2. Retire a marinada e seque bem o faisão. Reserve a marinada separada.
3. Cubra o faisão com a banha e leve-o ao forno (160ºC) até começar a dourar.
4. Regue o faisão com a marinada.
5. Continue regando a ave com a marinada e a banha derretida até assar por completo.
6. Sirva a carne quente ou morna, acompanhada de pão rústico (para passar no molho que se formou na assadeira).
*Receitas elaboradas pelo chef Alessandro Nicola e preparadas por Lucas Medina, do centro universitário Senac em São Paulo
Sopa
Ingredientes
50 g de gordura de porco picada
70 g de cebola picada
4 colheres de sopa de vinagre de maçã
300 g de repolho branco ralado
300 g de beterraba ralada
200 g de cenoura ralada
100 g de aipo-rábano ralado
1 pé de porco
3 dentes de alho descascado
3 folhas de louro
2 maçãs raladas
10 sementes de zimbro
3 litros de água
Sal a gosto
Modo de preparo
1. Derreta a gordura e refogue a cebola e o pé de porco.
2. Acrescente os demais ingredientes e cozinhe por 4 horas, sem ferver.
3. Acerte o sal e sirva.Durante séculos, cachorros encheram a barriga dos habitantes da cidade medieval de Carrickfergus, na Irlanda do Norte. Foi o que verificou o arqueólogo Ruairi O’Baoill, responsável pelas escavações no local, que fica a cerca de 16 quilômetros da capital norte-irlandesa, Belfast. Após analisar centenas de esqueletos caninos encontrados em antigos depósitos de lixo da cidade medieval, O’Baoill descobriu que muitos ossos haviam sido talhados pelas facas de açougueiros. “A presença dessas marcas nos restos dos animais é um sinal claro de que a carcaça era processada para a alimentação”, afirmou o arqueólogo na revista irlandesa Archaeology Ireland. Mas, para a sorte dos cachorros, talvez eles não tenham sido sempre o prato do dia em Carrickfergus. Fontes históricas indicam que a carne desses animais só era consumida em situações extremas, como durante períodos de fome ou guerra prolongada – a cidade irlandesa sofreu diversos cercos e ataques durante a Idade Média. “É possível que a alta concentração de ossos caninos esteja relacionada a um ou mais episódios de conflito”, escreveu O’Baoill.
Livros
História da Alimentação, Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (orgs.), Estação Liberdade, São Paulo, 1998 - Constrói uma história geral da alimentação, desde a Pré-história até os dias de hoje. Artigos assinados por historiadores relacionam a alimentação com a sociedade em várias épocas.
Sal: uma História do Mundo, Mark Kurlansky, Senac, São Paulo, 2004 - O jornalista Kurlansky conta como o sal influenciou os hábitos alimentares de diversas civilizações, fosse para temperar, fosse para conservar a comida.