Almino Monteiro Álvares Affonso: Lado a lado com o poder
Ex-deputado e ex-ministro, ele conviveu com o arrojado Juscelino Kubitschek, o contraditório Jânio Quadros e o polêmico João Goulart. Por 50 anos, Almino Affonso foi protagonista e observador privilegiado de momentos decisivos da política nacional
O amazonense Almino Monteiro Álvares Affonso é um desses casos raros de testemunhas da História que andam por aí conscientes dos grandes momentos que presenciaram. Neto e homônimo de um senador do Império que defendia a abolição da escravatura, Almino Affonso tornou-se deputado federal aos 30 anos. Ministro do Trabalho no governo João Goulart, viveu os momentos de tensão que envolveram o golpe de 1964. Cassado pelo regime militar, deixou o país às pressas para enfrentar um exílio que duraria mais de uma década. De volta ao Brasil, teve participação ativa no movimento Diretas Já, sendo eleito vice-governador de São Paulo no início dos anos 90.
Nesta entrevista, o ex-político, escritor e advogado de 79 anos abriu as portas de seu apartamento, em São Paulo, para fazer um balanço de sua trajetória. Contando histórias sobre fatos e nomes que mudariam os destinos da nação, ele crava: “Jânio renunciou para detonar um golpe”. Sobre João Goulart, afirma: “Ele tinha a seu lado generais que iam da traição à incompetência”. Conhecedor profundo dos bastidores da política brasileira, ele impressiona pela memória e pela manutenção dos ideais humanistas – provavelmente uma herança do avô. A seguir, os principais momentos da conversa.
Como o senhor ingressou na política?
Por dois motivos. O primeiro deles é a história de meu avô paterno, de quem herdei o nome. Ele lutou pela abolição da escravidão no Ceará, no Rio Grande do Norte e no Amazonas. Enquanto a Lei Áurea foi de 1888, a libertação dos escravos no Rio Grande do Norte foi em 1883 e no Ceará e no Amazonas, em 1884. Depois, meu avô foi deputado e participou da elaboração da Constituição de 1891, a primeira da República. Posteriormente, foi eleito senador. Sua vida foi dedicada à causa da abolição e, depois, à da República. Isso tudo me marcou de forma significativa, mas não me levou de maneira direta à política. O casamento dessa história e da minha tendência à vida pública ocorrreu quando cheguei a São Paulo, vindo do Amazonas, para estudar Direito, em 1950.
O que aconteceu nessa época?
A faculdade [do Largo São Francisco] fervia na luta pelo monopólio estatal do petróleo, a luta nacionalista. E havia uma oposição muito ativa contra Getúlio Vargas. Naquela época, ele retornava como candidato a presidente da República. A faculdade se enlutou. Havia faixas negras por toda a parte, comícios e passeatas. Eu entrei naquela. Depois eu mudaria de opinião por conta da luta nacionalista do Getúlio. A luta pelo monopólio estatal do petróleo me levou para o desenvolvimento da oratória e para uma participação política mais direta.
Quando o senhor se aproximou de Jânio Quadros?
Eu era estudante quando ele se candidatou a prefeito de São Paulo. Ele era a favor do monopólio estatal do petróleo, era um nacionalista e defendia as questões sociais. Quando saiu candidato, a cidade acabava de recuperar o direito de escolher seu prefeito. Jânio saiu por duas legendas mínimas: o Partido Socialista e o Partido Democrata Cristão. Isso me empolgou. Dissse para mim mesmo: “Fico do lado do mais fraco”. Do outro lado havia uma coligação terrível de partidos conservadores, liderados pela UDN. Entrei de corpo e alma na campanha de Jânio e começamos a ter uma relação estreita. Depois ele virou candidato a governador, interrompendo seu mandato de prefeito, e lá fui eu de novo, correndo o estado, fazendo campanha com o Jânio. Ele se elegeu, tomou posse como governador e em pouco tempo rompeu com as idéias progressistas. Eu e meu grupo, de 15 jovens do Partido Socialista, rompemos de público com o Jânio.
E depois, houve reaproximação?
Quando ele se lançou a presidente da República, já como candidato da UDN, eu apoiava a candidatura do marechal [Henrique] Lott. Ele se elegeu presidente e, no curtíssimo tempo em que esteve no cargo, tive com ele divergência frontal. Eu era líder do PTB na Câmara e, portanto, líder da oposição. Até que se deu a renúncia. Passado algum tempo, quando veio o golpe de 1964, eu estava exilado no Chile. O Jânio passou por lá e me convidou para um encontro. Recusei.
O senhor já não confiava mais nele?
Já não confiava mais. Eu tinha e tenho absoluta convicção de que a renúncia dele não foi uma renúncia, foi algo para detonar um golpe de Estado, que malogrou. Isso não me permitia uma aproximação. Todo o comportamento dele durante os sete meses de governo era uma coisa de louco. Estou convencido de que ele pretendia romper a institucionalidade. Ele fez coisas disparatadas. Uma vez houve uma greve de estudantes em Recife. Ora, greve de estudantes, por mais que seja numerosa, não abala nenhum governo. Ele mandou para lá navios de guerra para “conter a subversão”.
E com Juscelino Kubitschek, como foi sua relação?
Tínhamos posições políticas alternadas. O Juscelino, ao mesmo tempo que era nacionalista em vários aspectos, era a favor do capital estrangeiro. Exemplo disso é a indústria automobilística. Em compensação, ele rompeu com o Fundo Monetário Internacional, coisa que ninguém tinha feito e nem voltou a fazer. Era uma figura contraditória e criava dificuldades para fazermos oposição. Quando ele saiu do governo, eu já era ministro do Trabalho. Então, ele se tornou candidatíssimo a voltar à presidência e queria nova aliança com o PTB. O deputado José Joffily foi ao meu gabinete para dizer-me que havia um movimento no PSD para propor que o nome do PTB na chapa com o Juscelino, para dar uma tintura à esquerda, deveria ser o meu. Fiquei envaidecido. Eu tinha 33 anos, era quase um menino.
E houve um contato com ele?
Sim. Pouco depois, Juscelino me chamou para um encontro. Fui tomar um café da tarde na casa dele no Rio de Janeiro, na rua Vieira Souto. Ele me mostrou o rumo que tomaria no futuro governo e, num movimento de quem procurava compatibilizar suas posições com as nossas, falou da reforma agrária. Ele me disse: “Eu levarei para o próximo governo a tese da reforma agrária”. Ninguém até então tinha levado. E completou: “Há no meu partido um setor que respeito muito e que gostaria de vê-lo como meu colega na candidatura à presidência. Eu ficaria honrado”. Pouco tempo depois, ele foi cassado e exilado, assim como eu. Nunca disse isso antes a ninguém.
E como foi sua aproximação com o João Goulart?
Ele era vice-presidente pelo PTB e eu era líder do partido na Câmara. Em 1963, ele voltou ao governo com o regime presidencialista, após o plebiscito em que obteve vitória contra a proposta de parlamentarismo. Foi então que ele me convidou para ser ministro do Trabalho. Isso aconteceu porque eu defendi com vigor a tese de que ele assumisse o poder depois da renúncia [de Jânio Quadros]. O candidato da bancada para ministro do Trabalho era o deputado Bocaiúva Cunha, que o Jango aceitara. Então houve um problema entre ele e o Samuel Wainer, dono do Última Hora, único jornal importante do país que apoiava o governo. O Bocaiúva Cunha era sócio no Última Hora e, por vaidade, o Samuel Wainer foi ao Jango e disse: “Não posso aceitar que um sócio meu minoritário possa ter uma expressão política maior do que eu no teu governo”. Jango capitulou. Me chamou e disse: “Almino, não dá para manter o convite ao Bocaiúva. Eu não tenho condições de romper com o Wainer. Queria te convidar para ser o ministro do Trabalho”. Eu aceitei.
Jango, ao contrário do que muitos esperavam, não deu o contragolpe e fugiu para o Rio Grande do Sul e Uruguai. Há quem diga que ele titubeou. O que há de verdade nisso?
Você pode chamar de covarde uma pessoa que, tendo um canivete no bolso, é atacada por alguém com uma metralhadora? Não. João Goulart nomeou mais de 40 generais ao longo de seu governo. Teria todas as condições de resistir ao golpe. Mas, na prática, figuras ligadíssimas a ele o traíram. Um exemplo é o general Amauri Kruel, comandante do 2º Exército, compadre do presidente e padrinho do filho de João Goulart. Qual foi o comportamento do Kruel? Dar um ultimato ao presidente: ou ele fechava a CGT [Central Geral dos Trabalhadores] e a UNE [União Nacional dos Estudantes] ou ele não poderia apoiá-lo.
O que o senhor viu no dia do golpe?
No dia 31 de março, quando houve o início da marcha da tropa para o Rio de Janeiro, eu estava em Brasília. Fui pela manhã à Câmara e a encontrei fervendo. Deputados em grupos e eu sem entender aquele alvoroço. Parei em uma roda e me disseram: “Você não sabe? Começou a revolução! As tropas do general [Olímpio] Mourão estão marchando sobre o Rio de Janeiro”. Fui para a casa do Arthur Virgílio Filho, pai do Arthur Virgílio de hoje, que era líder do PTB no Senado. De lá, ligamos para o presidente da República. Eu ouvi na extensão o diálogo com o Virgílio. Ele relatou o que eu havia presenciado na Câmara e o João Goulart perguntou: “Mas Arthur, donde tu ouviste isto?” Ia passando perto do gabinete do presidente o chefe da Casa Militar, Assis Brasil. “General Assis, por favor, há algo de verdade nisso que o senador acaba de me dizer?” Isso tudo eu ouvi. “Não, presidente, nada de relevância, a tropa do general Mourão está fazendo exercícios”, disse o general. “Estás ouvindo, Arthur? Isso é boataria, não há nada”, disse o presidente. Isso foi no dia 31, ao meio-dia. Então o presidente é frouxo, fraco, incapaz de uma decisão se ele tinha a seu lado generais que iam da traição à incompetência? Não, não creio.
E depois, o que aconteceu?
Fui para casa, almocei e voltei para a Câmara. Já não era mais tumulto, era incêndio. Ouvindo o que se dizia, falei em uma roda: “De onde vocês tiram essas loucuras? Acabei de ouvir do presidente que nada disso tem procedência”. O deputado Carlos Murilo me tirou da roda e disse: “Se isso que você acaba de dizer é para acalmar ânimos, o problema é de vocês. Agora, se o presidente acha o que disse, está totalmente perdido”.
Como João Goulart reagiu quando percebeu que não era boataria?
O presidente, na iminência de ser preso no Rio de Janeiro, com as tropas da Polícia Militar sob o comando do governador Carlos Lacerda já se encaminhando para o Palácio das Laranjeiras, conseguiu escapar e foi para Brasília. Lá, fez uma reunião na Granja do Torto com pessoas que considerava de confiança: Tancredo Neves, Arthur Virgílio, Temperani Pereira, Doutel de Andrade e eu. Ele chegou barbado, com o terno todo amarfanhado. Não era exatamente a figura de um vencedor. O general Ladário [Teles] ligou do Rio Grande do Sul e sugeriu ao presidente que montasse seu governo por lá. Goulart decidiu ir. Conseguiram o avião mais moderno do Brasil à época, um Coronado. Fomos para o aeroporto. O presidente entrou no avião, mas ele não decolou. Como um avião tão novinho não conseguia decolar?
O que Jango fez então?
Depois de tanto esperar, o presidente desceu do Coronado e embarcou em um Avro, que demorava o dobro do tempo. Seguimos para a casa do Bocaiúva e ali fomos convocados para uma reunião no Congresso à 1 da manhã. Nada bom. Chegando lá, abriu-se a sessão e o Darcy Ribeiro fez a entrega de uma carta que havia escrito no dia do golpe, dizendo que o presidente não estava fora do país. O [Auro de] Moura Andrade [então presidente do Senado] o fez ler a carta e declarou: “Senhores, a despeito da carta, o presidente João Goulart abandonou o governo e, portanto, o país está acéfalo. Considero vago o cargo de presidente da República. Está encerrada a sessão”. Assim que o Moura Andrade terminou de falar, o Tancredo se levantou e gritou: “Canalha!” O deputado Rogê Ferreira, que era um homem atlético, conseguiu abrir passagem entre os seguranças, chegou bem perto do Andrade e lhe deu duas cusparadas. Eu costumo dizer que foram cusparadas cívicas.
LIVRO
Brasil: de Getúlio a Castelo, Thomas Skidmore, Paz e Terra
Panorama da movimentação política que levaria ao golpe de Estado de 1964, iniciada com o suicídio de Getúlio Vargas dez anos antes.