Governo americano perseguiu Jango, bancou ação dos militares e não impediu a violação dos direitos humanos: "A gente abriu uma caixa de Pandora"
Fabio Previdelli Publicado em 21/11/2021, às 00h57 - Atualizado em 31/03/2024, às 11h01
“Sr. presidente, temos provas fotográficas concretas, que o senhor verá em breve, mostrando que os russos instalaram mísseis bélicos em Cuba”, foram essas palavras que o consultor de Segurança Nacional McGeorge Bundy usou para revelar a John Fitzgerald Kennedy que as aeronaves espiãs U-2 detectaram a existência de seis bases de lançamentos para mísseis soviéticos de meio alcance que estavam sendo montadas na Ilha de Fidel Castro.
A partir daquele 16 de outubro de 1962, JFK teve de enfrentar o maior desafio em sua gestão: a Crise dos Mísseis em Cuba, que durou cerca de duas semanas, cessando em 28 de outubro.
“Está claro que as forças do comunismo não podem ser subestimadas. Em Cuba e em todo o mundo!”, disse o presidente, posteriormente, conforme mostra trecho do documentário ‘O dia que durou 21 anos’ cedido gentilmente à equipe do Aventuras na História pelo diretor Camilo Tavares.
Estou convencido que nós dos EUA, e todo o 'Mundo Livre', temos os recursos e as habilidades necessárias para agir em defesa da Liberdade!”, completa o 35º presidente americano, assassinado em 22 de novembro de 1963.
Apesar das frases curtas, mas de muito impacto, que se tornaram padrões nos discursos de Jonh Kennedy, elas não foram ditas da boca pra fora, muito pelo contrário, qualquer sinal de ameaça à soberania americana, o governo de JFK estava pronto para agir em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil.
Os olhos americanos se viraram para o Brasil muito tempo antes da crise em Cuba. Segundo explica Camilo Tavares em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História.
A partir de documentos que teve acesso para a produção do documentário, um dos que mais chamou a atenção foi um telegrama datado de 1961, quando Leonel Brizola desapropriou duas empresas americanas que atuavam em solo nacional: a Bond and Share e a I.T.T, alegando que ambas já haviam lucrado demais por aqui e, portanto, teriam que ser nacionais.
“Isso foi a gota d'água para o Kennedy, e para qualquer outro presidente americano, que ia contra a política nacionalista do João Goulart. Então, fica muito claro que esse telegrama, de 1961, é onde o Kennedy dá o sinal verde através do embaixador dele, o Lincoln Gordon, que estava aqui no Rio de Janeiro, para articular uma conspiração militar e civil com muito dinheiro, com muitos fundos dos Estados Unidos para, em dois ou três anos, chegar no Golpe”, explica o documentarista.
Diplomata de Havard, muito hábil e inteligente, Lincoln Gordon foi escolhido a dedo, segundo Tavares, para ser embaixador dos Estados Unidos aqui no Brasil.
“Quando os Estados Unidos designam um embaixador, seja um embaixador mais linha-dura ou seja um embaixador mais democrata, eles têm um objetivo por trás da pessoa que eles estão mandando”, completa.
No caso de Gordon, ele se destacou por formar uma rede com militares, civis e políticos, para os quais ofereciam dinheiro visando leis que beneficiaram os Estados Unidos.
O documentarista relembra, inclusive, que na época, o deputado federal Rubens Paiva denunciou o esquema de corrupção. “Não à toa, o Rubens Paiva também foi preso, torturado e morto pelos militares. Existem coisas que a gente ainda não sabe dessa interferência”.
Em ‘O dia de durou 21 anos’, Camilo mostra uma série de conversas que Gordon teve com Kennedy, se destacando uma de 1961, quando o embaixador aponta que Jango segue uma linha peronista, super populista e com capacidade de implantar uma “república comunista no Brasil” e que “o Brasil poderia se tornar uma outra Cuba”.
“João Goulart não era comunista. Ele estava mais para um político moderado de esquerda, mais preocupado com políticas de inclusão social e retomada do desenvolvimento econômico em bases mais nacionalistas, mas ainda assim muito longe de defender uma economia autárquica sem conexões com o capitalismo internacional”, explica Marcos Napolitano, professor titular de História do Brasil da Universidade de São Paulo (USP) e autor de ‘1964: História do regime militar brasileiro’ (Editora Contexto), em entrevista ao site Aventuras na História.
O Partido Comunista Brasileiro o apoiava e até fornecia alguns quadros de baixo escalão para o governo, pois as políticas reformistas de Goulart eram vistas como parte da luta anti-imperialista, questão central para o PCB. Mas nunca houve uma aliança formal entre Goulart e os comunistas, e a presença de comunistas no governo foi superdimensionada pelos golpistas”, completa Napolitano.
A partir desse encontro, que aconteceu três anos antes do golpe, John Kennedy acabou convencido por Lincoln Gordon a liberar cerca de 12 milhões de dólares para uma campanha na mídia contra Jango.
“É muito importante falar do papel da mídia, que na época era o rádio, a televisão e o jornal, com a Embaixada Americana por um programa que chamava ‘Aliança para o Progresso’”, recorda Camilo. “Aquilo foi um programa geral de convencimento da sociedade — até porque a gente sabe o poder da opinião pública —, para falar que o João Goulart era comunista”.
Todo dia no jornal tinha uma manchete que ‘o João Goulart ia roubar tua terra, que ia roubar tua casa’, 'que aqui ia ser uma nova Cuba’, mas, no fundo, isso foi criado aos poucos para o público brasileiro”, diz o documentarista.
Napolitano explica que, desde sua posse, Jonh Kennedy atuou no sentido de defender as empresas norte-americanas no Brasil, alvo dos nacionalistas brasileiros a partir do final dos anos 1950.
“As eleições de outubro de 1962 foram alvo de grande atenção do governo norte-americano, que financiou e apoiou vários candidatos anticomunistas e antinacionalistas. Ainda assim, o PTB, partido do Presidente Goulart, aumentou sua bancada no Congresso”, ressalta.
O docente conta que as pressões diplomáticas e ações de desestabilização (como o apoio à governadores de oposição, intelectuais e entidades anticomunistas, financiamento das oposições parlamentares, etc.) parecem ter evoluído no final de 1963, pouco antes do assassinato de Kennedy, o que possibilitou a deposição de Goulart por meios violentos, conforme apontam estudos do historiador Carlos Fico, que foram baseados em documentos dos arquivos norte-americanos.
Nesse mesmo período, surgiu o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), um órgão importante para a produção de peças de propaganda, como cinejornais que denunciavam possíveis atos de ‘subversão’, ‘corrupção’ e ‘populismo’, sempre relacionados à esquerda.
“O IPES era o que chamaríamos hoje de ‘think tank’, um centro de pensamento e estratégias de conquista de poder e hegemonia. Ele atuava através de estudos técnicos sobre como deveria ser a ação do Estado e dos empresários para retomar o desenvolvimento capitalista, além de aglutinar lideranças intelectuais, jornalistas e empresários em um projeto político articulado, antinacionalista, contra reformas sociais e anticomunista”, diz Marcos Napolitano.
Assim, com a ajuda de Lincoln Gordon, o Governo norte-americano não só fomentou essas campanhas de difamação pela mídia, como também fez ligações com grupos militares, o que acabou culminando no Golpe de 64 — que, vale ressaltar, não foi dado pelos Estados Unidos em si, mas teve seu apoio.
Um episódio que evidencia isso é a ‘Operação Brother Sam’, que foi parte de um "plano de contingência" mais amplo, que indicava como deveria ser a ação dos Estados Unidos diante de vários cenários de crise no Brasil.
“Tudo indica que a Operação foi gestada no final de 1963, quando o governo americano sob Lyndon Johnson, que substituiu Kennedy, aderiu à opção de depor Goulart à força. Na verdade, a Operação previa apoio indireto em caso de Guerra Civil entre a esquerda e a direita, na forma de suprimento de armas, combustível e apoio aéreo”, explica Napolitano.
Camilo Tavares complementa a informação e revela que seu pai, o também jornalista Flávio Tavares, chegou a receber um telex informado sobre a Operação Brother Sam (veja imagem abaixo).
“Os Estados Unidos mandaram um porta-avião e estava lá o telegrama descrevendo exatamente o que vinha: que era um porta-avião com armamento, dois barcos de apoio e um destroier que tinha como destino o Porto de Santos, mas tudo como se fosse um exercício naval, para não dar bandeira que era um apoio aos golpistas”, diz o documentarista.
Entretanto, segundo Napolitano, a frota estava preparada para chegar à costa brasileira por volta de maio, mas o golpe foi desencadeado antes, em 31 de março, por um grupo civil-militar que não estava tão articulado com a embaixada norte-americana.
Por esse e outros motivos, o documentarista rechaça que a alcunha de ‘pai do golpe’ possa ser dada unicamente à Kennedy, atribuindo o título, principalmente, ao embate do ‘capitalismo x comunismo’, travado durante toda a Guerra Fria.
Kennedy foi fundamental. Se não fosse o Kennedy, provavelmente, não teria acontecido da maneira como aconteceu. Reforçando, o Kennedy que deu o dinheiro. Não foi ele que mandou a frota naval, foi o Lyndon Johnson, que veio depois da morte do JFK. Mas eu sinto que tem uma dinâmica que vai além dos presidentes, ou seja, existe um plano de contingência já armado”, diz Tavares.
Um ponto que corrobora com isso, conforme aponta, é o fato de que uma matéria veiculada pela CBS, a principal cadeia de jornalismo americana, entre 1961 e 1962, apresentava um repórter da emissora que tinha vindo ao Brasil e já alimentava a ideia de que o país poderia se transformar em uma “Nova Cuba”.
“Isso foi divulgado pela opinião pública americana 2 anos antes do Golpe de 64. Você vê que já tem uma preparação na mídia para a coisa acontecer. Embora o Kennedy tenha sido assassinado em 63 e o golpe foi no ano seguinte, pelo Lyndon Johnson, o que eu sinto é que isso já estava encaminhado para qualquer presidente só dar o sinal verde”, completa Camilo.
Em novembro de 2012, no 49º aniversário da morte de John Fitzgerald Kennedy, à convite das universidades que integram a Ivy League, grupo que compõem os principais centros de ensino superior dos Estados Unidos, ‘O dia que durou 21 anos’ foi exibido para centenas de universitários americanos.
“Em Havard, ou na Columbia University, o público ficava dividido, eram dois lados da moeda: uns defendendo que os Estados Unidos tinham que fazer esse papel de interferir mesmo, que a América do Sul, o Brasil e a Argentina são países para serem explorados, que são o 'quintal' dos Estados Unidos. Uns defendem isso mesmo sem nenhuma culpa. E outros defendendo mais uma política nacionalista, que cada país tem que defender os seus interesses e os Estados Unidos não pode apitar muito”, explica o documentarista.
Essa visão intervencionista moderna, no entanto, contrastava, em alguns pontos, com a maneira que os Estados Unidos passaram a ver o Golpe após 1964. A partir de 1968, com a implementação do Ato Institucional Nº5, o AI-5, a repressão e violência contra os civis se tornou ainda mais brutal, com a perseguição em massa de muitos jornalistas e estudantes.
A partir disso, os Estados Unidos começaram a se dar conta. Tem até um telegrama do Lincoln Gordon, que não está no filme, que ele fala: ‘A gente abriu uma caixa de Pandora, os militares estão perdendo o controle com a violência, mas a gente, agora, tem que continuar apoiando’”, diz Tavares.
Apesar do aparente “arrependimento”, o país continuou mandando dinheiro e enviando treinamento militar para o Brasil, pela Escola das Américas, muito pelo medo do comunismo, o que servia como uma justificativa para a violação aos Direitos Humanos que corria à solta por aqui.
“Então, os Estados Unidos, para não ficar mal na fita, digamos assim, com o Governo brasileiro, continuou apoiando e dando dinheiro. O próprio Lincoln Gordon ficou em uma saia justa, mas ele preferiu, sabendo que havia a violação dos Direitos Humanos, continuar o apoio ao governo militar ao invés de fazer uma mea culpa”, conclui Camilo Tavares.
Confira a parte 1 da entrevista do site Aventuras na História com Camilo Tavares
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