Conheça o episódio real de violência que inspirou o fenômeno Game of Thrones
Incesto, traições em família, reis loucos, guerras entre clãs e muito, mas muito sangue derramado. Assim são os capítulos repletos de surpresas e violência desmedida de Game of Thrones, a premiadíssima série da HBO, que estreia sua aguardada última temporada neste 14 de abril. Baseado na sequência de livros As Crônicas de Gelo e Fogo, o programa de TV tem como fonte de seu magnetismo a imaginação sem limites de um septuagenário de Nova Jersey, escritor que ao longo da carreira se especializou em histórias de fantasia, terror e ficção científica: George R.R. Martin.
Mas mesmo a mente prodigiosa do autor precisou de uma mãozinha para elaborar o complexo labirinto de tramas paralelas de GoT – um universo com clara inspiração medieval, tanto visualmente quanto em seus rituais de combate, de religião ou magia. Foi nos livros de História que Martin encontrou ideias para seu gigantesco enredo, com referências maiores ou menores em episódios importantes do passado, principalmente europeu.
“Todos os autores de ficção usaram a Idade Média para representar uma metáfora da modernidade”, explica Robert Rouse, professor do curso “Our Modern Medieval: The Game of Thrones as Medievalism”, na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. “Tolkien usou o Senhor dos Anéis para representar a Segunda Guerra Mundial, na qual tudo era preto ou branco: ou você estava do lado de Sauron (com os nazistas), ou do lado de Frodo (com as democracias). Mas Martin também representa a modernidade, que é muito mais complexa do que aquele momento. A ficção de GoT mostra um mundo muito mais cinza.”
Segundo Rouse, as pessoas gostam de GoT também porque conseguem ver além da Idade Média. Enxergam eventos contemporâneos nas entrelinhas da trama. Por exemplo, casos de violência brutal em guerras como a da Bósnia ou do Iraque. “Todos são eventos modernos nos quais facções se confrontam de forma truculenta para conquistar o poder. E a alma de GoT é isso: a luta pela tomada do poder”, diz o estudioso.
Violência, aliás, é o que não falta nas múltiplas tramas da série. Mas cenas com cabeças degoladas, sadismo, estupro e outras crueldades seriam também uma representação fiel do contexto histórico da Idade Média. Em várias ocasiões, o próprio George R.R. Martin respondeu a críticas sobre o excesso de selvageria com frases que poderiam ser resumidas em “a História era assim, amigos!”.
“Os horrores da humanidade não derivam de ogros ou de algum Obscuro Senhor. Mas de nós mesmos. Somos nós os monstros, e também os heróis. Cada um de nós tem o potencial de cometer grandes males e também grandes coisas”, declarou o autor em uma entrevista para o jornal britânico The Guardian.
Se a saga dos Stark, Lannister, Targaryen e outros é um contínuo flerte com a História, também é sua combinação com a fantasia que apaixona o público, com a inclusão de dragões, mortos-vivos e homens de gelo. Elementos fantásticos que, afinal, também tiveram correspondentes na imaginação dos povos ao longo dos tempos – e o período medieval foi fértil na construção de heróis sobre-humanos e lendas extraordinárias. Ainda assim, a fantasia é coadjuvante de luxo de uma narrativa muito mais reconhecível pelas grandezas e misérias que brotam da matéria-prima de nossa humanidade. É aí, na referência à História que criamos ao longo dos séculos, que está o maior trunfo dessa série – paradoxalmente, tão original.
“O sobrenatural permanece como pano de fundo, apenas pronunciado. Sua força narrativa é, ao contrário, ligada à história real, apresentando cenários profundamente familiares para o público”, explica Tommaso di Carpegna Falconieri, professor de história medieval na Universidade de Urbino, na Itália.
Mas quais são esses eventos e personagens históricos que tanto inspiraram George R.R. Martin em sua maior criação? É o que você vai descobrir agora. (Mas atenção: se você não viu todas as temporadas, prepare-se. Tem um campo minado de spoilers aqui.)
Stark contra Lannister
Os Lannister como os Lancaster. Os Stark como os York. São muitas as semelhanças entre Game of Thrones e a disputa pelo poder entre essas famílias da Inglaterra medieval – um conflito histórico entre os dois ramos da dinastia dos Plantagenetas, que disputaram o trono da Inglaterra no século 15. Uma guerra que, 400 anos depois, no século 19, a fantasia do escritor Walter Scott rebatizou como “A Guerra das Duas Rosas” (1455-1485). A rosa vermelha, símbolo dos Lancaster, e a rosa branca, símbolo dos York. Uma alusão aos símbolos das duas casas. Foi desse episódio violento da história britânica que George R.R. Martin tirou inspiração para descrever a rivalidade mortal que opõe as duas grandes famílias de Westeros.
Por 30 anos, os membros dessas famílias, ambas descendentes dos filhos menores do rei Eduardo III, lutaram para ver quem ficava com o trono inglês. Os Lancaster eram nobres do sul da ilha, muito ricos, exatamente como os Lannister da ficção. Já os York eram nobres do Norte, como os Stark. A partir de 1455, as pretensões de Ricardo, Duque de York, começaram a se contrapor ao rei da Inglaterra, Henrique VI, um Lancaster, homem fraco e mentalmente instável, e à sua esposa, Margarida de Anjou. Após uma longa série de intrigas, alianças e batalhas, o filho de Ricardo se tornaria finalmente soberano com o nome de Eduardo IV.
Entretanto, após a morte desse rei, em 1483, seu irmão, um outro Ricardo (o Duque de Gloucester) decidiu tomar o poder à força. O morto havia deixado como herdeiros do trono duas crianças, Eduardo V e Ricardo de Shrewsbury, respectivamente de 12 e 9 anos. Mas, obcecado pela sede de poder, seu irmão não hesitou: declarou ilegítimos os dois sobrinhos e mandou prendê-los na terrível prisão da Torre de Londres. E os meninos nunca mais foram vistos. Foi assim que ele próprio se tornou Ricardo III.
Mas se engana quem achou que a disputa entre os York e os Lancaster terminasse aí. Afinal, era o trono da Inglaterra que estava em jogo.
Logo o nobre galês Henrique Tudor, descendente dos Lancaster, decidiu desafiar abertamente Ricardo. Ele se rebelou contra o rei, juntou um exército, mas acabou derrotado. Só que não desistiu. Fugiu para o norte da França ganhou apoio dos nobres locais, reuniu outro exército e desembarcou na Inglaterra para lutar novamente. E dessa vez ganhou, derrotando as forças do soberano na Batalha de Bosworth, de 1485 (graças também à traição de alguns nobres aliados do rei).
Ricardo acabou morto e o nobre rebelde, agora sem rivais, proclamou-se rei com o
nome de Henrique VII. Para ganhar ainda mais legitimidade no trono, ele não perdeu
tempo e se casou com a primeira filha de Eduardo IV, Isabel de York, inaugurando uma
nova era de paz na Inglaterra.
“Game of Thrones tem todo o seu enredo de fundo inspirado nesse episódio histórico, cheio de brutalidade, traições, guerras e intrigas”, explica o professor Rouse. “E, sendo tão ligada à realidade, a saga consegue despertar os arquétipos mais profundos e os sentimentos primários das pessoas, como raiva, ódio, paixão, amor. Isso tudo tem um efeito extremamente sedutor no público.”
Mas há diferenças, claro, entre a história real e a série produzida pela HBO. Na ficção,
os Stark não parecem tão interessados assim no trono, razoavelmente satisfeitos com seu antigo e tradicional papel de Protetores do Norte. Eddard “Ned” Stark aceita com relutância a promoção para o papel de “Mão do Rei” – uma espécie de primeiro cavaleiro –, que o inadequado soberano Robert Baratheon lhe impõe.
Somente com o assassinato traiçoeiro de Ned, o posterior massacre dos Stark e
a diáspora dos sobreviventes é que os membros da família são, enfim, forçados a entrar no “jogo dos tronos” contra os Lannister e seus muitos aliados.
Na história real, Ricardo de York só se tornou Lorde Protetor do Reino após a loucura de Henrique IV ficar mais que evidente. E começou justamente assim sua tentativa de conquistar o trono inglês. Mas existe um laço bastante convincente entre Ned e Ricardo: ambos são guerreiros experientes e homens de honra. E os dois acabam perdendo o trono, sendo decapitados e tendo suas cabeças hasteadas em lanças.
E não para por aí: a Guerra das Duas Rosas parece ter fornecido outras inspirações para a série, além da rivalidade entre as casas dos Stark e dos Lannister. O rei adolescente e malvado da saga, Joffrey Baratheon, tem pontos em comum com Eduardo de Lancaster, Príncipe de Gales e Duque da Cornualha, filho de Henrique VI.
Ambos nasceram como filhos ilegítimos. Ambos manifestaram uma loucura latente e tinham uma tendência ao sadismo. Já na frente feminina, existe paralelismo entre a rainha Cersei Lannister e a aguerrida Margarida de Anjou, mulher de Henrique VI e defensora das causas dos Lancaster.
Já Daenerys, última sobrevivente da antiga linhagem dos Targaryen, tem pontos de contato com a história aventureira de Henrique Tudor. Ambos foram forçados a um longo exílio além-mar. Ambos têm uma antiga e terrível vingança para ser honrada. Ambos têm um trono a reconquistar... Embora não se tenha notícia de que esse rei da Inglaterra possuísse dragões incendiários.
Voltando aos Stark versus Lannister, o próprio Martin admitiu ter se inspirado também
em outros episódios da História. Especialmente a Guerra Civil dos Armagnacs e Borguinhões (1407-1435), a luta entre dois ramos da família real francesa, a Casa de Orléans (facção dos Armagnacs) e a Casa de Borgonha (dos Borguinhões).
Esses dois clãs poderosos entraram em conflito num momento de enfraquecimento da
Coroa, com a chegada do “rei louco” Carlos VI de Valois. Em Game of Thrones, a guerra começa com a morte do rei Robert e a coroação de uma criança. Na França, diferentemente, a luta começou ainda durante o período de loucura do rei. Em ambos os casos, entretanto, o que no começo dava a impressão de não passar de uma rivalidade política acabou se tornando uma luta brutal pelo poder – e terminou em uma sangrenta guerra civil.
É interessante notar ainda como os símbolos das casas dos Lannister e dos Stark, o leão
e o lobo, são exatamente os dos Borguinhões e dos Armagnacs, respectivamente. Em uma famosa pintura do século 15, um lobo, simbolizando o duque Louis I d´Orleans, acaba morto com a patada de um leão, que representa Jean de Bourgogne.