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Matérias / Idade Média

Sobre dragões e donzelas: Romances de cavalaria

Eles foram narrados em praças por toda Europa. Difundiram um ideal impossível de honra e amor verdadeiro (mesmo se ilícito). E não tinham qualquer relação com cavaleiros reais

Tiago Cordeiro Publicado em 14/05/2019, às 18h00

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Pense num cavaleiro. Mas não se esforce: não falamos da figura real da História, guerreiros profissionais que lutavam em formação, às centenas, e cometiam, como é comum no ofício, atrocidades de todos os tipos. Pense no clichê da fantasia, dos filmes, séries, jogos e desenhos animados. O herói solitário e incorruptível, enfrentando criaturas fantásticas, fazendo o bem aos pobres e oprimidos.

Você acaba de reavivar na memória uma das figuras mais resistentes da imaginação ocidental. Uma que foi desconstruída há mais de 400 anos por Miguel de Cervantes e, ainda assim, vive.

Mas provavelmente pensou numa versão higienizada, filtrada para pudores muito posteriores à Idade Média. Porque, em seu drama humano, os fantasiosos romances de cavalaria não ficavam nada a dever a Game of Thrones em suas escandalosas intrigas.

Tragédia em família

A história começa por um amor proibido, entre o rei Dom Pedion de Gaula (o País de Gales, em português medieval) e a nobre Dona Elisena da Bretanha. O filho bastardo resultante dessa relação foi largado numa barca. Encontrado, acabou educado na arte da guerra por um cavaleiro chamado Gandales.

Chegando à idade adulta, Amadis não estava satisfeito. Queria conhecer suas origens e, por isso, lutou contra o monstro Endriago, coberto por escamas, cujo fedor era mortal. Escapou diversas vezes do mago Arcalaus. Contou com o apadrinhamento da uma feiticeira, Urganda. Entre indas e vindas, desencontrou-se várias vezes de sua amada, Oriana, filha do rei da Bretanha, Dom Lisuarte. Separado da amada, decidiu ficar “louco”.

A luta de Amadis contra o monstro Endriago / Crédito: Wikimedia Commons

Seguindo os passos de seus pais, Amadis e Oriana consumaram seu amor ilicitamente, sexo fora do casamento. Acabam por oficializar a relação, mas a história não tem um final feliz. Amadis termina morto por seu próprio filho, Espladian, que queria vindicar a honra da mãe. Que se joga de uma janela e encerra a própria vida.

O original foi escrito em Portugal, em três volumes, por volta de 1300. Tradicionalmente sua autoria era atribuída ao cavaleiro Vasco de Lobeira, mas em tempos recentes isso tem sido revisto para o trovador João de Lobeira por historiadores. O livro era mencionado por vários autores, mas a edição mais antiga sobrevivente é a de Garcia Rodríguez de Montalvo, em 1508.

Montalvo afirmou ter achado um original num baú — e essa versão acabou perdida. Não gostou do fim e resolveu escrever um texto extra, mudando todo o final e concedendo ao casal a bênção real e uma vida longa e feliz. Se o Amadis de Gaula original tinha três livros, Montalvo acrescentou então um quarto. O sucesso foi tão grande que ele escreveria depois um quinto livro. Em poucas décadas, havia mais sete continuações circulando por toda a Europa, em versões que vão do francês antigo ao hebraico. Um feito de fazer inveja a Harry Potter.

Língua do povo

A obra portuguesa segue todos os padrões comuns às novelas de cavalaria. O título é dado em referência ao herói principal, que é sempre um homem, nobre, que combina capacidade militar com educação esmerada. Ele está constantemente em movimento, passa por lugares reais e outros imaginários com a mesma desenvoltura, e enfrenta grandes desafios para mostrar seu valor para a mulher amada, que, com frequência, é casada ou leva uma vida religiosa num monastério.

“As novelas de cavalaria têm como heróis cavaleiros que correm o mundo em demanda de justiça, mas também de fama”, afirma Graça Videira Lopes, professora de literatura portuguesa da Universidade Nova de Lisboa. “O que têm em comum é partirem todas do ideal de cavalaria, tal como ele é definido na Idade Média, assente nos valores da honra, justiça e defesa dos mais fracos, particularmente donas e donzelas.”

Amadis representa um dos últimos momentos dessa tradição literária que vinha evoluindo desde o século 12. As histórias começaram como poemas a serem cantados por trovadores e caminharam até formar conjuntos completos de obras, que interagiam entre si. Os personagens se somavam e se complementavam. Toda a mitologia em torno do rei Artur foi construída assim.

Um dos volumes da obra Amadis de Gaula / Crédito: Wikimedia Commons

Eram narradas em língua popular, as versões em desenvolvimento de inglês, francês, alemão, castelhano, português, ou mesmo a língua anglo-normanda, praticada entre o norte da França e o sul da Inglaterra, ou a ocitana, usada ao sul do território francês. O idioma oficial do continente, usado em documentos reais, tratados comerciais e pela Igreja Católica, era o latim, mas os ouvintes e leitores preferiam acompanhar os dramas de cavaleiros e donzelas do jeito que falavam no dia a dia. Na verdade, muito mais ouvintes do que leitores, porque apenas uma parcela residual da população era alfabetizada.

Foi dessa forma que se disseminaram diferentes obras, sobre Artur, a feiticeira Morgana, o cavaleiro Lancelote, o mago Merlin. Hoje os críticos literários dizem que esse conjunto de trabalhos forma o ciclo bretão, composto de temáticas ligadas à Távola Redonda. Foi, de longe, o mais popular. As últimas novelas de cavalaria tradicionais, publicadas ao longo do século 16, ainda se inspiravam nesses personagens.

Havia outros dois ciclos. Um deles, o menos praticado, era o clássico, que resgatava histórias e mitos da Antiguidade, incluindo os feitos de Alexandre, o Grande, o drama da Guerra de Troia e a participação dos deuses gregos nesses acontecimentos. E havia também o ciclo carolíngio, centrado na figura de outro rei, o franco Carlos Magno, que governou entre o século 8 e o início do 9. A Canção de Rolando (ou Orlando), uma das mais influentes novelas de cavalaria de todas, trata de um sobrinho do rei, um herói morto para defender seu povo.

Hérois e monstros 

No enredo, o conde Rolando é decisivo na batalha de Roncesvales, um confronto real que aconteceu entre os francos e os bascos no ano 778. Não se sabe se Rolando existiu de fato, apesar de haver estátuas dele em diferentes lugares do continente, e o livro transforma os bascos em muçulmanos (fruto da tensão crescente que levaria às cruzadas).

Mas os feitos do conde, vítima de um gesto de traição de seu padastro, Gamelão, fizeram um sucesso enorme. A primeira versão tinha cerca de 4 mil versos. À medida que os trovadores contavam a história, acrescentavam trechos. No século 13, 200 anos depois do surgimento da A Canção de Rolando, já havia edições com mais de 9 mil versos.

A morte de Rolando / Crédito: Wikimedia Commons

A obra é cheia de acontecimentos fantásticos. O rei Carlos Magno, por exemplo, sempre conversa com um anjo que o ajuda, fazendo o Sol parar de se mover para que batalhas em que ele está vencendo possam seguir. Quando Rolando morre, o anjo diz a ele: “Cavalga, Carlos, pois a ti a claridade não falta. Tu perdeste a flor da França. Deus sabe. Podes te vingar da corja criminosa!”. O imperador sobe no cavalo e, de fato, o Sol fica parado no meio do céu.

Seres fantásticos também são constantes. Em Romance da Rosa, escrita em versos em 1230 por Guillaume de Lorris e ampliada em 1275 por Jean de Meun, o protagonista supera um guerreiro de 15 metros e luta contra dragões. Seu filho é salvo por um grifo, criatura com corpo de leão e asas e cabeça de águia.

“A matéria principal desse tipo de romance é a vida luxuosa de uma sociedade elegante e com hábitos cuidadosamente estabelecidos”, explica Demétrio Alves Paz, professor de teoria literária da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). “O herói principal passa por uma série de adversidades, enfrentando desde outros cavaleiros até monstros, como gigantes, e algumas vezes seres sobrenaturais, como bruxas e espíritos.”

Os romances de Rolando deixam claro o quanto é uma tarefa difícil atribuir autoria para as novelas. As histórias se tornavam bens públicos conforme eram contadas e recontadas. O poeta e trovador Chrétien de Troyes é um caso raro de autor conhecido. Entre 1170 e 1190, ele publicou cinco histórias, todas ligadas ao rei Artur. Foi Troyes quem criou a figura do nobre cavaleiro Lancelote, atormentado pelo amor à esposa do monarca, Guinevere. Artur, na versão de Troyes, é um rei fraco e distante, que cuida mal do reino e da própria família.

Código de conduta 

Aliás, as novelas de cavalaria rompiam com uma série de costumes da época, incluindo o casamento por conveniência. Os romances enalteciam o amor, mesmo quando ele não deveria acontecer — caso de Lancelote e Guinevere, Tristão e Isolda, Curial e Guelfa. Amadis de Gaula, como já falamos, faz sexo com sua amada Oriana muito antes de eles se casarem, e por iniciativa dela. Na maioria dos casos, mas não sempre, esse amor é punido com a morte de ambos os envolvidos, mas o leitor e ouvinte é levado a sofrer com o destino infeliz dos dois.

As novelas também idealizavam a cavalaria, que, na vida real, era muito mais sanguinolenta e menos adepta de códigos rígidos de conduta. Nesse caso, tudo indica que o objetivo dos autores era popularizar as boas ações e valorizar os guerreiros medievais que se portassem com nobreza e bons modos. É como se essas obras apresentassem um ideal de vida a ser seguido pelos militares.

O cavaleiro Lancelote / Crédito: Wikimedia Commons

Mesmo com a defesa do amor carnal e com feiticeiros bonzinhos ajudando os heróis, as novelas de cavalaria são fundamentalmente cristãs. Demônios são temidos, encarados e derrotados, e o arrependimento dos pecados cumpre um papel muito importante – nas obras do escritor francês Robert de Boron, por exemplo, o mago Merlin é filho de uma humana com um demônio, mas sua mãe se salvou no momento em que reconheceu seus pecados e aceitou o batismo.

Boron viveu entre os séculos 12 e 13 e escreveu trabalhos influentes, como José de Arimateia, uma obra em versos que seria a primeira a defender a ideia de que o Santo Graal é um cálice usado para coletar o sangue de Cristo — versões posteriores, adotadas, por exemplo, pelo filme Indiana Jones e a Última Cruzada, argumentariam que o cálice, na verdade, foi usado na Santa Ceia.

Por volta do século 15, as histórias vinham sendo compiladas em versões escritas. Foi o caso de Amadis de Gaula, e também de A Morte de Artur, uma obra publicada em 1485 e de autoria de um nobre britânico chamado Thomas Malory. Foi quando as novelas de cavalaria experimentaram um último ciclo de expansão, desta vez na Península Ibérica. Se antes boa parte dos textos era produzida ao norte da França, usando como base lendas francesas ou inglesas, na última fase foram escritores castelhanos e lusitanos que desenvolveram seus próprios circuitos de textos.

O sucesso de Amadis levou ao surgimento, por exemplo, de uma novela muito popular, chamada Palmeirim de Inglaterra, escrita por Francisco de Moraes. E também da saga de Curial, um herói educado na casa de um marquês e que parte pelo mundo para cumprir uma série de desafios. Os relacionamentos amorosos do texto são dignos de novela mexicana: Curial e Guelfa, irmã do marquês que o criou, se amam, mas os dois se veem envolvidos por várias outras pessoas — um cavaleiro chamado Boca de Far faz de tudo para conquistar o amor de Guelfa, enquanto que Láquesis, filha do duque da Baviera, cai de amores por Curial.

Perseguido por figuras legendárias, como os deuses gregos Netuno, Juno e Dione, ele visita a Grécia e também as praias de Trípoli, na costa da Líbia, onde é escravizado e recebe as atenções de uma nobre muçulmana, Camar. Quando Curial recusa o amor de Camar, ela se mata. O cadáver é jogado numa cova de leões, junto com o herói, ainda vivo. Pois ele mata todos os animais, um a um, e ainda evita que o cadáver da moça seja profanado.

A descontrução e a volta 

Amadis é citado várias vezes em Dom Quixote de La Mancha. Miguel de Cervantes publicou sua obra clássica em duas partes, em 1605 e 1615, quando os romances de cavalaria já eram um gênero cansado e caricato.

Não por coincidência, os próprios cavaleiros haviam ficado para trás. Sua função havia sido superada por duas criações: exércitos organizados de soldados com piques, lanças de até 6 metros, que impediam os cavalos de se aproximarem, e armas de fogo, que os matavam a distância. Essa era ainda uma formação típica da virada do século 16 para o 17 — piques continuariam a ser importantes até o desenvolvimento da baioneta, no final do 17, e só seriam mesmo abandonados no 19.

Em Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura enxerga gigantes em moinhos — e é derrotado por eles! Participa de batalhas imaginárias, cheias de fantasia, se perde em meio a vilões e donzelas que nunca existiram. O herói de Cervantes, por exemplo, elabora frases pomposas para sua musa, Dulcineia, que o autor faz questão de comentar: “E como estes ia tecendo outros disparates, todos pelo teor dos quais havia aprendido nos seus livros, imitando, conforme podia, o próprio falar deles; e com isso caminhava tão vagaroso, e o sol caía tão rijo, que de todo lhe derretera os miolos se alguns tivera.”

Dom Quixote e Sancho Pança / Crédito: Wikimedia Commons

“A machadada final nas novelas de cavalaria foi dada por Cervantes, com o seu Dom Quixote de La Mancha, novela que satiriza todo esse universo cavaleiresco, a partir do anti-herói Dom Quixote e seu fiel pajem Sancho Pança”, afirma a professora Graça Videira.

Romances de cavalaria não seriam mais escritos. Mas isso não quer dizer que suas ideias morreriam para sempre. O Romantismo, no começo do século 19, buscou resgatar valores de uma Idade Média idealizada. Heróis em missão a lugares fantásticos e distantes, amores impossíveis, vitórias extraordinárias voltaram à voga. O Senhor dos Anéis é basicamente uma reimaginação moderna do espírito desses romances. E mesmo a cínica Canção de Gelo e Fogo (Game of Thrones), que se inspirou na Idade Média como realmente era, não foge a ter um guerreiro puro, Jon Snow, e uma cavaleira andante, Brienne de Tarth.

“Em relação à ética e à moral, os heróis sempre têm conduta ilibada, por isso representam o que se acreditava na época ser o melhor em valores: família (ancestralidade), soberano (pátria) e amor (realização pessoal e dinástica)”, diz o professor de teoria literária Demétrio Alves Paz. “Essa idealização persiste até hoje em bestsellers, romances de fantasia heroica, filmes, séries que retratam a Idade Média.”

Como afirma Graça Videira, “muitos dos heróis e histórias das novelas de cavalaria passaram para a tradição oral e estão na origem de muitos romances populares brasileiros e também muitos dos chamados romances de cordel”.