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Matérias / Brasil

Rio de fogo: Revolta da Cachaça

Em 1660, os donos de alambiques tomaram o poder no Rio de Janeiro

Ernani Fagundes Publicado em 08/11/2018, às 07h00

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Os donos de alambiques foram derrotados, mas ganharam o respeito de Portugal - iStock
Os donos de alambiques foram derrotados, mas ganharam o respeito de Portugal - iStock

Desde 1994, a cachaça é definida como “produto cultural” do nosso país. Em meados do século 17, entretanto, a legislação sobre a bebida era bastante diferente. O Brasil era uma colônia, e os portugueses não permitiam que a aguardente fosse vendida. Embora as autoridades coloniais fizessem ameaças e apreensões, fazendeiros desafiavam a proibição para produzir cachaça.

A região da então capitania do Rio de Janeiro concentrava boa parte dos alambiques. Em 1660, mesmo ano em que a Câmara dos Vereadores do Rio foi proibida de liberar o comércio da aguardente, os alambiqueiros fluminenses lideraram uma rebelião. Tomaram o poder e governaram a cidade por cinco meses. O movimento, conhecido como Revolta da Cachaça, foi derrotado, mas os produtores da bebida deixaram claro que mereciam ser respeitados. Conseguiram o perdão da coroa portuguesa e abriram caminho para a legalização da cachaça.

A história da mais brasileira das bebidas começou cerca de um século antes do levante. Em 1532, o colonizador Martim Afonso de Souza trouxe mudas de cana-de-açúcar para a vila de São Vicente (hoje uma cidade no litoral de São Paulo). A cachaça surgiu poucos anos depois, quando alguém decidiu destilar resíduos do caldo de cana. Os engenhos de açúcar se espalharam pelas capitanias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. E a cachaça seguiu o mesmo caminho.

Se a bebida fez a alegria de colonos e nativos, a coroa portuguesa não achou graça na novidade. Portugal produzia sua própria aguardente, a bagaceira, a partir do bagaço de uva. Se o Brasil lançasse no mercado um produto semelhante, isso significaria mais concorrência e menos lucro para os produtores de Portugal. Assim, em 1635 surgiu a primeira lei proibindo o consumo da cachaça. Mas, como o poder de fiscalização das autoridades coloniais era pequeno, a bebida continuou sendo produzida e vendida.

Em 1647, foi criada a Companhia Geral do Comércio. Essa empresa portuguesa passou a ter o monopólio da venda de vários produtos nas colônias, incluindo as bebidas alcoólicas. Mas não adiantou muito: a aguardente brasileira fazia tanto sucesso que, no mesmo ano, começou a ser contrabandeada para Angola, também dominada por Portugal.

O açúcar amargou

Em meados do século 17, o comércio de açúcar havia transformado o Rio de Janeiro em um dos maiores polos econômicos do império português. Mas, longe dali, um acontecimento mudaria muito a vida fluminense. Em 1654, os invasores holandeses foram expulsos de Pernambuco e começaram a produzir açúcar nas Antilhas. Em poucos anos, a concorrência acabou arrasando a economia do Rio, cujo açúcar era de baixa qualidade. Enquanto o lado legal do mercado canavieiro fluminense ia para o buraco, o ilegal florescia. No fim da década de 1650, a cachaça vendia como nunca. Os alambiqueiros não se escondiam por causa de sua atividade clandestina. Muitos deles eram conhecidos fazendeiros, influentes na administração da capitania do Rio de Janeiro.

A paz durou até 1659. Foi quando a coroa portuguesa emitiu uma ordem que proibia, de novo, o comércio da aguardente. Mas, dessa vez, houve repressão. Alambiques foram destruídos. Os homens que neles trabalhavam foram ameaçados de multa e deportação para a África. A reação dos alambiqueiros foi se concentrar no contrabando para Angola, onde a cachaça se tornou moeda de troca no mercado de escravos.

Escravos em um engenho de açúcar Wikimedia Commons

No início de 1660, Salvador Correia de Sá e Benevides assumiu o cargo de capitão-general da Repartição Sul do Brasil, que se estendia do atual Espírito Santo até onde hoje é o estado de São Paulo. Ele já tinha comandado a cidade do Rio no passado e era membro de uma família tradicional da política fluminense descendia de Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil. Para mostrar serviço, o novo governante decidiu aumentar os impostos.

No início, a ideia era cobrar uma taxa sobre as posses dos moradores. Diante da crise econômica, a Câmara do Rio rejeitou a proposta. Como a cachaça seguia dando lucros, os vereadores sugeriram que a venda dela fosse liberada com a cobrança de impostos. Isso aumentaria a arrecadação e, ao mesmo tempo, diminuiria as dores de cabeça dos alambiqueiros. Salvador de Sá concordou, e a medida foi decretada em 31 de janeiro de 1660. O problema é que a decisão contrariava as leis de Portugal. Após o protesto da Companhia Geral do Comércio, o capitão-general teve que voltar atrás. A bebida continuou proibida e Salvador de Sá pressionou a Câmara a aprovar o intragável imposto sobre a riqueza dos cidadãos.

Poder de fogo

Em setembro de 1660, Salvador de Sá viajou para São Paulo e colocou Tomé Correia de Alvarenga, seu tio, no governo do Rio. A principal orientação era botar soldados na rua para cobrar a nova taxa. Do outro lado da baía da Guanabara, os moradores da freguesia de São Gonçalo do Amarante se revoltaram contra o imposto. O fazendeiro Jerônimo Barbalho, um dos principais produtores de cachaça da região, rapidamente se tornou líder do povo enfurecido. Numa madrugada do início de novembro, um grande grupo de rebeldes atravessou a baía e chegou ao Rio. Diante da Câmara, Barbalho deu um ultimato, exigindo o fim das taxas e o reembolso de tudo o que já havia sido pago pela população.

Tomé Correia de Alvarenga aceitou as condições de Barbalho, mas a presença de um parente do odiado Salvador de Sá no governo incomodava os rebeldes. Na manhã de 8 de novembro, eles pegaram em armas e convocaram o povo para uma reunião. Alvarenga percebeu que os soldados cariocas estavam ao lado dos revoltosos e fugiu. Enquanto uma multidão saqueava as casas de Salvador de Sá e de seus parentes, a assembleia popular elegeu Agostinho Barbalho, irmão de Jerônimo, como novo governador. O problema é que Agostinho, que estudava num convento franciscano, não estava a fim de assumir o poder. Mas a multidão, com Jerônimo Barbalho à frente, o arrancou de lá. Ameaçado de morte, ele aceitou o "convite". Foi aclamado governador num ato que contou com a assinatura de 112 senhores de engenho.

No poder, o precavido Agostinho logo jurou fidelidade a Portugal. Informado da rebelião, em São Paulo, Salvador de Sá aceitou Agostinho como governador. Mas o franciscano resistiu no poder só até 8 de fevereiro de 1661. A nova Câmara da época resolveu colocar o radical Jerônimo Barbalho no cargo. Ele não demorou a se embriagar com o poder. Dispensou militares e perseguiu jesuítas, acusando-os de colaborar com Salvador de Sá. O povo logo começou a se opor ao autoritarismo do novo governo.

Barbalho não duraria muito no cargo, pois Salvador de Sá se preparava para retomar a cidade. Ele pediu reforços da Bahia, que chegaram ao litoral fluminense no início de abril. Antes do amanhecer do dia 6, acompanhado por suas tropas particulares, o capitão-general entrou no Rio, enquanto os soldados baianos desembarcavam na praia. Por causa da surpresa, não houve resistência.

Ainda pela manhã, Salvador de Sá montou uma corte marcial. Ao longo do dia, rebeldes foram condenados à prisão. A Jerônimo Barbalho coube a pena de morte. Numa carta de 10 de abril, o capitão-general informou ao rei português Afonso VI que mandara enforcar Barbalho ao anoitecer do dia 6, expondo sua cabeça em público. Explicou que o castigo serviria para desencorajar qualquer outra tentativa de rebelião.

O Conselho Ultramarino de Portugal, que cuidava das colônias, não tinha ficado nem um pouco satisfeito com a revolta. Mas tampouco gostou do castigo excessivo dado a Barbalho. Salvador de Sá foi afastado do governo e teve que responder a um processo. As autoridades concluíram que ele havia sido autoritário demais e que a Revolta da Cachaça tinha sido justa, afinal. "Os revoltosos acusaram Salvador de Sá de ter tentado tomar o lugar do rei na colônia", diz Antônio Pereira Caetano, professor de História da Universidade Estadual de Alagoas. "Os demais líderes do movimento foram perdoados pela revolta e condecorados pela lealdade ao rei."

Ainda em 1661, a rainha de Portugal, a regente Luísa de Gusmão, resolveu permitir a fabricação da aguardente no Brasil. Os alambiqueiros tinham motivos de sobra para comemorar. Mas provavelmente não fizeram isso tomando cachaça: por achar a bebida pouco refinada, preferiam o vinho português.

Um brinde à liberdade

Aguardente virou símbolo das lutas pela independência do Brasil

Uma das reuniões dos inconfidentes de Minas, que eram regadas a cachaça Wikimedia Commons

Apesar de terem assumido o poder no Rio de Janeiro e desobedecido as leis coloniais, os líderes da Revolta da Cachaça nunca chegaram a questionar o domínio de Portugal sobre o Brasil. Tempos depois, no século 18, a bebida voltaria ao centro de uma revolta. Mas, dessa vez, a independência do país estava entre as reivindicações. Em 1789, os intelectuais, padres e militares envolvidos na Inconfidência Mineira tomavam cachaça como forma de protestar contra Portugal. O próprio Tiradentes, personagem mais famoso do movimento, teria dito "Molhem a minha goela com cachaça da terra" antes de ser enforcado. O padre Domingos Xavier, inconfidente e irmão de Tiradentes, fabricava cachaça em seu alambique (que funciona até hoje no sul de Minas Gerais) e a servia nos encontros secretos dos conspiradores. Em 1817, a cachaça voltou a ser símbolo do nacionalismo brasileiro. Foi na Revolução Pernambucana, que promoveu um boicote aos produtos vindos de Portugal. A "aguardente da terra", como era chamada, foi escolhida como bebida antilusitana. Luís da Câmara Cascudo, no livro Prelúdio da Cachaça, conta que o padre João Ribeiro, um dos líderes do movimento pernambucano, se recusava a brindar com bebidas europeias. Optava sempre pela cachaça.

Saiba mais

Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola 1602-1686, Charles Boxer, Cia. Editora Nacional, 1973