Conhecidas como "coprólitos", fezes continham ossos, escamas e uma presa inteira. Arqueólogos consideram o consumo ritual do animal.
Recontar a história de populações humanas é um trabalho árduo. Em um sítio arqueológico, onde o requisito mais básico é a atenção, objetos ou artefatos que parecem sem valor muitas vezes são a chave para a reconstrução de práticas alimentares, costumes rituais ou características físicas dos povos estudados. E uma das áreas que melhor demonstram isso é o estudo dos coprólitos, termo técnico para caracterizar fezes de humanos e animais. Encontrar essas amostras é motivo de satisfação aos pesquisadores, pois os coprólitos fornecem informações valiosas sobre práticas alimentares, doenças e dieta em geral.
No final da década de 1960, arqueólogos norte-americanos coletaram mais de mil amostras de coprólitos em um sítio pré-colombiano chamado Conejo Shelter, no sudoeste do Texas -- mas nem todos os exemplares tiveram uma análise aprofundada, deixando-se várias descobertas para cientistas posteriores.
Pesquisadores liderados pelo antropólogo Elanor Sonderman da Texas A&M University lançaram recentemente um novo olhar sobre essas amostras, demonstrando seu grande potencial: em um dos coprólitos havia vestígios de ossos, escamas e a presa inteira de uma cobra venenosa da família Viperidae. Em artigo publicado no Journal of Archaeological Science: Reports, que pode ser visto aqui, os cientistas afirmam que os restos encontrados são “a primeira evidência arqueológica direta do consumo de cobras venenosas”, representando provavelmente práticas ritualísticas dos povos locais.
A datação por radiocarbono de um dos coprólitos evidenciou seu surgimento no local entre 1460 e 1528 anos atrás. Nessa época, a região era ocupada por um grupo de caçadores-coletores conhecido como Puebloans Ancestrais ou Anasazi, cujos vestígios arqueológicos demonstram conhecimentos em tecelagem, irrigação e produção cerâmica. Vivendo em partes do que hoje são as regiões de Utah, Arizona, Novo México e Colorado, esses povos prosperaram durante cerca de 4 mil anos, sendo substituídos pelos povos Zuni e os Hopi.
Na mesma amostra, também foram encontradas evidências do consumo de plantas medicinais como as da família Liliaceae e restos de um pequeno roedor que teria sido consumido integralmente, sem indícios de cozimento ou preparo. O consumo integral de pequenos animais já era prática conhecida nessa cultura, mas a ingestão de uma cobra venenosa -- que provavelmente levou seu consumidor à morte -- foi um ato excepcional, feito provavelmente por razões cerimoniais, e não pela nutrição.
Essa cultura, que vivia nos chamados Pecos Inferiores, precisava lidar com as condições adversas dos desertos, encontrando no consumo de roedores, peixes e répteis uma solução nutricional abundante, e no uso da vegetação local uma possibilidade para a produção de sandálias, cestos e esteiras. Outra característica desses povos é sua elaborada e extensa arte rupestre, onde frequentemente se encontra referência a serpentes venenosas.
O último parágrafo do artigo citado é um belo resumo sobre a interpretação dessa descoberta um tanto curiosa:
"A recuperação dos restos do esqueleto Viperidae de um coprólito humano é notável, não só devido à raridade de tal ocorrência, mas também porque esta descoberta fornece um vislumbre dos comportamentos ritualísticos de sociedades de pequena escala. Propomos que a ingestão de uma cobra venenosa inteira não seja um comportamento típico dos ocupantes do Pecos Inferior ou do Abrigo Conejo. Também está claro, a partir de [análises culturais comparativas] e arte rupestre desta região, que as serpentes detêm significado ritual para as populações indígenas do Pecos Inferior. Propomos que uma explicação provável para a ingestão de uma cobra inteira é que o indivíduo o fez por um propósito distintamente cerimonial ou ritualístico."