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Matérias / Comportamento

Por que crianças não podem ser consideradas psicopatas?

Apesar de parecerem inocentes, crianças já foram responsáveis por crimes tão cruéis que chocaram até mesmo os adultos. Mas por que ão podemos considerá-las psciopatas?

Fabio Previdelli
por Fabio Previdelli
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Publicado em 22/09/2024, às 14h00

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Imagem ilustrativa - Getty Images
Imagem ilustrativa - Getty Images

'As aparências enganam'. A frase já é batida, mas quase nunca deixa de estar certa. Afinal, quem poderia imaginar que por trás de rostinhos angelicais, crianças esconderiam as mais obscuras intenções?

Nesse território sombrio da mente humana, raivas, frustrações e os mais diversos traumas pode desencadear atos de extrema violência. Mas o que molda a psicopatia infantil? 

E é justamente tentado desvendar esses segredos da mente dos pequenos, que o autor do site 'O Aprendiz Verde', Daniel Cruz, lançou recentemente pela Darkside Books o livro 'Anjos Cruéis', que resgata histórias reais de crianças que cometeram crimes tão bárbaros que botam medo até mesmo nos adultos. 

Os motivos são os mais diversos e, nesse sentido, crianças não diferem dos adultos, pois, elas matam movidas por ódio, vingança, inveja, ciúme, impulso, raiva, rancor, estresse e utilizam para isso os mais variados métodos e instrumentos", explica Daniel em entrevista exclusiva à equipe do site Aventuras na História. 
Livro
Capa do livro "Anjos Crueis" - Divulgação

Enquanto alguns agem por impulsividade ou raiva momentânea, outros possuem elaborados planos de assassinato. Uma parcela dos pequenos criminosos sequer tem noção alguma do que acabaram de fazer ou estão tão perdidos em seus fantasiosos mundo infantis. Mas, também existem aqueles que sofrem com perturbações mentais tão graves que chocam qualquer especialista. 

"Fatores sociais e de época também têm uma boa influência no comportamento homicida infantil. Há mais de cem anos, crianças pobres começavam a trabalhar desde a mais tenra idade. Meninas, por exemplo, executavam tarefas domésticas e de babá. Há vários casos de crianças-babás que mataram bebês ou crianças menores que cuidavam simplesmente porque queriam se desfazer de sua obrigação e ir brincar ou fazer coisas de criança", explica o autor. 

O homem nasce bom? 

Uma questão que intriga a sociedade há séculos parece simples, mas é muito mais complexa do que muitos imaginam: o homem nasceu bom e a sociedade o corrompe ou homem nasceu mau e só não é mau quando precisa ser bom?

Daniel recorda que a pergunta já foi refletida por alguns dos cérebros mais notáveis de nossaHhistória, mas que ainda estamos longe de uma resposta definitiva. Mas, ao longo dos anos, a ciência tem fornecido informações sobre o questionamento. 

"Em 1990, pesquisadores da Universidade de New Jersey fizeram estudos com bebês e concluíram que era possível identificar o sentimento de raiva em bebês de apenas quatro semanas", aponta o autor (saiba mais sobre o estudo clicando aqui!). 

Já em 1999, um estudo canadense realizado em 511 bebês mostrou que 80% deles demonstrava comportamentos de agressividade e quase 4% se comportou de maneira que os cientistas definiram como "cruel" — alguns de forma recorrente. 

+ O ‘Estudo Monstro’ que traumatizou crianças órfãs;

O psicólogo americano Wendell Johnson em pintura de Cloy Kent - Reprodução

Os estudos feitos em bebês se mostraram constantes ao longo dos anos por um ponto importante: eles ainda não foram contaminados pela sociedade. "Esses estudos acabaram enfraquecendo as ideias de pessoas como o filósofo Jean-Jacques Rousseau e o psicólogo Albert Bandura, duas vozes preeminentes em seus tempos que acreditavam que o ser humano nascia bom, mas era corrompido pela sociedade, sendo o seu comportamento agressivo algo aprendido", diz Daniel

Outras descobertas, como os genes ligados aos comportamentos antissociais, também levam a uma reflexão sobre se a agressividade e maldade não seriam resultados do livre arbítrio em um mundo instigador da violência, mas sim características intrínsecas de uma parte dos nascidos na espécie humana, com origem genética.

Estudo de casos e prevenção futura

Apesar da quantidade de casos relatados por Daniel Cruz em 'Anjos Cruéis', o autor aponta que é importante salientar que o homicídio infantil é um ato extremamente raro. 

Na maioria dos casos há uma explicação satisfatória e os fatores envolvidos invariavelmente passam por nossa incompetência enquanto indivíduos que compõem uma sociedade indiferente, inculta e atrasada", diz. 

Então, quais fatores podem explicar esses comportamentos e como eles podem ajudar na prevenção futura de crimes? Para chegar aos 25 crimes principais (mais os 36 casos cruéis esquecidos no tempo) que compõe o livro, Daniel estudou mais de 230 casos e aponta que o instrumento mais utilizado por crianças para matar é a arma de fogo

"São casos em que crianças sabem que existe um revólver ou espingarda em casa, muitas vezes usado como adorno na estante da sala, e o pegam para resolver um entrevero infantil, para atirar no próprio pai/mãe que lhe negou uma vontade ou para mostrar/intimidar colegas de escola, o que acaba terminando em tragédia. Nestes casos, é evidente a irresponsabilidade parental", explica. 

Em um dos casos citados no livro, um menino de 12 anos — que cometeu assassinato em massa — foi educado com armas variadas em casa. "A família o instigava a atirar em animais. Eles chamavam isso de 'esporte'".

Assim, Daniel aponta que entender esses casos se torna uma ferramenta valiosa não apenas para tentar antecipar uma tragédia. "Normalmente, pensamos em homicídio ou maldade como um fato isolado, algo que aconteceu em uma família muito distante da nossa. Entretanto, ninguém pode dizer quem será a próxima vítima". 

Imagem ilustrativa - Imagem de Lisa Runnels por Pixabay

"Se os pais souberem identificar uma criança com a psicologia deformada, por exemplo, eles poderão buscar ajuda e atuar para que a criança se desenvolva em um adulto honesto e, quem sabe, altruísta. Sem qualquer ajuda, sendo tratada de maneira indiferente ou apanhando porque os pais não compreendem a sua patologia, a criança poderá se desenvolver em um adulto psicopata que se casará com a sua filha ou entrará para a política, podendo destruir toda uma geração".

Transtorno de conduta 

O Transtorno de Conduta é um dos transtornos psiquiátricos mais frequentes em jovens (com cerca de 1 a 10% de prevalência em crianças e adolescentes) e um dos maiores motivos para encaminhamento ao psiquiatra infantil, conforme apontam S. S. Lee e S. P. Hinshaw em Conduct and oppositional defiant disorders. 

O Transtorno de Conduta, explica Daniel, pode ser definido como a violação dos direitos básicos de outros e das normas e valores sociais. "É manifestado através de comportamentos antissociais e agressivos. Os acometidos possuem atitudes provocadoras, constantemente desafiando as leis e os valores da sociedade".

Usando um exemplo da prática clínica, o autor relembre que é comum escutar histórias sobre crianças incorrigíveis que ameaçam e puxam facas para os pais, sendo alguns tão perturbados que usam o próprio excremento para sujar paredes ou atirar em membros da família. 

"Elas mentem descaradamente, ameaçam, intimidam, provocam conflitos físicos, roubam, matam aulas e até podem fugir de casa ou serem cruéis com animais ou pessoas, e isso inclui a coação de atividade sexual. Existem aquelas que ameaçam ou efetivamente agem para destruir coisas, incluindo propriedades", aponta.

Um exemplo trazido por Daniel em 'Anjos Cruéis' diz repeito ao caso de Sharon Carr, uma menina de 12 anos que cometeu um crime tão bárbaro que chegou a ser comparada com Jack, o Estripador

Ilustração de 1888 relacionada ao assassino Jack, o Estripador - Domínio Público via Wikimedia Commons

"Ela cresceu torturando e matando pequenos animais. Antes dos 11 anos já fugia de casa e era uma figura provocadora e intimidante até para outros jovens delinquentes e mais velhos que conheceu nas ruas. Ela matava aulas, preferindo as atividades ilícitas", relembra. 

Apesar da incidência dos casos, Daniel Cruz ressalta que crianças e adolescentes com transtorno de conduta não estão condenados a uma vida criminosa, muito menos serão futuros assassinos. "Além disso, existem tratamentos especializados que podem levar a uma melhora considerável dos sintomas, dando ao indivíduo a chance de viver uma vida completamente funcional".

Psicopatia infantil?

Por fim, Daniel reacende uma discussão interessante polêmica ao longo dos anos: apesar de diverso crimes bárbaros cometidos pelas crianças, por que não devemos chamá-las de psicopatas infantis? 

Um dos que defende o não uso do termo trata-se do pesquisador e psicólogo infantil chamado Richard Tremblay. "Durante um encontro internacional de pesquisadores em comportamento antissocial de crianças, foi estabelecido que não se deveria rotular crianças pequenas com determinados jargões psiquiátricos". 

Não porque era errado, mas porque a sociedade simplesmente não estava preparada para lidar com tal realidade", continua. 

Daniel aponta que, segundo estudos, a psicopatia tem entre 50% e 70% de origem genética, e se desenvolve ao longo do tempo. "Sem exceção, todo psicopata adulto mostrou pela primeira vez sinais de psicopatia na adolescência ou infância. O que isso quer dizer? Quer dizer que para cada adulto psicopata que anda nas ruas neste momento, um dia existiu uma criança 'psicopata'". 

"Inclusive, existem ferramentas de diagnóstico desenvolvidas para aplicação em crianças, incluindo a PCL:YV. Outra ferramenta, a APSD (Antisocial Process Screening Device), detecta traços de psicopatia em crianças a partir dos quatro anos — nesse sentido, a ciência hoje tem ido tão longe ao ponto de investigar o que os cientistas chamam de ‘atipicidades’ em bebês", prossegue.

Porém, na realidade prática, explica o autor, nenhum médico ou psicólogo irá rotular uma criança como psicopata por duas razões principais: o estigma e a possibilidade de reversão. Afinal, uma criança que apresenta sintomas vistos em adultos psicopatas não necessariamente se desenvolverá para apresentar a perturbação quando adulta. 

"O que acontece para que isso seja interrompido é um mistério e existem várias teorias. Sendo assim, pesquisadores e profissionais da saúde mental se referem a essas crianças usando palavras e expressões diferentes, sendo a mais comum no mundo acadêmico a 'criança insensível e [com] afetividade restrita [limitada]'. Já para critérios de diagnóstico, o DSM-5 especifica o ‘transtorno de conduta com emoções pró-sociais limitadas'", finaliza.