Casada com um alemão, ela é a única mulher americana condenada a morte por ordem direta do Führer
Fabio Previdelli | @fabioprevidelli_ Publicado em 12/06/2022, às 00h00 - Atualizado em 05/08/2022, às 13h00
Embora Adolf Hitler tenha sido responsável por um dos genocídios mais brutais da História, a força da Alemanha nazista só não foi maior porque muitos heróis anônimos lutaram para pôr fim as barbaridades cometidas pelo Terceiro Reich.
Uma dessas histórias pouco conhecidas é de Mildred Harnack-Fish, a única mulher americana condenada à morte por ordem direta do Führer. Agora, sua memória está sendo resgatada por sua sobrinha-bisneta Rebecca Donner através do livro ‘All the Frequent Troubles of Our Days’.
A ideia de transformar a história de Mildred em livro começou justamente quando a autora canadense tinha nove anos. Em uma visita à casa de sua bisavó, em Chevy Chase, Maryland (EUA), a jovem percebeu que uma das paredes da cozinha havia diversas marcações de altura. Entre os nomes, um chamou a atenção de Donner. "Minha bisavó disse: 'Ah, bem, essa é Mildred'".
Sua voz estava tão embargada que eu pensei, 'oh, tem uma história aí.' Ela parecia triste ou zangada, ou ambos. E então eu acho que o mistério de Mildred começou para mim naquele momento."
Quando tinha 16 anos, sua avó Jane, sobrinha de Mildred, lhe deu algumas cartas escritas por Harnack-Fish. Ela lhe revelou ainda muitos detalhes dos tempos que sua tia-bisavó passou em Berlim antes da Segunda Guerra Mundial — onde permaneceu atuando, em segredo, como membro da resistência.
Oriunda de uma família pobre de Milwaukee, Wisconsin (EUA), Mildred Elizabeth Fish nasceu em 16 de setembro de 1902. Segundo artigo da Universidade de Wisconsin-Madison, ela cresceu aprendendo inglês e alemão, visto que seu bairro tinha uma grande população germânica.
Com o sonho de ser escritora, a muito custo, Mildred obteve um bacharelado e um mestrado em literatura inglesa. Em 1926, enquanto lecionava na Universidade de Wisconsin-Madison, conheceu o alemão Arvid Harnack.
O sujeito, supostamente, havia tomado um rumo errado em um prédio da universidade e acidentalmente acabou em sua sala. Em seu livro ‘Resisting Hitler: Mildred Harnack and the Red Orchestra’, o pesquisador Shareen Blair Brysac descreve a cena:
“Ele subiu e se apresentou. Ele se desculpou por seu inglês vacilante, e ela se desculpou por não falar alemão muito bem. Então ele propôs que estudasse inglês com ela e ela estudasse alemão com ele. E esse foi o começo do romance.”
Os dois compartilharam uma atração instantânea. Em suas memórias, Inge Harnack relembrou a carta que seu irmão enviou para a Alemanha: “Ainda me lembro de como chegou uma carta para minha mãe com a frase lacônica: 'Conheci uma garota com um nome lindo, Mildred'”
Meses depois, outra missiva foi entregue: "Estou muito feliz. Eu fiquei noivo,” relatou. “Eu decidi quando a vi pela segunda vez”. Eles se casaram em 7 de agosto de 1926. Quando Arvid teve que voltar para a Alemanha, depois que sua bolsa terminou, os dois tiveram que viver separados por alguns anos.
O reencontro aconteceu apenas em 1929. Dois anos depois, Mildred se matriculou na Universidade de Berlim para obter seu doutorado enquanto dava aulas de literatura americana. Ao mesmo tempo, seu marido conseguiu um emprego no governo alemão no Ministério da Economia.
Assim, a vida do casal parecia tomar um rumo promissor, mas tudo foi por água abaixo quando Adolf Hitler ascendeu ao poder. Com apenas quinze meses de aulas, Mildred foi demitida por não ser “nazista o suficeinte”, aponta artigo do All That Interesting.
Rebecca conta que a tia-bisavó ficou chocada com o número de suásticas que viu espalhadas pelas ruas de Berlim e quantas pessoas apoiavam Hitler. Por conta disso, em 1932, ela e seu marido começaram a organizar reuniões em seu apartamento com estudantes anti-hitleristas.
A primeira arma deles contra o regime nazista era o papel. Eles produziam panfletos que denunciavam Hitler e clamavam pela revolução", disse Donner.
"Mas se você for pego com um desses panfletos, você pode ser enviado para um campo de concentração por um ano, e isso é realmente o que aconteceu com vários de seus recrutas."
Com a demissão de Mildred, ela e o marido se juntaram ao grupo de resistência que trabalhava para minar os nazistas de dentro da Alemanha. A Gestapo os chamavam de ‘Red Orchestra’ (a ‘Orquestra Vermelha’) porque transmitiam informações à União Soviética por meio de “concertos” de rádio.
Mildred havia se tornado uma recrutadora chave para a organização clandestina graças ao seu cargo de professora em uma escola noturna em Berlim. Quando seus alunos expressaram descontentamento com os nazistas, ela os conectava com a Orquestra Vermelha.
Em 1935, Arvid e Mildred mudaram de tática. Fizeram contato com pessoas da resistência fora da Alemanha. "Arvid Harnack conseguiu um emprego no Ministério da Economia [anos antes] com o propósito expresso de obter acesso a documentos ultrassecretos sobre as estratégias operacionais e militares de Hitler, que ele passaria aos inimigos de Hitler na União Soviética, bem como aos Estados Unidos. Estados", conta Rebecca.
A atuação de Mildred se tornou ainda maior quando ela começou a ensinar o filho de um diplomata americano chamado Donald Heath. Certa vez, ela entregaria ao garoto um pedaço de papel com informações para seu pai. Então Heath escreveu um relatório baseado em sua mensagem secreta.
Antes de Donald Heath falecer, Rebecca Donner conseguiu falar com ele e ouvir sobre todo o trabalho que ele fez com sua tia-bisavó. "Depois que concluímos nossas entrevistas, ele olhou nos meus olhos e disse: 'bem, Rebecca, agora posso morrer'".
Entretanto, eventualmente, a Gestapo conseguiu interceptar algumas transmissões da Orquestra Vermelha e passou a prender seus membros. Os Harnacks foram capturados na Lituânia, ocupada pelos nazistas, em setembro de 1942, enquanto tentavam fugir para a Suécia.
A Gestapo jogou Mildred na Prisão Feminina de Charlottenburg; onde, todos os dias, um interrogador nazista tentava tirar informações dela. Em dezembro de 1942, ela foi julgada por alta traição.
Neste mesmo mês, Arvid foi enforcado a mando dos nazistas. Antes de sua morte, ele deixou uma carta para a amada: “Você está no meu coração... Meu maior desejo é que você seja feliz quando pensa em mim. Pois, eu sou quando penso em você.”
Inicialmente, Mildred foi condenada a seis anos de trabalhos forçados em um campo de prisioneiros. Entretanto, conforme aponta artigo do The New York Times, enquanto ela aguardava sua punição, os nazistas a transportaram para a prisão de Plötzensee, em Berlim.
Adolf Hitler, insatisfeito com a sentença, anulou a decisão dos juízes e ordenou sua execução. Em 16 de fevereiro de 1943, os nazistas decapitaram Mildred Harnack, que tinha 40 anos na época, na guilhotina.
Por anos, os nazistas capturados, tentando evitar os Julgamentos de Nuremberg, alegaram que a Orquestra Vermelha era uma rede de espionagem comunista ainda operando nos EUA. A mentira ajudou a enterrar o heroísmo de Mildred Harnack.
"Acho que precisamos de uma lição de história agora. Acho importante ouvir as histórias daqueles que enfrentaram os valentões e que basicamente tentaram preservar a democracia que a Alemanha tanto desfrutou até Hitler se tornar chanceler", completa Rebecca Donner, que luta para que falácias como essa parem de impedir que histórias como de sua tia-bisavó sejam esquecidas.