Atos brutais marcaram a realidade do cangaço, cuja história se confunde com a do próprio Virgulino
A vida no cangaço não era fácil e o coração dos cabras endureciam. Lampião, o maior de todos eles, não permitia mulheres no bando. Para o cangaceiro, elas apenas trariam a discórdia e o ciúme entre seus bandoleiros. Mas isso tudo mudou quando ele parou os olhos em Maria Gomes de Oliveira. A Maria Déa, como também era conhecida, amoleceu o coração de pedra do Rei do Cangaço.
Antes dela, outros até tiveram mulher e filhos, mas nenhuma ousou tanto quanto a sertaneja. Maria Bonita mudou tudo isso: depois de seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga, muitas esposas passaram a seguir seus passos e acompanhar o bando. Outras, porém, não tiveram escolha. Muitas mulheres eram raptadas, estupradas e obrigadas a seguir o homem que as havia violentado.
Mesmo que Lampião tivesse escolhido a sobrinha de 17 anos de um coiteiro para se unir na vida, seu grande prazer era outro. Para a jornalista Adriana Negreiros, autora do livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço (2018), se tinha algo que satisfazia mais o bandido do que acabar com seus inimigos, era “cobrir uma fêmea”.
No linguajar do cangaço, a expressão significava estuprar uma mulher. Enquanto ela chorava, se pudesse ser ainda melhor. A violência era uma prática comum entre Virgulino e seus homens, uma forma de dominação sob as mulheres sertanejas comuns — mas também aplicada nas esposas que acompanhavam o bando.
Segundo Negreiros, “todas as cangaceiras, Maria incluída, eram tratadas como inferiores aos homens. Ela viveu uma existência marcada pela violência”. Aspereza esta causada na maioria das vezes por seu próprio companheiro. A vida íntima do casal era marcada pela hierarquia, estando o Rei do Cangaço sempre no topo dela.
Muitas vezes, ela era simplesmente obrigada a servir à libido de seu marido, assim como todas as outras sertanejas que membravam no bando. Como sexo sem que as duas pessoas o queiram é estupro, isso acontecia de maneira mais frequente do que geralmente se diz no sertão nordestino.
“Os cangaceiros se julgavam no direito de fazer com elas o que bem entendessem, inclusive matá-las. No bando de Lampião, elas eram vistas como propriedade privada de seus homens”, explica a autora.
Além dos estupros individuais, os coletivos, conhecidos como geras, eram também uma forma de domínio e manutenção do poder masculino desses homens. Eles poderiam ter diversas motivações individuais, e o primeiro a iniciar no ato deveria ser sempre o Rei do Cangaço, um rito que se tornou hábito.
Um episódio que representa bem tal brutalidade de Lampião foi narrado pela jornalista. Em uma das viagens pelo sertão, o cangaceiro encontrou uma mulher casada com um homem de 80 anos. Ele ficou indignado: degolou o idoso e, logo em seguida, voltou-se para a esposa, tornada viúva, que foi agredida e estuprada pelo bandoleiro, e depois por seus homens.
A Princesa do Cangaço
“Uma das [violências] mais fortes [sofridas por Maria Bonita] certamente foi entregar a filha recém-nascida, Expedita, para um casal, visto que as cangaceiras não tinham o direito de criar os próprios filhos”, afirma Negreiros.
Quando Lampião e Maria Bonita morreram surpreendidos na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha contra as tropas do tenente José Bezerra, Expedita Ferreira Nunes tinha apenas cinco anos. Ela foi entregue a um aliado do Rei do Cangaço para que tivesse como tutor o tio João Ferreira, por escolha óbvia do cangaceiro.
Em entrevista para a Folha de S. Paulo, em 2000, Expedita explicou: “a lembrança é pouca, mas tenho de pequena até hoje. Quando ele chegava em casa e me pegava, me abraçava. Eu tinha medo das roupas, daquele povo todo que vinha com ele [Lampião], das armas, eu tinha medo de tudo. Mas ele me pegava, me botava no colo”.
Entre estupros, violências e autoritarismo, Virgulino se mostrava um cabra irredutível. Mandava na mulher, no bando, e no sertão, enquanto pôde. Na intimidade, continuava bruto, e a masculinidade era o bem mais precioso que poderia exibir.
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