Esposa do escritor Guimarães Rosa, Aracy auxiliou judeus perseguidos a entrarem ilegalmente no Brasil durante a Segunda Guerra
O batom sempre vermelho. Os vestidos floridos. “Vovó não era uma mulher em preto e branco”, lembra Vera Tess, neta de Aracy de Carvalho Guimarães Rosa. A lembrança afetiva não é muito diferente do que a maioria tem das próprias avós. Mas a vida de Aracy não teve nada de ordinária. Ela foi diretamente responsável por salvar do Holocausto talvez uma centena de judeus (a conta é incerta). Que, graças a ela, puderam escapar da Europa para o Brasil no fim da década de 1930.Canção da imigrante
A história de vida de Aracy Moebius de Carvalho cruza com a do nazismo em 1934. Aos 26 anos, filha de mãe alemã e pai brasileiro, ela decide cruzar o Atlântico para viver na Alemanha com seu filho, Eduardo, então com 5 anos. Queria escapar do preconceito que pesava na época sobre uma mulher separada.
“Ela era bem ousada, impávida. Não se conformava com o papel tradicional, tanto que se afastou do primeiro marido”, afirma a historiadora Mônica Schpun, diretora editorial do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Colonial e Contemporâneo da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e autora do livro Justa – Aracy de Carvalho e o Resgate de Judeus: Trocando a Alemanha Nazista pelo Brasil.
Ao desembarcar em Hamburgo, onde foi viver com uma tia até se estabelecer, os sinais da catástrofe iminente estavam por toda parte. Dezessete mil judeus já haviam deixado a Alemanha em 1933, ano da ascensão de Hitler ao poder. Nos quatro seguintes, esse fluxo pouco se alteraria. “Ela sai de um Brasil varguista, pacífico, que está descobrindo o samba, e chega a uma Alemanha já nazificada, onde ser antissemita é lei”, afirma Mônica.
Talvez Mônica esteja sendo muito otimista nisso de pacífico – o Brasil havia passado por sua grande guerra civil em 1932. Com a Constituição democrática prometida, era então um país em desconfiada reconciliação. Mas algo que não tínhamos aqui era um grupo marcado para morrer.
Apesar do acirramento da violência antissemita e das medidas de exclusão social e econômica, como a expulsão do funcionalismo público, três quartos dos judeus alemães ainda viviam na terra natal quando o país foi palco do que ficou conhecido como a Noite de Cristal, a onda de brutalidade que começou em Berlim em 9 de novembro de 1938 e se espalhou rapidamente por outras cidades.
Cerca de 7.500 lojas de propriedade de judeus foram saqueadas; as vitrines, quebradas; as mercadorias e os equipamentos, destruídos e jogados nas calçadas. Casas foram invadidas e depredadas. Livros, incendiados. Mais de 200 sinagogas terminaram consumidas pelo fogo, além das sedes de organizações comunitárias.
Fluente em português, alemão, inglês e francês, a essa altura Aracy estava adaptada à vida em Hamburgo. Cidade liberal e cosmopolita, em função da natureza portuária, abrigava consulados de diversos países.
No brasileiro trabalhava a jovem, dedicada e eficiente funcionária, chefe do setor de passaportes. “O emprego a coloca no centro da tensão entre os dois países. É o acaso na História”, afirma Mônica. Por lá, assim como por todos os consulados e embaixadas brasileiras pelo mundo, a ordem era clara, embora secreta: a emissão de vistos para judeus estava proibida.
Vargas e o nazismo
“A postura do governo de Getúlio Vargas sempre foi pró-Alemanha, ele sempre esteve cercado de autoridades – ministros e assessores – germanófilas. E essa postura pró-Alemanha se fortalece à medida que que interessa a Vargas permanecer no poder e ao mesmo tempo estar alinhado a países fortes como Itália e Alemanha”, afirma a historiadora e professora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro, que coordena o projeto Vozes do Holocausto e é autora do livro Cidadão do Mundo – o Brasil Diante do Holocausto e dos Judeus Refugiados do Nazifascismo (1933-1948).
Segundo as pesquisas que Maria Luiza realiza há pelo menos 30 anos, havia orientação do governo brasileiro para não conceder ou dificultar ao máximo a emissão de vistos para a entrada de judeus no Brasil. Antes de romper com o Eixo e declarar guerra a Alemanha, Itália e Japão – o que só acontece em 1942 –, o governo Vargas f lertou com esses países.
Até esse ano, o Brasil manteve excelentes relações com a Alemanha nazista. Chegou a ser o principal parceiro comercial daquele país na América Latina, como conta o jornalista Lira Neto no segundo volume da recente trilogia sobre Getúlio Vargas. Ele cita a mudança de política da diplomacia brasileira para “disciplinar” a emissão do visto a judeus. “Em vez de incentivar a imigração judaica, as novas regras do Itamaraty tinham como objetivo declarado reduzi-la drasticamente.”
Assim reportou ao embaixador brasileiro em Berlim, Ciro de Freitas Vale, o ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha: “O número de indivíduos de origem semita entrados no Brasil em 1939 foi de 2.289, o que representa uma diminuição considerável em relação aos números anteriores, 4.900 em 1938; 9.263 em 1937”. Segundo Lira, o ministro Vale se queixava da displicência” do governo em relação à “invasão de judeus no Brasil”. Na década de 1930, havia 40 mil judeus no país e, em 1940, eram 55 mil.
Em junho de 1937 o governo edita a Circular Secreta 1127, a primeira de pelo menos 26 delas já localizadas por Maria Luiza. “Elas têm um caráter secreto, orientam as missões diplomáticas – embaixadas, consulados e representações – a não conceder vistos às pessoas de origem semita para que entrem no território nacional”, diz a historiadora.
Poucos enfrentaram essas ordens. “Cheguei à conclusão de que 99% dos diplomatas seguiram rigidamente as ordens do Itamaraty”, afirma. “Mensalmente enviavam relatórios com o panorama do que estava acontecendo nos países ocupados pela Alemanha, como Polônia, Áustria, Hungria.
Todo o governo brasileiro sabia o que estava acontecendo, então a circular expressa bem o perfil antissemita do governo Vargas, principalmente porque elas persistem ao longo de anos. A primeira, de 1937, é bem específica ao proibir a entrada, mas ao longo dos anos o governo vai administrando, vamos dizer, secretamente esse cerceamento.”
A insubordinada
Aracy reage burlando as ordens do Itamaraty. Não há como saber exatamente quais foram os artifícios usados por ela para conseguir vistos para judeus. Acredita-se que omitia o J em vermelho na confecção dos documentos, ou que simplesmente repassava os passaportes judeus em meio à papelada que costumeiramente despachava com o cônsul que, entediado com a burocracia, assinava os vistos sem ler.
Uma certeza os pesquisadores têm: ela arriscou a vida ao não seguir as ordens de seus superiores. E essa ação não se restringia aos balcões de repartição: como funcionária consular ela era liberada de revistas e tinha passaporte especial. Assim, chegou a transportar em seu próprio carro judeus para além das fronteiras alemãs. Também ajudava no embarque dos judeus em navios com destino ao Brasil ao levar consigo dinheiro e joias. Seu filho, Eduardo Tess, relata no documentário Esse Viver Ninguém Me Tira, do diretor Caco Ciocler, que lembra de sua mãe recebendo em casa pessoas chorando em busca de ajuda.
O risco de vida era iminente e é por isso que a história de Aracy foi tão resguardada. Embora existam diários e vasta correspondência, nada cita sua atividade secreta, o que prova que ela sabia do perigo envolvido. Se o acaso a colocou num lugar privilegiado para a missão que tomou como sua, o destino também ajudou. É também em 1937 que chega a Hamburgo João Guimarães Rosa.
O futuro como o talvez maior autor brasileiro do século 20 ainda se esboçava. Mas o novo cônsul-adjunto entra logo para a história de Aracy e ele para a dela. Além de guardar o segredo e nunca se posicionar como antissemita – como havia feito seus demais colegas –, as pesquisas dão fortes indícios de que Rosa ajudou Aracy. Em janeiro de 1939 o cônsul sai de férias para aproveitar o verão brasileiro e João assume seu lugar, assinando a liberação de vistos. Assim como a atividade de Aracy, também não é possível quantificar a de João.
“Como justamente eles omitiam a condição de judeu dos passaportes, só é possível rastrear pelos nomes, o que não dá certeza dos números”, afirma Maria Luiza. “São os bastidores do casal, não temos como ter certeza, mas, pela documentação que vi, não há nenhum comentário dele contra os judeus, coisa que é encontrada nos outros, que são explícitos em seu antissemitismo. Em um determinado momento, ele passa a fazer um diário onde se mostra sensível a essa questão.”
Fim do silêncio
A história dos feitos de Aracy só vem à tona nos anos 1980 e de forma quase casual. Em 1972, Margareth Levy, alemã judia de Hamburgo, salva por ela, encontra com Bella Herson, judia polonesa que também veio para o Brasil na Guerra. Em uma conversa prosaica entre duas senhoras, no Guarujá, litoral de São Paulo, Margareth queixa-se que seu marido havia morrido sem agradecer apropriadamente a Aracy. Bella toma a missão para si e é ela quem escreve para o Museu do Holocausto, em Israel, contanto a história.
É Bella também quem ativa os contatos na comunidade judia e recolhe os testemunhos necessários para provar o papel de Aracy como salvadora dos judeus que conseguiram entrar no Brasil pelas suas mãos. Encontra, inclusive, Marion Aracy, que ganhou o nome em homenagem à antiga funcionária do consulado em Hamburgo. O seu pai era Günter Heilborn, preso em 1938 em um campo de concentração. Inge,mulher de Günter, bateu à porta da representação diplomática e conseguiu ajuda.
Obteve o visto e foi embora com Günter para o Brasil. E, dessa história, um novo expediente usado por Aracy além dos já conhecidos: com relações na prefeitura de Hamburgo, ela conseguia também a documentação para que moradores de outras cidades alemãs se passassem por habitantes de lá para poderem ser atendidos no consulado brasileiro onde trabalhava.
Com testemunhos recolhidos, escritos e enviados a Israel, Aracy é reconhecida, em 1982, como Justa entre as Nações, uma homenagem a não judeus que arriscaram a vida para salvar judeus do Holocausto. Então a história daquela que ficou conhecida como Anjo de Hamburgo se tornou pública. Sua memória também foi eternizada em Grande Sertão: Veredas, o que é considerado por muitos críticos como o maior romance brasileiro do século 20. Diz a dedicatória: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.
“Ela não se deixou dominar por nenhum medo, nenhuma intimidação e fez o que ela achava que devia fazer. Enfrentou a moralidade provinciana da época quando foi viver com Guimarães Rosa. Era uma mulher corajosa em todos os sentidos para assumir suas próprias escolhas”, afirma Mônica Schpun.
E essa coragem a acompanhou para bem além da juventude. No documentário de Ciocler, o neto de Aracy, também Eduardo, lembra que sua avó também não se conformou quando o autoritarismo militar se fez presente no Brasil.
Já viúva, repetiu o gesto da Segunda Guerra escondendo em seu apartamento em Copacabana o cantor Geraldo Vandré, perseguido após apresentar sua canção Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores no Festival Internacional da Canção, da Globo, em 1968. “Ela foi contra os nazistas na Alemanha e os fascistas no Brasil”, diz seu neto. “Mais uma vez minha mãe assumiu a defesa de quem estava precisando”, diz Eduardo pai.
Aracy viveu 102 anos, sobrevivendo ao marido por 44. Deixou o filho, quatro netos e oito bisnetos. No Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, há 21 caixas com mais de 5.700 itens que ajudam a contar a sua história. Nas prateleiras em frente às suas, os pertences de Guimarães Rosa. O corredor é chamado de “felizes para sempre”. Já no fim da vida, ao ser questionada sobre as razões que a levaram a arriscar a própria vida para salvar outras, ela respondeu: “Porque era justo”.
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