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Matérias / Egito Antigo

A história da múmia egípcia Iret-Neferet, que revelou células intactas mesmo após 2.500 anos

Os pesquisadores Édison e Éder Hüttner falam sobre a chegada da múmia ao Brasil, a descoberta do olho artificial no corpo e o estudo pioneiro das células

Isabela Barreiros Publicado em 31/07/2021, às 08h00 - Atualizado em 27/05/2022, às 08h00

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A cabeça da múmia egípcia Iret-Neferet - Édison Hüttner
A cabeça da múmia egípcia Iret-Neferet - Édison Hüttner

Existem algumas histórias que tentam explicar como uma múmia egípcia foi parar no Museu 25 de Julho, em Cerro Largo, Rio Grande do Sul. A versão do museu é que a peça foi doada pelo advogado Marcelino Kuntz, que a recebeu de um egípcio como presente. A família Kuntz alega que o próprio Marcelino trouxe a múmia pessoalmente do Vale dos Reis, no Egito, no início dos anos 50.

Édison Hüttner, pós-doutor em História pela PUCRS, acredita que o alemão Germano Krapf, industrialista e representante da empresa Ford, enviou a múmia para Marcelino Kuntz, via correio, durante a Segunda Guerra Mundial. O artefato teria sido um presente ao advogado, que o havia tirado da cadeia. 

Cabeça da múmia egípcia descoberta em Cerro Largo / Édison Hüttner

O pesquisador coletou relatos orais, buscou informações e averiguou documentos para tentar comprovar a informação. Mas, como conta à Aventuras na História, essa se transformou na “versão arquivada” da história da múmia egípcia. Ele explica que não mencionou a informação para não interferir no foco das pesquisas realizadas na peça.

Pensei que esta versão poderia levar suspeitas de possível participação de mãos ou influência nazistas”, ressalta Hüttner.

Embora a múmia estivesse no museu por tanto tempo, ela não havia passado por nenhum tipo de análise científica para comprovar que era, de fato, egípcia; isso mudou quando Édison decidiu levá-la para Porto Alegre em 2017. Somente a partir daquele ano que informações importantíssimas sobre a peça seriam reveladas. 

Começando as pesquisas

Depois da redescoberta da múmia no museu de Cerro Largo, o artefato foi submetido a testes científicos, com o objetivo de atestar que ela pertenceu ao Egito Antigo — uma princesa egípcia, como Édison ouviu nos relatos de pessoas envolvidas com a doação da peça.

Foi assim que Iret-Neferet se tornou a primeira múmia no Brasil a ter idade confirmada cientificamente com datação por radiocarbono C-14. Para a análise, os pesquisadores tiveram que extrair dois dentes do corpo mumificado, processo que foi realizado pelo cirurgião bucomaxilofacial e pesquisador do GPIAEG, Éder Hüttner.

Eles concluíram que a múmia poderia ter a idade de 2.787 anos a 2.495 anos, vivendo entre 768 e 476 a.C, no final do Período Intermediário III (1070-712) e início do Período Tardio (Saíta-Persa: 712-332 a.C.). O estudo foi publicado no periódico Clinical Oral Implants Research.

E com a importante pesquisa completa, outros estudos começaram a ser idealizados pela equipe da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 

Uma das análises mais surpreendentes, como classificou Édison, foi a descoberta de um olho artificial na fissura orbital inferior do lado esquerdo da múmia, observada durante a análise da tomografia realizada no Instituto do Cérebro do RS no final de 2018. A olho nu, não era possível observar tal acessório, que estava coberto de faixas e betume.

Olho artificial da múmia / Édison Hüttner

“Realmente, o olho esquerdo descoberto era muito importante, pelo fato de representar um olho artificial no processo de mumificação e sua relação com a simbologia egípcia, seus rituais mágicos”, explica o pesquisador. A relação com o olho esquerdo de Hórus, “que significa sabedoria oculta, a lua”, revelou-se categoricamente.

O seu olho pintado no lado, na lateral das urnas funerárias egípcias, era uma via por onde o cadáver poderia ver seu caminho para o mundo do além”, observa.

A partir da identificação do olho artificial, os cientistas também conseguiram chegar à resolução de um nome para a múmia. O pós-doutor destaca que seria muito difícil descobrir o nome verdadeiro da egípcia porque não havia nada escrito nas faixas em que ela estava envolvida. “Mas tinha o olho esquerdo”, aponta Édison.

Ele continua: “O olho artificial de rocha e seda serviu de inspiração para forjar a identidade da múmia, com seu nome. Numa noite de abril, em Porto Alegre, dialogando com o egiptólogo Moacir Elias Santos, escolhemos o nome da múmia: Iret-Neferet, que significa ‘a mulher de olho bonito’”.

Tomografia realizada na múmia Iret-Neferet / Instituto do Cérebro do RS/PUCRS

Além de olho artificial, células intactas

A trajetória de Iret-Neferet na ciência começou em 2017, mas está longe de terminar. A mais recente — e talvez mais importante — análise feita na múmia foi divulgada pelo time de cientistas em uma apresentação online para o Congresso da Associação Europeia de Osteointegração, realizado em Berlim, na Alemanha, em outubro de 2020. Tratava-se da descoberta de células intactas no corpo.

“Partindo do princípio de que o processo de mumificação tem o objetivo da manutenção de tecidos, — ossos e músculos principalmente —, suscitou o questionamento se tal processo também poderia também manter as estruturas celulares preservadas”, explica Éder Hüttner, líder da pesquisa, à Aventuras na História. 

Para que tal hipótese fosse testada, os pesquisadores retiraram parte do osso da mandíbula e músculo masseter da múmia, dentro de uma cabine de segurança biológica. Os espécimes obtidos foram então processados no Laboratório de Anatomia Patológica do Hospital São Lucas da PUCRS.  

“As lâminas geradas ao final do processo continham células com estruturas intactas anatomicamente, verificadas por meio de um microscópio óptico. Hemácias puderam ser observadas intactas dentro de vasos sanguíneos”, explicita Éder.

Segundo o pesquisador, “o achado surpreendeu nossas expectativas”. Embora a mumificação sabidamente possibilitasse a manutenção de tecidos humanos e animais, preservar células com tamanha precisão foi um espanto.

Hemácias encontradas dentro de vaso sanguíneo da múmia / Éder Hüttner 

Para ele, “isso demonstra a evolução técnico-científica dos egípcios, por ter uma técnica de preservação realizada há mais de 2.500 anos, que permite observarmos células intactas nos dias de hoje”.

A partir da estrutura íntegra da célula, principalmente o DNA, será possível realizar novas pesquisas que podem trazer mais informações sobre etnia, parentescos, doenças e outras características importantes de Iret Neferet como cor de olho, cor de cabelo, entre outras. 

A análise realizada pela equipe brasileira pode ser considerada pioneira no Brasil e na América Latina. “Poucas universidades no mundo têm estudos similares, principalmente pela dificuldade de acesso a múmias e técnicas que permitem preparar as biópsias para chegar a visualizar as células”, explica o cirurgião bucomaxilofacial.

Reconstrução facial da múmia egípcia descoberta no Brasil / Cícero Moraes

O rosto da princesa egípcia

Dar rosto a pessoas que viveram no passado é humanizar essas figuras, possibilitando novas considerações sobre o período histórico em que viveram. Por isso, o designer especializado em reconstrução facial forense Cícero Moraes já desenvolveu inúmeras faces de personalidades históricas — inclusive a da múmia Iret-Neferet.

Também no ano passado, um projeto para a produção da reconstrução facial da múmia foi desenvolvido pela equipe de pesquisadores em parceria com Moraes, responsável por recriar o rosto a partir de três dimensões. 

Ele assinalou as espessuras da pele com base nas medidas padrões para pessoas; projetou linhas que mostraram o posicionamento dos lábios, nariz, olhos e orelha; pigmentou a pele com base nas cores étnicas dos egípcios da época; adicionou cabelo à múmia e, por fim, elaborou a roupa a partir dos conhecimentos sobre vestimenta do período.

Entre pesquisas permanentes

“Mesmo com a pandemia, continuamos com as pesquisas”, conta Éder. “Em parceria com o Instituto do Cérebro do RGS (INSCER) estamos fazendo extração do DNA das células para futuras análises. Outra parceria que estamos buscando é com o Instituto Mark Plank na Alemanha, que tem um banco de dados de DNA de múmias”. 

O pesquisador aponta ainda que apenas a cabeça da múmia é conhecida e está sendo objeto de análise, o corpo não. “Quem sabe poderemos a partir de estudos do DNA encontrar e identificar outra parte do corpo em algum museu. Na cultura egípcia, do ponto de vista espiritual, a integridade do corpo é importante”, completa.