Em 1º de agosto de 1793, o governo francês decretou a aniquilação da Vendeia, movimento monarquista que tentava restaurar o Antigo Regime. Foi um massacre
Nos primeiros meses de 1793, quatro anos após o início da Revolução Francesa, a região da Vendeia, no oeste do país, encontrava-se em estado de alerta. Por todos os lados, circulava a notícia de que o governo da República (estabelecida após a queda da monarquia, em 1792) acabava de ordenar o recrutamento de 300 mil homens.
Em cada cidade e aldeia, os combatentes seriam sorteados entre os solteiros de 16 a 40 anos – e os recrutadores teriam a ajuda da Guarda Nacional para garantir que suas ordens fossem cumpridas.
O motivo para essas medidas era bem claro: a França estava sendo atacada por uma poderosa coalizão de países europeus, que pretendiam, entre outras coisas, derrubar a República e restabelecer a monarquia no país. Essas razões, no entanto, pouco importavam para os artesãos e camponeses da Vendeia.
Gente simples, trabalhadora e profundamente religiosa, os vendeanos sabiam que quem partisse para aquela guerra tinha pouquíssimas chances de voltar com vida. Murmúrios de descontentamento espalharam-se como um incêndio, tomando conta dos bosques, fazendas e vilarejos da província.
Em 10 de março de 1793, dia marcado para o recrutamento, a insatisfação se transformou em violência. Com foices, facas e porretes, 3 mil camponeses reuniram-se ao toque dos sinos, invadiram as vilas de Machecoul e Saint-Florent-le-Viel e massacraram centenas de soldados republicanos.
Em menos de uma semana a insurreição se espalhou por quase toda a província e várias regiões vizinhas, como Maine-et-Loire e Deux-Sèvres. Agora, não havia como voltar atrás: a Vendeia tornara-se o inimigo número um dos partidários da Revolução. O que começara como um levante de camponeses descontentes em breve se transformaria na mais sangrenta guerra civil que a França já vira.
Até hoje, a revolta da Vendeia permanece um dos episódios mais obscuros e polêmicos da Revolução. Afinal de contas, como se explica um levante popular tão vasto e violento contra uma Revolução que acabou com as instituições feudais e extinguiu os privilégios da nobreza?
Durante mais de um século, os defensores do governo revolucionário torceram o nariz diante desse dilema. A opinião do escritor Jules Michelet, autor de História da Revolução Francesa, é um bom exemplo desse desconforto: para ele, a revolta da Vendeia não passou de “um monstruoso mal-entendido, um incrível fenômeno de ingratidão, absurdidade e injustiça”.
Cruzada no século 18
Para o governo da República – e para vários historiadores – a revolta da Vendeia representou uma cruzada da velha França, atrasada e reacionária, contra os valores dos novos tempos. Mas há quem discorde. “Embora se colocassem a favor do sistema monárquico, os camponeses não estavam simplesmente defendendo a velha ordem das coisas”, diz Alain Gérard, diretor do Centro Vendeano de Pesquisas Históricas.
“Eles lutavam pelos mesmos valores que os revolucionários: igualdade, liberdade e fraternidade. O fato é que a Revolução havia se mostrado infiel a esses princípios, deixando de lado as aspirações da população rural e dando mostras de autoritarismo e brutalidade. Em vez de se manterem ao lado de uma revolução que os havia decepcionado, os camponeses resolveram lutar contra ela.”
Desorganizados, mal-armados e sem treinamento militar, os rebeldes foram buscar apoio entre as famílias nobres da província. Embora a rebelião tivesse estourado sob o comando de um plebeu, Jacques Cathelineau, as tropas logo passaram a ser encabeçadas por aristocratas com nomes pomposos como o marquês Charles de Bonchamps e o conde Henri de La Rochejaquelein.
No duelo contra o detestado governo republicano, nobres e plebeus uniram-se sob a bandeira da monarquia deposta. Marchando com estandartes feitos de improviso, onde se liam as palavras Pour Dieu et le Roi (Por Deus e pelo Rei), o grande exército católico e monarquista, como tornou-se conhecido, acumulou uma série de vitórias: de março a setembro, cidades inteiras foram tomadas pela turba, que chegou a reunir 40 mil pessoas.
No resto da França, espalhavam-se boatos arrepiantes sobre a ferocidade e a violência dos rebeldes.
República a perigo
Atacada por governos estrangeiros e dilacerada por lutas internas, a República Francesa corria o risco de se desmantelar. Em setembro, o partido extremista dos jacobinos, liderado por Robespierre, instaurou na França uma ditadura feroz, que punia sumariamente todos os acusados de deslealdade.
Começava o período conhecido como Terror. Em Paris, a Navalha da República (apelido dado à guilhotina) manchou ruas e praças com o sangue azul dos nobres. Em Nantes, homens, mulheres e crianças foram fuzilados ou afogados no rio Loire. Foi nesse clima de intolerância que o governo revolucionário decidiu enfrentar a revolta na Vendeia.
“Destruam a Vendeia”, exclamou, num enfurecido discurso diante da Convenção Nacional, o deputado republicano Bertrand Bariére de Vieuzac. Seu apelo foi levado ao pé da letra.
“Em 1º de agosto de 1793, o governo decretou a aniquilação da Vendeia”, afirma o historiador François Furet, em seu Dicionário Crítico da Revolução Francesa. “A ordem era de incinerar florestas e casas, derrubar cercas, retirar os animais e transformar a região em um deserto.”
Em setembro de 1793, um novo exército republicano atacou com fúria a província rebelde. A Vendeia inteira mobilizou-se numa resistência desesperada: agora, o lema dos camponeses era vencer ou morrer. No dia 17 de outubro, ao norte da cidade de Cholet, os vendeanos tentaram deter a marcha inimiga. Contavam, ainda, com grande superioridade numérica: havia em torno de 40 mil rebeldes contra 20 mil republicanos.
Dessa vez, no entanto, o exército revolucionário tinha a liderança de Jean-Baptiste Kléber, um dos melhores generais franceses da época. Envolvidos pelos regimentos republicanos, os rebeldes debandaram em massa para o rio Loire, deixando atrás de si uma trilha de mortos. Algumas semanas depois, os sobreviventes foram encurralados na aldeia de Le Mans, do outro lado do Loire.
Sob uma noite de tempestade, durante 14 horas seguidas, os dois exércitos enfrentaram-se em uma das batalhas mais medonhas da guerra. Cerca de 10 mil vendeanos morreram – e os que conseguiram escapar seriam destroçados pouco depois, perto da vila de Savonay. “O massacre foi indescritível”, escreveria o general Kléber em suas memórias. Para todos os efeitos, a revolta estava esmagada.
No entanto, a sede de vingança dos radicais ainda não se aplacara. Tomando a liderança dos exércitos republicanos em janeiro de 1794, o general Louis-Marie Turreau dispôs-se a destruir completamente o que ainda restava da Vendeia. Para isso, dividiu suas tropas em 12 colunas (mais tarde chamadas de colunas infernais) e encarregou-as de percorrer a província de lado a lado, incendiando casas e bosques e massacrando quem reagisse.
“Uma vez que o exército rebelde já não existia, os republicanos voltaram-se contra a população civil”, diz Gérard. Segundo o historiador, o que acontece em 1794 já não era uma guerra, mas um projeto de extermínio total. Uma carnificina pura e simples. “Velhos, mulheres e crianças foram trucidados sem julgamento, vilarejos arderam em chamas e nem mesmo os animais foram poupados.
De acordo com François Furet, mais de 100 mil pessoas foram mortas. Para Jean Clément-Martin, o número total de mortos, incluindo os que tombaram nos combates regulares, estaria entre 250 e 300 mil – o que equivale a um terço dos habitantes da província.
No entanto, nem todos os republicanos aprovavam (ou sequer toleravam) tamanho derramamento de sangue. Em Paris, a maior parte dos revolucionários começava a se revoltar contra o terrorismo da ditadura jacobina, que já mandara executar cerca de 40 mil pessoas em toda a França – sem contar as vítimas na Vendeia.
O Terror atingiu todas as classes sociais, sem exceção: cerca de 10% das vítimas pertenciam à nobreza, 6% ao clero, 15% à classe média – mas a grande maioria dos condenados era de camponeses ou operários urbanos. Em 28 de julho, o reinado sangrento de Robespierre foi interrompido por um golpe de estado e o grande líder do Terror teve o mesmo destino que muitas de suas vítimas: perdeu a cabeça na guilhotina.
Após nove meses, a repressão jacobina chegou ao fim. Todavia, suas consequências ainda se estenderiam por muito tempo. Na Vendeia, os sobreviventes não estavam dispostos a esquecer a brutalidade com que foram tratados. Ao longo dos anos seguintes, a revolta voltaria a estourar, de forma esporádica, em diferentes partes da província. Apesar de dois tratados de paz terem sido assinados (em 1795 e em 1800), a Vendeia continuaria sendo uma região inquieta e belicosa durante quatro décadas.
Nos anos que se seguiram, a República tentaria esconjurar a memória dessa guerra sem compaixão, considerada por alguns como um verdadeiro genocídio francês. “A historiografia revolucionária acostumou-se a tratar a rebelião como um simples complô de camponeses abrutalhados, e por muito tempo a memória nacional manteve o episódio nas sombras”, diz Alain Gérard.
Na Vendeia, as lembranças da guerra civil não só continuaram acesas, como contribuíram para a criação de uma identidade única, que passou a distingui-la do resto da nação. Nos nomes das ruas e nos contos da tradição oral, a Vendeia mantém vivas a ascensão e a queda dos combatentes de 1793 – uma história que o resto da França, durante mais de um século, preferiu esquecer.