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Matérias / Personagem

Há 59 anos começava o julgamento de Adolf Eichmann, um dos monstros do Terceiro Reich

Neste dia, em 1961, um dos nazistas mais procurados do mundo era julgado em Jerusalém, após uma operação intensa

Bruno Leuzinger Publicado em 11/04/2020, às 10h00

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Adolf Eichmann em Israel - Wikimedia Commons
Adolf Eichmann em Israel - Wikimedia Commons

Na noite de 11 de maio de 1960, o ônibus que trazia Ricardo Klement do trabalho atrasou um pouco. Ele saltou no ponto de sempre, bem perto de sua casa, onde Vera e os meninos o esperavam. A região era meio deserta e afastada do centro, mas ele apreciava o isolamento. Dobrando a esquina, viu uma limusine preta parada, com o capô levantado. Do lado de fora, um homem checava o motor. Quando Klement passou, foi interrompido bruscamente: "Momentito!", disse o desconhecido, em um arremedo de espanhol.

Era obviamente estrangeiro. Klement hesitou, e o estranho pulou em cima dele, tentando segurar seus braços. Ele gritou, se debateu e os dois caíram no chão. Logo surgiu um terceiro homem, depois mais outro, que dominaram Klement e o botaram no banco de trás da limusine. O carro partiu em disparada. Então, o motorista virou-se e disse em alemão: "Não se mova e ninguém vai machucá-lo. Mas se resistir, atiramos". Klement ficou em silêncio por alguns segundos. Finalmente, respondeu, também em alemão: "Eu já aceitei o meu destino".

Naquele dia, chegavam ao fim 15 anos de fuga. O homem magro, calvo e míope que trabalhava em uma fábrica da Mercedes-Benz e dizia se chamar Ricardo Klement era, na verdade, um dos criminosos nazistas mais procurados do mundo: Adolf Eichmann. "Seu papel principal foi coordenar as atividades práticas da implementação da "solução final"", diz Efraim Zuroff, diretor da sucursal de Jerusalém do Simon Wiesenthal Center, dedicado à caça de nazistas.

De seu escritório em Berlim, Eichmann organizava as rotas dos trens que seguiam para os campos de extermínio. Em outras palavras, era ele quem carimbava as passagens de homens e mulheres de origem judaica forçados a partir com destino a lugares cujos nomes ainda hoje provocam calafrios: Auschwitz, Treblinka, Birkenau.

Entre o fim de abril e o começo de maio de 1945, o 3º Reich estava de joelhos e Eichmann viu que era hora de ir embora. Antes de partir, deu à mulher Vera quatro cápsulas de veneno, para ela e cada um de seus três filhos, Klaus, Horst Adolf e Dieter Helmut. "Se os russos vierem, mordam as cápsulas.

Se forem americanos ou britânicos, não precisa", disse. Em Ulm, no sul da Alemanha, topou com um pelotão americano e foi levado para um campo de prisioneiros. Eichmann afirmou ser Adolf Barth, cabo da Força Aérea alemã. Foi transferido de campo várias vezes e sempre adotava um nome diferente. Após meses, conseguiu escapar com documentos que o identificavam como Otto Heninger. Ele acabaria em uma localidade rural chamada Eversen. Lá viveu alguns anos tranquilo, criando galinhas.

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Crédito: Wikimedia Commons

A Alemanha tornou-se pequena demais para Eichmann, e em 1950 ele decidiu deixar o país. Atravessando os Alpes, chegou à Áustria e depois à Itália. Lá, encontrou a mesma rede de proteção que já havia permitido a outros criminosos nazistas escapar. Em nome da "ajuda humanitária", a Igreja Católica oferecia abrigo em casas seguras, e a Cruz Vermelha fornecia documentos.

Eichmann foi acolhido por uma comunidade franciscana enquanto aguardava o momento de partir. No dia 14 de junho de 1950, o consulado argentino em Gênova lhe concedeu um visto de entrada. De seu próprio bolso ele pagou uma passagem de segunda classe no navio Giovanna C. e, em 14 de julho, desembarcou em Buenos Aires. Era o início de uma nova vida.

A caçada

Zvi Aharoni chegou a Buenos Aires em 1º de março de 1960. Sua missão: identificar e preparar a captura de Adolf Eichmann. Viajando com nome falso e passaporte diplomático, Aharoni era agente do Mossad, o serviço secreto de Israel. A primeira pista sobre o paradeiro de Eichmann surgira em 1957, por meio de Lothar Hermann, um descendente de judeus cujos pais foram mortos pelos nazistas. Ele morara em Buenos Aires e sua filha Sylvia ficara amiga de um rapaz chamado Klaus Eichmann.

O jovem visitara sua casa e, sem saber da ascendência da família, declarou ser "uma pena que Hitler tenha sido impedido de alcançar seu objetivo". Klaus dizia que seu pai havia sido oficial do Exército alemão e se recusava a dar seu endereço a Sylvia, mas ela acabou descobrindo com uma amiga: rua Chacabuco, 4 261.

A história foi tratada com desconfiança pelo diretor do Mossad, Isser Harel, e, durante quase três anos, o serviço secreto pouco fez para apurar sua veracidade. Mas novas informações levavam a crer que Eichmann estaria vivendo em Buenos Aires sob o nome de Ricardo Klement. Sua mulher e filhos teriam ido ao seu encontro, e os três rapazes continuaram usando o sobrenome do pai.

A Argentina já era conhecida por abrigar criminosos de guerra. "O governo os protegia, dava emprego e documentos e negava pedidos de extradição", afirma o jornalista e historiador argentino Jorge Camarasa, autor de Odessa al Sur - La Argentina como Refugio de Nazis y Criminales de Guerra (Odessa ao Sul - A Argentina como Refúgio de Nazistas e Criminosos de Guerra) e Los Nazis en la Argentina (Os Nazistas na Argentina), inéditos no Brasil.

Aharoni também escreveu um livro com o jornalista alemão Wilhelm Dietl, intitulado Operation Eichmann - Pursuit and Capture (Operação Eichmann - Perseguição e Captura, inédito em português). Na obra, explica que, naquela época, qualquer embaixada israelense dispunha de um número de telefone que podia ser usado para contatar voluntários judeus dispostos a ajudar em um trabalho ou investigação, e o mais importante: sem fazer perguntas.

Um funcionário da embaixada colocou uma relação de voluntários à sua disposição e na companhia de um deles, Roberto (os nomes são fictícios), Aharoni dirigiu até a rua Chacabuco. Com o pretexto de entregar um carta para Ricardo Klement, Roberto foi ao prédio e descobriu que o apartamento do térreo estava vazio, sendo pintado. Se ele tinha morado ali, já havia se mudado.

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Crédito: Wikimedia Commons

Em março, no entanto, ele conseguiu uma pista. Numa oficina mecânica perto da rua Chacabuco trabalhava o jovem com sotaque alemão identificado como Dito. Eles desconfiaram que era Dieter, filho mais novo de Eichmann. Nos dias seguintes, Aharoni seguiu-o depois do trabalho até a rua Garibaldi, em uma área meio abandonada, sem água encanada ou energia elétrica. Mas era preciso confirmar se Dito era mesmo Dieter. No dia 12, Aharoni ordenou que o voluntário Juan o procurasse na oficina. Juan voltou com a notícia: "Tenho más notícias. Nós estamos seguindo o homem errado. O sobrenome de Dito não é Klement. É Eichmann". Aharoni precisou disfarçar a empolgação.

Mas faltava achar Adolf Eichmann. Aharoni o viu pela primeira vez em 19 de março. Passando de carro em frente à casa, observou um homem de meia-idade, magro e calvo, que recolhia a roupa do varal. Perto dele, uma criança de cerca de 5 anos (Ricardo Francisco, filho de Klement e Vera, nascido na Argentina). Era ele, com certeza.

A armadilha

Em 24 de abril, começaram a chegar a Buenos Aires os agentes do Mossad que participariam da segunda etapa da Operação Eichmann: a captura e traslado para Israel. Além de Aharoni, agora identificado como um executivo alemão, vieram Avraham Shalom, Yaakov Gat e Efraim Ilani.

Em outra leva, para não chamar a atenção, desembarcaram Yitzhak Nesher, Zeev Keren (responsáveis por alugar as casas que seriam usadas de esconderijo e os carros para o sequestro), Zvi Malchin (um homem forte, a quem caberia a missão de segurar Eichmann), o chefe da missão Rafi Eitan, o diretor do Mossad, Isser Harel, mais o médico, identificado apenas como "Doutor", encarregado de manter o prisioneiro saudável. Por último, chegou Shalom Dany, perito em documentos falsos.

Eles alugaram duas casas que serviriam como opções de esconderijo e o agente Keren construiu numa delas um pequeno quarto com uma porta secreta onde o prisioneiro ficaria em caso de visitas inesperadas. Eles compraram dois carros, uma limusine Buick preta e um Chevrolet. Ambos foram levados ao mecânico para uma revisão completa. Decidiu-se que Aharoni, que conhecia melhor a cidade, dirigiria a limusine - o carro onde Eichmann seria colocado.

O alvo da operação continuava sob constante vigilância. Os agentes descobriram que todo dia ele descia do ônibus vindo do trabalho às 19h40, hora em que a rua costumava estar vazia. Seria o momento certo de atacar. Faltava só combinar a data. A ideia era que o intervalo entre o sequestro e a fuga fosse o menor possível; quanto mais tempo mantendo Eichmann prisioneiro em Buenos Aires, maior a chance de a polícia ser acionada. O transporte para Israel seria no vôo de volta de um avião comercial da El Al que traria o ministro do Exterior israelense Abba Eban para a comemoração dos 150 anos de independência da Argentina.

De início, o ministro chegaria em 12 de maio, e a aeronave retornaria a Israel no dia seguinte. O sequestro foi marcado para o dia 10. Quando se soube que o avião só chegaria no dia 19, o grupo resolveu adiar a operação por 24 horas. Todos estavam tensos e ansiosos para que tudo acabasse logo.

Quando passou pela limusine, Eichmann foi abordado por Malchin / Crédito: Acervo AH

Em 11 de maio, na hora combinada, 19h25, Aharoni estacionou a limusine na rua Garibaldi. Malchin e Keren saíram do carro e o segundo se escondeu atrás do capô. Rafi Eitan ficou deitado no banco de trás. O Chevrolet, com Avraham, Yaakov Gat e o Doutor, parou um pouco mais longe. Se durante a fuga acontecesse algum acidente ou qualquer problema com a limusine, os agentes e o prisioneiro seriam levados para o Chevrolet. O relógio deu 19h40, mas nada de Eichmann.

O combinado era esperar até 20h. Cinco minutos depois das 20h, Avraham saiu do carro e vinha em direção à limusine, quando um ônibus parou no ponto e um homem saltou. Avraham correu de volta para o Chevrolet e acendeu os faróis. Era Eichmann.

Aharoni o observava com os binóculos quando ele pôs a mão esquerda no bolso. Seria uma arma? Com um sussurro, alertou Malchin: "Ele está com a mão no bolso. Cuidado, pode ser um revólver". Aharoni ligou o motor do carro. Três segundos depois, Eichmann passou ao lado de sua janela e foi barrado por Malchin: "Momentito!"

O sequestro

Eichmann não estava armado - nem os agentes. A limusine seguiu pela rua Avellaneda por 800 metros e, então, parou para que Zeev Keren descesse e trocasse rapidamente as placas do carro. Em vez das chapas comuns, agora eles tinham novas, azuis, de carro diplomático, para combinar com documentos falsos de diplomata austríaco que Aharoni levava. O prisioneiro estava deitado no chão, com um cobertor em cima. Chegaram finalmente na casa. O carro estacionou na garagem e os ocupantes entraram pela porta que dava acesso direto à cozinha.

Desarmado, foi colocado no banco de trás do carro / Crédito: Acervo AH

Vendado com óculos de motociclista cobertos com fita adesiva, Eichmann foi levado até o segundo andar, onde um quarto tinha sido preparado para ele. No lugar das janelas, colchões tornavam o ambiente à prova de som. Deitaram-no na cama, despiram-no, e o Doutor examinou seu corpo em busca de cápsulas de veneno. Vestiram-no com pijamas e a perna esquerda foi algemada à cama. O interrogatório começou às 21h15. Aharoni fazia as perguntas. Qual era o nome do prisioneiro? "Ricardo Klement".

E como ele se chamava antes? "Otto Heninger". A resposta deixou Aharoni intrigado - ele não sabia que Eichmann adotara identidade de Otto Heninger na Europa. Mas as perguntas seguintes tiveram a resposta esperada. Quando era sua data de nascimento? "19 de março de 1906". Local de nascimento? "Solingen". E qual foi seu primeiro nome? "Adolf Eichmann". Aharoni esticou a mão para cumprimentar Avraham, do outro lado da cama.

Em 20 de maio, o prisioneiro foi avisado de que era hora de partir. Vestido com uma roupa semelhante à da tripulação da El Al (camisa branca e gravata preta), Eichmann foi sedado. A droga o impediria de falar, mas com ajuda poderia se locomover quase normalmente. Partiram às 21h.

Eichmann embarcou usando o uniforme da companhia El Al / Crédito: Acervo AH

O aeroporto estava vazio, não havia outros vôos programados para aquele dia. O carro parou perto do ônibus da companhia - cujos verdadeiros tripulantes não tinham ideia do que se passava. Yaakov e o Doutor, também vestidos como tripulantes da companhia aérea, ajudaram Eichmann a subir a escada e entraram no avião com ele. Para todos os efeitos, eram dois membros da tripulação amparando um colega doente. O Doutor sentou atrás de Eichmann e até a decolagem manteve uma seringa espetada em seu braço.

Aharoni, Isser Harel e o resto da equipe aguardavam a hora de embarcar, mas o tempo foi passando e nada de eles serem liberados. Pouco antes da meia-noite apareceu um funcionário esbaforido pedindo desculpas pelo transtorno. Com todos finalmente a bordo, o avião decolou à 0h04. A aeromoça perguntou se Zvi Aharoni gostaria de alguma coisa para comer. "Não, obrigado. Mas quero um uísque. Duplo." Às 7h20 da manhã de 22 de maio, a aeromoça avisou: senhoras e senhores, estamos entrando em espaço aéreo de Israel. Caso encerrado.

O julgamento

"Tenho de informar que forças de segurança israelenses encontraram um dos maiores criminosos nazistas, Adolf Eichmann, que, junto com outros líderes nazistas, é responsável pelo que eles denominaram de "a solução final"da questão judaica, em outras palavras, o extermínio de 6 milhões de judeus europeus. Adolf Eichmann já está preso neste país e será em breve levado a julgamento de acordo com a lei de 1950 que pune nazistas e seus colaboradores." Foi assim que o primeiro-ministro israelense David Ben Gurion se dirigiu ao Parlamento e ao povo de seu país no dia 23 de maio de 1960. A notícia do sequestro caiu como uma bomba. A Argentina protestou contra a quebra de sua soberania e exigiu Eichmann de volta.

O governo não aceitou o pedido de desculpas de Israel e, em junho, levou o caso ao Conselho de Segurança da ONU. Em agosto, porém, os ânimos esfriaram e os dois países divulgaram um comunicado conjunto expressando "simpatia mútua". Eichmann foi apresentado à Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961 acusado de crimes contra o povo judeu e contra a humanidade. Protegido em uma cabine de vidro à prova de bala, o réu declarou-se inocente das acusações.

O julgamento produziu o best seller Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal, da filósofa judia alemã Hannah Arendt. Incumbida pela revista americana The New Yorker de fazer a cobertura do processo, Hannah traçou o perfil de um burocrata incapaz de admitir sua parte de culpa no holocausto. "Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu. Nunca matei um ser humano", disse Eichmann, segundo ela. "Ele parecia acreditar que, atrás da escrivaninha, suas mãos estariam limpas."

Foto mostra Eichmann em sua cela, em 1961 / Crédito: Getty Images

Em 15 de dezembro, a corte deu o veredicto e a sentença: morte por enforcamento. Na noite de 31 de maio de 1962, Eichmann estava calmo. Chegou a pedir uma taça de vinho e recusou o capuz que o carrasco lhe ofereceu. Em seu livro, Aharoni cita o jornalista Rudolf Küstermeyer, que testemunhou a execução e reproduziu suas últimas palavras, poucos minutos antes da meia-noite, já de pé no cadafalso: "Longa vida à Alemanha. Longa vida à Áustria. Longa vida à Argentina.

Esses são os três países com os quais tive laços mais próximos. Eu não os esquecerei. Cumprimento minha mulher, filhos e amigos. Foi exigido de mim obedecer as leis da guerra e da minha bandeira. Eu estou preparado". Foi a primeira e até hoje única execução na história de Israel. O corpo foi cremado e as cinzas, espalhadas no mar Mediterrâneo, em águas internacionais. Fora, portanto, do território israelense.


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