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Matérias / Coluna

Mary Del Priore: Casa de pretos

Nos terreiros, a clientela branca era presença constante

Mary Del Priore Publicado em 21/01/2019, às 15h00

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Mãe de santo do candomblé - Getty Images
Mãe de santo do candomblé - Getty Images

Casa de pretos era como João do Rio, o cronista do velho Rio de Janeiro, chamava o terreiro existente na Travessa do Castelo. Desde a década de 1830, várias posturas municipais proibiam ajuntamentos de negros com ocorrência de danças e batuques, em casas ou chácaras particulares. Considerava-se que tais “ajuntamentos” não eram inocentes, pois várias revoltas de escravos tinham nascido assim. Seus “feiticeiros” costumavam ser os cabeças de motins. Na segunda metade do século XIX, o motivo para persegui-los era a vadiagem e o charlatanismo. Com o crescimento das cidades e o aumento da população de livres e ex-escravos, multiplicaram-se as “casas de pretos”, com grande presença de lideranças religiosas negras, comandando tanto a elite quanto o povo.

O cronista reproduzia os preconceitos que no final do século havia sobre o assunto. E imaginação não lhe faltava para concluir que “na macumba só se manifestam espíritos grosseiros que ainda se prendem aos instintos terrenos da vida e não se libertaram da crosta vil do atrasado planeta Terra: almas rastejadoras, indomáveis, violentas. Todo um mundo de sofredores, ralé curtida pela dor, à espera da grande luz de Deus, que tarda a vir mas um dia chegará”. O aspecto mágico da religiosidade africana foi combatido desde sempre. Sacrifícios de animais, o contato com deuses e orixás, as previsões do futuro, a cura das doenças e o papel do sacerdote eram vistos como práticas diabólicas, sobretudo pela Igreja Católica. Anteriormente, muitos foram perseguidos pela Inquisição, que confundia batuques e danças frenéticas com invocações ao demônio. Mas a mistura com o catolicismo veio obrigatoriamente. A criação de irmandades de negros, pardos, livres e forros, e a participação em festas do calendário eclesiástico promoveram uma interação.

A partir do século 19, a organização dos terreiros com forte presença iorubá foi crescente. Muitos chefes religiosos mandavam seus filhos à África, para estudar a religião. Animistas, adoradores de folhas e pedras, eles possuíam um arsenal de divindades que, segundo o cronista, “confundiam” com santos católicos. Ele listou os cargos religiosos: os babalaôs, os açobás que preparavam as cabaças para os ritos, os aborés, mais velhos sacerdotes do candomblé, as mães-pequenas, encarregadas de fiscalizar a iniciação das iaôs ou filhas de santo, os benfeitores ogãs. Listou, também, os nomes dos babalaôs: Oluou, Eruosaim, Alamijô, Emídio, Edé-oié, muitos deles protegidos de políticos e membros da maçonaria.

João do Rio conheceu João Alabá, segundo ele um “negro rico e sabichão”, e em suas peregrinações no “mundo dos feitiços” tudo anotou sobre a iniciação das iaôs, sobre a festa de egungun, o nome dos orixás e dos 36 pais de santo que conheceu num só dia.

João do Rio, cronista carioca Reprodução

Quanto aos feitiços, havia de todos os matizes: lúgubres, poéticos, risonhos ou sinistros. O feiticeiro jogava com o amor, a vida, a morte, o dinheiro. Para matar um cavalheiro, ainda é João do Rio quem conta, bastava torrar-lhe o nome, dá-lo com algum milho aos pombos e soltá-los na encruzilhada. Os pombos carregavam a morte. Para ulcerar as pernas de um inimigo, um punhado de terra era suficiente. Tudo era resolvido depois de uma conversa entre o babalorixá e os ifás, uma coleção de doze pedras. Quando essas se negavam a responder, matava-se um bode, colocavam-se as ditas pedras em sua boca com folhas de jaborandi. Para separar casais, enrolava-se o nome da pessoa com pimenta-dacosta, malagueta e linha preta. Deitava- se isso no sangue do casal e estava pronta a desunião.

Por suas mandingas, feiticeiros eram temidos desde sempre. Mas a grande preocupação dos africanos e de seus descendentes era garantir um ritual fúnebre para si e para seus familiares. O medo de “sobrar” como assombração era combatido com as “missas para as almas”. Muitos voltavam para arrastar suas correntes em sobrados e senzalas decadentes. O cuidado com os mortos e em lhes render cultos assegurava que não voltassem para perturbar as crianças com doenças ou pesadelos. As várias Confrarias do Rosário dos Homens Pretos permitiam a união entre a religiosidade africana e a religião dos colonizadores.

Um renomado historiador baiano demonstrou que “papais”, nome que se dava ao “principal da ordem de sortilégios e feitiços”, atuavam não só como lideranças religiosas mas também como chefes de juntas que buscavam alforriar seus semelhantes. As práticas rituais serviram, a pretos africanos e nacionais, para combater as violências de seus senhores e de seu cotidiano. A religião foi, sim, um instrumento de resistência escrava. Inclusive porque não faltou clientela branca nos grandes terreiros de candomblé, macumba e umbanda, onde a relação de submissão do preto passava a ser de dominação; de escravo passava a senhor. Ele mandava, conjurava espíritos e resolvia a vida dos outros. Apenas o “pai de santo” se conectava com o mundo invisível, habitado por entidades espirituais responsáveis pela vida. Seus rituais viabilizavam essa interação. Ali, os brancos obedeciam e se curvavam.

O poder dos negros era capaz de curar o quebranto e rezar o mau-olhado que se abatesse sobre ioiôs e iaiás. Ao circular entre a medicina africana e a ocidental, entre a escravidão e a liberdade, muitas “casas de pretos”, como as chamou João do Rio, se tornaram lugares de poder e de contradição do sistema escravista no Império.


Por Mary Del Priore

Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.