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Matérias / Civilizações

Há 1.600 anos, Veneza era fundada

Tudo começou quando populações do norte da Itália se refugiaram nas ilhas de uma grande laguna na costa do mar Adriático

Odair Chiconelli Publicado em 06/02/2022, às 08h00

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Imagem meramente ilustrativa de Veneza - Aqwis/ Creative Commons/ Wikimedia Commons
Imagem meramente ilustrativa de Veneza - Aqwis/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Em 421, numa das 118 ilhas de uma laguna na costa oeste do mar Adriático, uma igreja é construída. Protegido por bancos de areia, pântanos e canais tortuosos, o lugar era refúgio seguro para populações indefesas, que, vindas do norte da península Itálica, buscavam proteção contra os povos bárbaros que, desde o século 3, saqueavam cidades do Império Romano. Surgia Veneza.

Seus primeiros habitantes constroem casas com madeira, junco e argila. Mais tarde, cravam no lodo estacas de madeira sobre as quais são colocadas tábuas grossas, pedras e tijolos. Por não ficarem expostas ao oxigênio, e devido ao complexo equilíbrio entre os minerais, microrganismos e materiais orgânicos da água, elas não apodrecem, endurecendo ao longo dos séculos.

Em 568, a chegada dos lombardos impele novas migrações à cidade, que já conta com alguma infraestrutura urbana, e mais de um século depois, suas 12 comunidades fundadoras elegem um doge (líder na forma italianizada do vêneto doxe) para centralizar o poder político. Veneza tinha de equilibrar-se entre Constantinopla, à qual se subordinava, e o vizinho Reino Lombardo.

Em 814, com o apoio do Império Carolíngio, obtém sua independência. Para fortalecer seus laços com o Ocidente e com a Igreja Católica, os restos mortais de São Marcos são trazidos de Alexandria para Veneza, em 828, e, a partir de então, o leão alado, símbolo do apóstolo, passa a ser utilizado como instrumento de propaganda do novo Estado.

Representação de Veneza por Canaletto / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Cenário mercantil

Devido à sua localização estratégica, a república veneziana se transforma numa ponte entre o Ocidente e o Oriente. Com o crescimento do comércio e o aumento da demanda por embarcações, passa a investir na construção de navios mercantes, que podiam ser convertidos em navios de guerra.

No ano 1000, em sua primeira guerra como Estado independente, derrota os piratas da Dalmácia, o que lhe permite abrir entrepostos comerciais no outro lado do mar Adriático. O antigo Arsenal da cidade seria ampliado e transformado em um estaleiro estatal no século 14, quando 2 mil trabalhadores especializados e um exército de auxiliares possibilitavam o lançamento de dois navios por dia.

Em dois séculos, ele se transformaria no maior complexo industrial do planeta, utilizando linhas de montagem, peças padronizadas e integração vertical. A produção de vidros e espelhos decorados, tecidos de seda e veludo também teria relevância econômica.

Ainda no século 13, 50 galés da sua frota mercante foram contratadas para transportar até Jerusalém mais de 34 mil pessoas, incluindo cavaleiros, escudeiros e soldados, além de cavalos, escudos e armas.

Entretanto, como os organizadores da Quarta Cruzada não puderam pagar pelos serviços na data acordada, o doge lhes propôs um breve desvio de rota, com parada em Zara, na atual Croácia, que é conquistada e saqueada por venezianos e cruzados. Na continuação da viagem à Terra Santa, aonde nunca chegariam, conquistam a capital do Império Romano do Oriente, dividindo entre si os seus territórios.

Veneza obtém 3/8 de Constantinopla e um grande número de ilhas do mar Egeu, incluindo Creta e Corfu, o que permitia que sua frota navegasse com mais segurança entre seus próprios portos. Como resultado dessa política hegemônica, a República começa a se transformar num pequeno império.

Vista de Veneza da ilha de San Giorgio / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Três poderes

Considera-se que o sucesso do modelo veneziano de governo baseava-se no equilíbrio entre monarquia (o doge, eleito pelo Senado), aristocracia (300 senadores) e republicanismo (2 mil membros do Grande Conselho). Entretanto, entre 1297 e 1323, reformas constitucionais dão aos membros da nobreza o direito exclusivo de operar o comércio marítimo de longa distância e atacadista.

Ao mesmo tempo, ocorre o encerramento do Grande Conselho, e o status de conselheiro torna-se hereditário e automático para todos os homens nobres maiores de 25 anos. O comércio se expande além do leste do Mediterrâneo, obrigando Veneza a manter agentes consulares até no distante Reino do Sião, a atual Tailândia.

Entre os séculos 14 e 16, o Estado organiza comboios de navios de carga — alugados em leilões públicos — para viajar a portos do Egito, Síria, Palestina, noroeste da África, Constantinopla, Mar Negro, França, Inglaterra e Flandres.

Em 1423, a República possuía 300 grandes navios de carga e 3 mil embarcações menores, operados por cerca de 20 mil marinheiros, que levavam madeira, metais, cânhamo, grãos, sal, pedras, mel, cera de abelha, óleo de oliva, entre outras mercadorias.

Ao retornarem, traziam perfumes, especiarias, uvas-passas, remédios, corantes, linho, lã, seda, vinho, ouro, marfim, açúcar, peles etc., dos países visitados ou de terceiros, como a China, a Índia e a Rússia. Esses produtos eram então comercializados por grandes atacadistas e distribuídos em toda a Europa.

Em 1171, Veneza cria a primeira instituição regular que pode ser comparada a um banco, então administrada pela Câmara de Empréstimos, e lança, cerca de um século depois, o ducado — moeda de ouro com 97% de pureza que utilizaria nos próximos 500 anos, com ampla aceitação internacional.

Como o comércio exterior era a espinha dorsal de sua economia, transforma-se provavelmente no primeiro Estado ocidental a estabelecer um moderno sistema de pagamentos. Diante da ameaça representada pelo expansionismo de Milão, Veneza decide adotar política semelhante para evitar o bloqueio de suas rotas terrestres.

E, assim, entre 1338 e 1499, obtém o controle de mais da metade do norte da Itália, incluindo as cidades de Treviso, Pádua, Verona, Vicenza, Belluno, Friuli, Bérgamo, Rovigo e Cremona. Em contraste com os territórios conquistados por Florença ou Milão, essas cidades, conhecidas como Terraferma, mantinham certa autonomia e podiam utilizar seus tradicionais sistemas de direito civil.

A Universidade de Pádua é um bom exemplo dessa política de tolerância em relação a territórios conquistados ou que se submetiam espontaneamente a Veneza para libertar-se de tiranos e buscar a prosperidade que ela simbolizava. Fundada em 1222, passou a ser controlada pela República em 1405, tendo recebido autonomia acadêmica para introduzir métodos experimentais, com reduzida influência da Igreja.

Esse ambiente secular possibilitaria o desenvolvimento da ciência e da filosofia sob o lema 'libertas docendi et investandi', ou liberdade de ensino e pesquisa. Lá, o astrônomo Nicolau Copérnico e o pai da anatomia, Andreas Vesalius, estudaram medicina.

Gabriele Falloppio, médico que identificou o sistema reprodutor feminino, foi mestre de Girolamo Fabrizi d’Acquapendente, cirurgião que ajudou a fundar a moderna embriologia, e teve como aluno William Harvey, médico que descreveu o sistema circulatório. Na mesma universidade, Galileu Galilei lecionou geometria, mecânica e astronomia, e Elena Piscopia tornou-se a primeira mulher do mundo a obter um diploma universitário em filosofia, em 1678.

'Entrada para o Grande Canal', de Canaletto / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Entre altos e baixos

Por outro lado, o emergente Império Otomano avança no Mediterrâneo e conquista Tessalônica em 1430, que estava sob a tutela de Veneza, e a própria Constantinopla em 1453, marcando o fim do Império Romano do Oriente.

Mais tarde, a República perderia as ilhas de Negroponte, Chipre e Creta, mantendo, entretanto, a Terraferma e as possessões no mar Adriático. Oferecendo proteção e prosperidade aos conquistados, enquanto controlava revoltas na margem oriental do Adriático, Veneza expandia seus horizontes — o que começaria a ser reconfigurado pela descoberta por Vasco da Gama de uma nova rota marítima para a Índia, em 1498.

Ao eliminar as altas margens cobradas pelos atravessadores árabes, atrairia competidores holandeses, ingleses e franceses para o comércio de especiarias. O resultado foi uma dramática contração do volume de comércio de Veneza com o Oriente.

Segundo o historiador norte-americano Frederic Lane, suas importações de especiarias passaram de 1.600 toneladas por ano, no final do século 15, para menos de 500 toneladas, na primeira década do século 16. Ao mesmo tempo, sua indústria açucareira, baseada em ilhas do Mediterrâneo, também é afetada pela produção da ilha da Madeira.

A República continuaria, entretanto, a participar ativamente do comércio com o norte da Itália e a Alemanha. Enquanto o seu comércio com o Oriente declinava, florescia em Veneza a indústria tipográfica. Entre 1495 e 1501, foram impressos 447 livros, com edições de mais de mil cópias.

Aproximadamente 250 editoras imprimiam, em várias línguas, livros de medicina, traduções dos clássicos gregos, mapas e partituras musicais, transformando a república veneziana no maior centro tipográfico da Itália e um dos maiores da Europa.

A decadência do comércio de especiarias e a crescente escassez de alimentos, motivada pelo aumento da população italiana, que quase duplica entre 1400 e 1600, leva a nobreza veneziana a transferir capitais para a exploração da Terraferma, no continente.

Para otimizar o retorno desses investimentos e melhorar a produtividade da terra, o governo e os novos proprietários iniciam um grande esforço de recuperação de zonas pantanosas e áreas improdutivas, construindo barragens, diques, canais de drenagem, estradas e pontes.

Além do milho do Novo Mundo, introduzido na metade do século 16, a produção de trigo, azeite de oliva, vinho, seda crua, lã, entre outros produtos, torna-se um investimento atraente para o capital urbano, gerando empregos no campo, enquanto o número de artesãos e profissionais que atuavam no comércio e em outras indústrias decresce. A oposição das associações de classe a inovações tecnológicas e organizacionais, os altos impostos e os elevados custos de mão de obra fazem Veneza e outras cidades italianas perderem competitividade.

Arte e prosperidade

No século 18, as artes florescem. Pintores como Guardi, Canaletto e Tiepolo, seguidores de expoentes da Escola Veneziana dos séculos 15 e 16, tais como Tintoretto e Veronese, usam cores para criar formas e captar a complexidade psicológica humana, enfatizando a ideia de alegria e riqueza da vida, características da cultura cosmopolita e secular veneziana, que não se curvava a dogmas religiosos.

Na literatura, Carlo Goldoni transforma a comédia de improviso na moderna comédia premeditada, quase 200 anos após o surgimento da commedia dell’arte italiana. Na música, compositores como Claudio Monteverdi e Francesco Cavalli têm suas óperas apresentadas em sete teatros para uma população de 150 mil pessoas.

Curiosamente, os quatro orfanatos da cidade também funcionavam como escolas de música para meninas, que tocavam e cantavam em suas orquestras e coros. O diretor de um deles foi o célebre compositor Antonio Vivaldi, autor de 770 obras, incluindo concertos e óperas. Em 1796, Napoleão Bonaparte invade a Itália.

A Serenisima Repùblica Vèneta é dissolvida em maio de 1797 e seus territórios são divididos entre a Áustria e a França. Chegava ao fim a trajetória de um povo que, protegido pelas águas de uma laguna e livre da submissão a um senhor ou líder bárbaro, decidira trilhar seus próprios caminhos, fundando uma pequena república num mundo majoritariamente feudal.

Em todas as praças e prédios públicos das cidades que, um dia, estiveram sob o domínio da República de São Marcos, o leão alado permanece como símbolo não apenas da força da palavra do evangelista, mas também da argúcia de uma oligarquia e do vigor de um povo que souberam transformar uma pequena povoação em uma potência hegemônica.

Com grande capacidade organizacional, habilidade diplomática e competência para administrar seus interesses estratégicos, Veneza propiciou a geração de prosperidade, conhecimento e inventividade, deixando um legado que reflete seu cosmopolitismo, sofisticação estética e alegria de viver, em 1600 anos de história.


Odair Chiconelli é professor de língua inglesa e pesquisador de história. Escreveu este texto especialmente para a Aventuras na História.