Na Belle Époque, jovens ousadas flertaram com o perigo e abriram caminho para as futuras gerações
Quando o movimento feminista surgiu, na virada do século 19 para o 20, sua principal causa era o direito da mulher ao voto. Nesse período, para avivar o ânimo das mulheres, surgiram as primeiras grandes revistas de moda e entretenimento, como Harper's Bazaar (1867) e Vogue (1894). "Essas publicações traziam ilustrações e cartoons sobre novos modos de pensar e viver o cotidiano", diz Patrícia Sant'Anna, professora de história da moda da Unicamp. Quem melhor representou essa mulher em transformação foi o artista gráfico norte-americano Charles Dana Gibson.
Fascinado com as "novas mulheres" (jovens norte-americanas e britânicas empenhadas em romper com os velhos padrões e ordem social), Gibson propôs às revistas em que trabalhava transformar em estilo de vida e beleza esse perfil militante. Para que as leitoras não achassem tal proposta uma loucura, ele teve de pinçar suas referências na realeza e no teatro - moças ao mesmo tempo inocentes e provocativas, que inspirassem respeito e fascínio. Em 1890, Gibson acrescentou a esse ideal algumas características-chave das ativistas sociais da época: independência, coragem e força. Surgiram as garotas Gibson, ou, em inglês, as Gibson Girls.
Elas eram modernas e engajadas, gostavam dos avanços tecnológicos, mas tinham um pé na moda e no estilo de vida aventureiro / Wikimedia Commons Durante a Belle Époque, o período entre o final do século 19 e o começo do século seguinte, fazendo fronteira com a Primeira Guerra, em 1914, floresceram os cabarés com suas dançarinas de pernas para o ar, as viagens de transatlântico e os modelos de roupas funcionais para a prática de esportes: novidades capazes de despertar euforia e perigosos desejos de liberdade nas mulheres.
Nova mulher
Segundo a historiadora norte-americana Ruth Bordin, da Universidade de Michigan, "a partir dessas influências surgiu a expressão 'nova mulher'. Popularizada pelo escritor americano Henry James, ela caracteriza jovens ativistas expatriadas que viviam entre a Europa e os Estados Unidos". Eram mulheres viajadas que, apesar ou talvez por causa de sua cultura apurada, mantinham um caráter independente e costumavam agir por conta própria.
Elas agiam por conta própria / Wikimedia Commons "Não necessariamente compromissadas com ideais feministas, sinalizavam sua posição sobre avanços tecnológicos, reformas sociais e igualdade política, cultura do consumo e defesa dos direitos dos negros, dos imigrantes e dos homossexuais", diz Martha H. Patterson, autora de Beyond The Gibson Girl: Reimagining The American New Woman, 1895-1915 ("Além da Garota Gibson: reimaginando a nova mulher americana"). Com a mobilização de campanhas realizadas em meados de 1890 para garantir o sufrágio feminino, as "novas mulheres" dos EUA e da Inglaterra conquistaram uma série de direitos, como oportunidades educacionais e de trabalho, o voto e o veto a casamentos arranjados. Em 1900, ocupavam 10% das profissões não agrícolas e lotavam as salas de aula dos cursos de medicina, direito e artes.
Em capas de revistas renomadas / Wikimedia Commons Embora livres para seguir carreira e abdicar do casamento, para as famílias tradicionais mocinhas rebeldes representavam demônios de saias que deveriam ser amansados em conventos ou internatos. "Algumas dessas jovens, quando não conseguiam escapar do cerco montado pelos pais, se envolviam em relacionamentos lésbicos dentro dos reformatórios e colégios de freiras, com o intuito de serem expulsas e até mesmo afugentar as chances de dominação masculina inerente a um futuro casamento heterossexual", diz Catherine Lavander, historiadora da Universidade do Colorado.
Amazonas
A típica Gibson Girl era alguém bem-informada sobre assuntos gerais, mas que jamais se envolveria com política ou em manifestações sindicais. Elas assimilaram muitas características da "nova mulher", como emancipação, postura dominante e interesse por arte e cultura, mas preferiam ficar nos bastidores e respeitar os "limites sociais", sem provocar transgressões. Durante a semana, frequentavam círculos literários ou aristocráticos e escolas de arte, como a Souls, a Wiener Werkestäte e o Grupo de Bloomsbury. Nos finais de semana, saíam para assistir corridas de cavalos e comprar romances sobre milionárias sul-africanas e dançarinas orientais. "As garotas Gibson copiavam o porte, o estilo de penteado e as roupas dessas amazonas populares. Liam reportagens sobre si mesmas nas revistas de comportamento e acompanhavam as tendências de Paris recheadas com comentários de moda ilustrados por Charles Gibson", afirma Patrícia Sant'Anna, da Unicamp.
A típica Gibson Girl era uma mulher bem-informada, mas o que não se envolvia em política ou em movimentos sindicais. Ela gostava mesmo de arte / Wikimedia Commons Passeios de bicicleta pelo Central Park e torneios esportivos dentro das universidades tornaram-se tremendamente populares entre as moças, que tiveram de abolir os vestidos longos. "Saias divididas foram a solução, bem como knickerbockers largos (calções curtos até abaixo dos joelhos) chamados bloomers, ridicularizados na imprensa e denunciados no púlpito", diz James Laver, autor de A Roupa e a Moda: Uma História Concisa. A garota Gibson foi o primeiro padrão de beleza nacional das mulheres norte-americanas até a chegada da Primeira Guerra, quando a moda foi deixada de lado e suas aspirações também.
Menina na África
Na literatura de ficção, a garota Gibson quase sempre foi retratada como uma jovem solteira, bem-vestida e de ar sedutor. Da lista de escritores que exploraram sua imagem, Edgar Rice Burroughs, de Tarzan (1912) e Karen Blixen, de A Fazenda Africana (1937), são os mais influentes. A Gibson de Tarzan é Jane Porter, interessada em antropologia, e mais tarde esposa do homem-macaco. Tanto na série de livros como nos filmes, Jane é apresentada como uma mocinha curiosa que evolui para uma aventureira audaz e capaz de se defender sozinha. Já A Fazenda Africana, da dinamarquesa Karen Blixen, se baseia no período em que a escritora viveu na África como uma intrépida baronesa. O best seller foi adaptado para o filme Entre Dois Amores (1985), de Sydney Pollack, e narra a vida de uma garota que se muda em 1913 para uma fazenda no Quênia e se apaixona por um caçador de marfim. "Karen Blixen gostaria de estar em casa com a senhorita Jane Porter. São personagens respeitosas, emocionantes e cativantes de dois dos contos mais conhecidos e contados do século passado", observa Robin Maxwell, autora de Jane: The Woman Who Loved Tarzan ("Jane: A mulher que amou Tarzan").
Jane Porter na animação Tarzan, 1999 Reprodução / Youtube As peripécias da garota Gibson também continuaram fora da África. No filme Titanic (1997), do diretor James Cameron, a protagonista, Rose DeWitt, é uma Gibson sufocada pelos costumes da elite à qual pertence e que, ao embarcar no vapor mais luxuoso da Belle Époque, conhece o ilustrador Jack Dawson, por quem se apaixona pouco antes de naufragar nas águas geladas do Atlântico.
O pai das meninas poderosas
O "pai" das meninas Wikimedia Commons Famoso cartunista que captou em preto e branco a essência das jovens mulheres da virada do século 20, Charles Dana Gibson (1867-1944) foi editor da revista norte-americana Life. Formado em artes gráficas na Art Students League, de Nova York, morou entre Paris e Munique, onde se especializou em pintura. De volta aos EUA, contribuiu por quase 30 anos como ilustrador de temas sociais e de moda nas revistas Harper Weekly, Scribners e Collier e influenciou uma série de outras publicações, como Vogue, Women's Wear Daily e Harper's Bazaar. Demitiu-se da Life no fim da Primeira Guerra, quando as Gibson Girls estavam saindo de moda. Isolado no Maine, no extremo norte do país, morreu como pintor de telas. Não fossem suas garotas, ele teria lugar na história dos coquetéis. Gibson é o nome de um dry martini que ele pedia com uma cebola em conserva no lugar da tradicional azeitona.