Extravagante, teatral, poderoso e reservado — o homem tímido confundido com deus à frente do Queen completaria 76 anos hoje, 5, e é examinado por sua biógrafa, Lesley-Ann Jones
Algo extraordinário acontecia todas as vezes em que o Queen subia ao palco. Multidões respondiam ao frontman Freddie Mercury, ao guitarrista Brian May, ao baterista Roger Taylor e ao baixista John Deacon cantando, levantando os punhos e batendo as mãos no ritmo das músicas que mais pareciam enraizadas na memória.
Com gestos extravagantes, vistos pela imprensa britânica da época como teatrais, o vocalista personificava a própria banda ao mesmo tempo em que construía um forte vínculo com as marés humanas de seus shows. “O que você deve entender”, disse Freddie uma vez a outro artista, “é que minha voz vem da energia do público. Quanto melhores eles são, melhor eu fico.”
Àquela altura, Freddie era Mercury, nome escolhido em referência ao mensageiro romano dos deuses, Mercúrio. Bulsara ficou para trás — ou melhor, apenas para quem conhecia Farrokh, nascido há 76 anos, em 5 de setembro de 1946, no protetorado britânico de Zanzibar, na África Oriental.
Embora o filme “Bohemian Rhapsody” (2018) tenha deixado parcialmente de lado, os primeiros anos de Freddie se passaram em uma família de parsis zoroastrianos devotos, seguidos de um período no que era considerado o melhor internato para meninos daquela parte do mundo, em Panchgani, na Índia.
Lá, ele e alguns colegas formaram uma banda, os Hectics, e tocaram músicas como “Yakkety Yak”, “Ramona”, “Girl of My Best Friend”, “Rock Around the Clock” e “Tutti Frutti”, ainda que o garoto fosse comumente descrito como tímido e solitário. Depois de dez anos — Freddie havia sido deixado na instituição com apenas oito anos —, Farrokh veio para a Inglaterra com a família em 1964.
“Talvez a coisa mais desconcertante sobre ‘Bohemian Rhapsody’, para mim, é que a infância e os primeiros anos de escola de Freddie são pouco referenciados”, diz a biógrafa de Mercury, Lesley-Ann Jones, ao Aventuras na História, por e-mail. “Para equilibrar, precisávamos de algo sobre seu passado misterioso. Precisávamos saber como esse garoto das colônias apareceu na Inglaterra. Sua história não começou no oeste de Londres em 1964, mas em Zanzibar em 1946”.
Jones, autora de quatro obras sobre o vocalista, incluindo “Freddie Mercury: A biografia definitiva” (2018) e “Love of My Life: The Life and Loves of Freddie Mercury” (2021), o conheceu quando foi enviada pelo jornal para o qual trabalhava para entrevistar o frontman e guitarrista do Queen no escritório deles. Para ela, Rami Malek não conseguiu reproduzir uma coisa simples para quem havia sido entregue a gigante tarefa de retratar Freddie.
Embora Malek tenha dado uma performance credível, eu não poderia levá-lo a sério como Freddie por causa de seus olhos azuis pálidos!”, explica. “O próprio Freddie tinha os olhos mais escuros. Suas íris eram quase pretas — eram buracos profundos que sugavam você. Porque os de Rami estavam com a cor errada, não o achei tão convincente como Freddie”.
Mas não só os olhos de Freddie foram mal representados no filme. A banda e os produtores receberam críticas pelas muitas imprecisões factuais, justificadas pelo fato de se tratar de um longa-metragem, não um documentário. “Em outras palavras, a licença criativa é permitida. A deturpação é mais aceitável quando o sujeito é falecido? Eu defendo que não é bem assim”, considera Jones.
Porque Freddie não está aqui para “dar seu lado da história”, aponta ela, os responsáveis pela produção deveriam ter tido mais cuidado de refleti-lo “como ele realmente era, e não como aqueles que compartilhavam sua órbita poderiam ter preferido que ele fosse”. O resultado disso foi uma diluição, simplificação e higienização do estilo de vida do astro “para torná-lo aceitável para o público mais amplo possível”, que incluiria adolescentes a partir dos 14 anos, segundo a classificação indicativa do Brasil.
A biógrafa é honesta sobre o que pensa que Freddie acharia de “Bohemian Rhapsody”: “Acho que ele teria odiado o filme, assim como teria odiado o musical de palco do Queen ‘We Will Rock You’. Ambas as produções não são mais do que veículos para a incrível música do Queen”.
Freddie “não gostava de jornalistas como regra, e odiava ser entrevistado”, conta Jones. Na primeira vez em que encontrou o artista, ele estava sentado na janela de seu escritório, olhando para longe, e contribuiu muito pouco para a entrevista. “Percebi mais tarde que ele estava se agarrando desesperadamente aos últimos fragmentos restantes de sua privacidade. Eu me identifiquei e me senti muito protetora em relação a ele”, relembra.
Em maio de 1986, em um bar em Montreux, na Suíça, ela e o jornalista Roger Tavener observaram o astro com alguns amigos. Em uma reviravolta “curiosa”, Mercury veio até eles pedir um cigarro — “o que percebemos ser apenas uma desculpa para falar conosco”, admite a autora — e compraram uma rodada de bebidas. Foi quando Freddie começou a falar, “e essa foi a noite em que ele nos disse que nos invejava”.
Freddie Mercury, com sua fama global e seus incontáveis milhões, invejava um par de escribas humildes com salários escassos”, diz Jones.
Ele se referia à única coisa que nunca poderia ter de volta: sua privacidade. Enquanto os jornalistas tinham a liberdade de fazer o que quisessem — com o orçamento disponível, claro, — o dinheiro de Freddie, conquistado em sua busca pelo sucesso, jamais seria capaz de comprar sua privacidade de volta. O artista declarou aos repórteres que aquele havia sido seu maior arrependimento.
Como o homem reservado que era, mantinha Bulsara para os mais próximos e vestia a pele de Mercury para a imprensa e público. Transformou o frontman do Queen em um veículo para expressar o seu interior, majestoso e cheio de excessos, de voz poderosa e elástica. “A pessoa Bulsara ainda estava lá, mas para o público ele seria esse personagem diferente, esse deus”, declarou May em um documentário de 2000.
“Freddie era duas pessoas muito diferentes e extremamente conflitantes”, explica Jones. “FreddieMercury era o artista. Freddie Bulsara era o indivíduo privado. O primeiro parecia sobre-humano e dominava vastas arenas e centenas de milhares de pessoas com facilidade. Este último era muito menor, mais tímido e reservado, e era ‘ele mesmo’ apenas com pessoas que conhecia bem e em quem confiava”.
Enquanto um popstar que gostava de manter sua intimidade fora dos tabloides, Freddie também tentou manter sua sexualidade muito para si, ainda que sempre caísse nas especulações. Hoje, sabemos que ele manteve relações com homens e mulheres, o que pode sugerir bissexualidade, ainda que pessoas próximas dele, incluindo seu assistente pessoal Peter Freestone, insistissem que Freddie fosse totalmente gay.
Ele disse que “se interessava pelas pessoas independentemente dos rótulos que a sociedade colocasse nelas”, destaca Jones, “nunca jurou fidelidade a nenhum clã, tribo, movimento ou persuasão em particular” e “era curioso em todos os níveis”. “Não é nosso direito categorizá-lo postumamente”, afirma ela.
Dias após a morte de Freddie em 24 de novembro de 1991, devido a uma broncopneumonia relacionada à AIDS, o baterista do Queen confessou: “Nós éramos muito próximos como um grupo. Mas mesmo nós não sabíamos muitas coisas sobre Freddie.”
Se estivesse vivo, Mercury completaria 76 anos nesta segunda-feira, 5. Ele continuaria ajudando a criar o som inimaginável e versátil pelo qual o Queen é famoso, proporcionando aos fãs a fantástica experiência ir do rock progressivo e heavy metal à ópera e glam rock em poucos versos? Apostaria em uma carreira solo? Largaria a música e os colegas de banda, como fez Deacon, que se recusa a comentar sobre a experiência desde então?
“Acredito que ele teria se tornado um artista de concerto solo, e teria feito aparições em grandes casas de ópera ao redor do mundo com Montsy [soprano espanhola]”, opina Jones. “O Queen teria se dissolvido, pois eles não poderiam ter continuado como Queen sem seu frontman. Eles tiveram uma carreira de quase trinta e um anos além da morte de Freddie [somente] porque ele morreu”.
Para a biógrafa, Freddie se tornou a lenda que é hoje por dois fatores principais: suas canções imensas e imortais, mais o fato de ter morrido, o que significa que não podem existir mais delas; "combine isso com a fama duvidosa de Freddie como a primeira vítima de AIDS do rock'n'roll, e a tragédia perfeita se torna uma lenda”.