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Matérias / Ginecologia

Fez experimentos com escravizadas: O controverso legado do pai da ginecologia

James Marion Sims fez contribuições valiosas para o campo da ginecologia, porém elas foram alcançadas através da dor de mulheres negras

Ingredi Brunato Publicado em 14/05/2023, às 10h41 - Atualizado em 19/10/2023, às 15h44

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Ilustração representando J. Marion Sims - Domínio Público
Ilustração representando J. Marion Sims - Domínio Público

Nascido nos EUA do século 19, James Marion Sims foi um importante cirurgião que criou ferramentas e procedimentos de valor inestimável para o cuidado médico do órgão sexual feminino, sendo por isso considerado o pai da ginecologia moderna. 

Sims não apenas é responsável pela invenção do espéculo, que permite ao profissional de saúde examinar o interior do canal vaginal, como desenvolveu um método consistente de operar fístulas vesicovaginais (uma complicação ocasionada por partos demorados, entre outros motivos), performou a primeira inseminação artificial bem-sucedida e ainda a primeira cirurgia de remoção de vesícula biliar bem-sucedida.  

Devido às suas muitas conquistas profissionais, Sims chegou a ser nomeado como o presidente da Associação Médica Americana em 1876, e se tornou presidente da Sociedade Americana de Ginecologia — esta entidade, fundada por ele mesmo — em 1880. Além disso, recebeu homenagens póstumas na forma da construção de pelo menos meia dúzia de estátuas através do território estadunidense. 

Em anos mais recentes, porém, o legado do ginecologista passou a ser questionado. Isso porque, antes de começar a operar em hospitais, J. Maion Sims teria 'treinado' usando os corpos de mulheres negras escravizadas.

Dessa forma, suas primeiras pacientes não apenas eram impossibilitadas de consentir às cirurgias (uma vez que quem decidia o que acontecia com elas eram seus proprietários), como também não eram anestesiadas durante as dolorosas operações. 

Passado sombrio

Conforme os diários escritos pelo próprio médico norte-americano, as primeiras mulheres que teriam sido submetidas ao seu bisturi se chamavam Lucy, Anarcha e Betsey. Eram mães escravizadas que, após passarem por longos trabalhos de parto (no caso de uma delas, o episódio teria supostamente chegado a durar 72 horas), desenvolveram fístulas vesicovaginais. 

A condição é caracterizada por uma ligação não natural entre o sistema urinário e a vagina, que, em geral, é causada por lesões internas. No caso de partos demorados, a contínua pressão exercida no canal vaginal pela cabeça do bebê pode cortar a circulação do tecido entre a vagina e a bexiga. Sem a irrigação do sangue, por sua vez, a estrutura necrosa, o que cria uma fissura na região. 

Uma das principais consequências da fístula vesicovaginal é a incapacidade de segurar o xixi, gerando situações de constrangimento público. Eventualmente, Sims se tornaria um dos cirurgiões mais recomendados nos EUA para resolver a condição.

Pintura de 1889 representando os anfiteatros de universidades do século 19 onde cirurgias eram demonstradas para a estudantes de medicina/ Crédito: Domínio Público

Antes disso, ele conduziu diversas intervenções experimentais fracassadas, conforme explicou em uma entrevista à rádio NPR a pesquisadora Vanessa Northington Gamble, especialista de humanidades médicas da Universidade de George Washington, localizada nos Estados Unidos. 

Ele não foi bem-sucedido no início. E é por isso que essas cirurgias [em Lucy, Anarcha e Betsy] duraram de 1846 até 1849. Então, finalmente, após 30 operações em uma das mulheres, ele finalmente foi capaz de terminar de aperfeiçoar sua técnica", apontou a acadêmica durante a conversa ocorrida ainda em 2017.

Esse período não teria sido fácil para as escravizadas, que acabaram servindo como cobaias humanas para o desenvolvimento do procedimento cirúrgico. Além disso, as tentativas de Sims de suturar a fenda no canal vaginal das mães negras foram feitas sem anestesia. 

"[As cirurgias] foram realizadas sem anestesia. Havia uma crença na época de que os negros não sentiam dor da mesma forma. Eles não eram 'vulneráveis ​​à dor', especialmente as mulheres negras. De modo que eles sofreram dor em outras partes de suas vidas e sua dor foi ignorada", explicou Gamble.

Vozes silenciadas

Outro detalhe relevante nesta discussão dos métodos sombrios usados pelo estadunidense para desenvolver práticas médicas, que posteriormente ajudariam tantas mulheres, é o que suas primeiras pacientes teriam pensado a respeito de sua participação nestes eventos. 

De acordo com as anotações de J. Marion Sims, as escravizadas queriam ser curadas de suas fístulas vesicovaginais e, para isso, estavam dispostas se submeter às operações pioneiras. Os defensores dessa parte da trajetória do médico também enfatizam esse aspecto, segundo repercutiu o portal The Atlantic: 

Mulheres com fístulas se tornaram párias sociais. No longo prazo, elas tinham motivos para agradecer que Sims as tivessem curado do vazamento urinário", disse Irwin Kaiser, um dos profissionais de saúde que se posicionou favoravelmente ao ginecologista durante uma convenção da Sociedade Americana de Ginecologia de 1978.

É importante enfatizar, no entanto, que não encontramos os registros feitos pelas próprias mulheres escravizadas que passaram pelas operações experimentais de Sims, apenas sabemos o que ele escreveu sobre elas. 

Estátuas

Um detalhe é que, em sua entrevista à NPR, Vanessa revelou que a remoção das estátuas de J. Marion Sims pelos Estados Unidos, em 2018, não era realmente a medida que achava mais ideal em resposta ao seu legado controverso. 

Estátua de J. Marion Sims que costumava ficar no Central Park, parque localizado na cidade de Nova York, EUA, e foi removida em 2018 / Crédito: Domínio Público

Em vez disso, ela propôs a construção de novos monumentos, para que não fosse mostrado só o médico que descobriu como realizar uma cirurgia importante, mas também as mulheres cujos corpos foram o palco desse avanço científico. 

Acho que o que a inscrição diria é 'Essas são Betsey, Anarcha e Lucy, as mães da ginecologia moderna'", concluiu a pesquisadora.