Em entrevista ao site Aventuras na História, Lucas, que dublou em 'Soul' e 'Simpsons' conversou sobre carreira e a atual situação do mercado no país
Seja por suas visões estereotipadas, suas influências em práticas abusivas ao até mesmo pela falta de representatividade, os desenhos animados voltaram a acalorar discussões nas redes sociais nas últimas semanas.
Em 2017, um documentário produzido pelo comediante indiano Hari Kondabolu, que ganhou o nome de “Os problemas com Apu”, criticava os diversos estereótipos negativos que eram reforçados pelo personagem Apu Nahasapeemapetilon, que trabalha como caixa no Kwik E-Mart, em Os Simpsons.
Recentemente, uma discussão levantada pelo Movimento Black Lives Matter, após a morte de George Floyd, serviu para fomentar a falta de oportunidades aos negros americanos, que mesmo com qualificações melhores ou semelhantes aos brancos, são esquecidos no mercado de trabalho.
Com isso, os produtores da série anunciaram que os atores brancos deixariam de dar voz a personagens de outras etnias, reformulando o elenco de dublagem da família amarelada.
Mas como essa situação chegou no Brasil? Será que por aqui as discussões raciais ainda influenciam em um mercado tão reconhecido com o de dublagem?
“Creio que voz não tem cor, pois arte não tem cor”, diz o dublador Jorge Lucas em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História. Com mais de 30 anos de carreira artística, sua voz é reconhecida em diversos protagonistas de grandes bilheterias do cinema, como Vin Diesel na franquia Velozes e Furiosos; ou Charlie Sheen em Dois Homens e Meio.
A lista é imensa, mesmo assim, Jorge salienta: “Por uma questão de privilégios históricos, culturais, econômicos e sociais estabeleceu-se na no mercado, como um todo, o maior e melhor acesso aos principais personagens à maioria branca”.
Jorge Lucas explica que, atualmente, o Brasil tenha em torno de 450 atores/dubladores, sendo que dessa parcela cerca de 40 atores/dubladores pretos estejam em atividade. “Poucos atingem destaque, assim como poucos conseguem se destacar no mercado artístico como um todo”.
“Há a questão social que, sim, é enfrentada por todo e qualquer cidadão de cor preta que decide entrar na arte. Acesso aos melhores cursos de formação acadêmica desde a infância, acesso aos melhores papéis, já que esses são escritos majoritariamente para atores brancos”, exemplifica.
Mesmo assim, ele vê uma pequena melhoria na reflexão sobre a representatividade e sua importância mercadológica. “Percebo uma sutil, mas progressiva melhora desde os tempos de Grande Otelo e Dona Ruth de Souza, passando por Milton Gonçalves e Léa Garcia, pela minha geração e chegando aos dias atuais dos quais estou presente”, diz.
“Quando comecei a dublar, há 30 anos, havia apenas o talentoso Paulo Flores como ator/dublador preto no Rio de Janeiro. A minha geração começou a mudar um pouco as cores dos estúdios de dublagem carioca”, celebra, mesmo sabendo que ainda é muito pouco.
Mas será que colocar dubladores negros para dar voz a personagens negros seja uma forma de garantir a inclusão dessa minoria ou apenas de segregá-las ainda mais? “É uma forma de dar a César o que é de César. Mas isso deve visto de forma muito sensível e minuciosa pois voz não tem cor”, diz Lucas.
Para o ator, um exemplo que mostra bem esse ponto de vista pode ser visto em um de seus trabalhos mais recentes: o curta Soul, da Disney, que concorre ao Oscar em três categorias — Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Filme de Animação e Melhor Som.
“Na questão da criação de uma animação como em Soul, por exemplo, onde o original é criado e interpretado magistralmente pelo grande Jamie Foxx, é uma questão de representatividade, inclusão e respeito ao contexto e à alma do personagem”, defende.
“Tive o prazer, honra e orgulho de dublar o desenho para a versão brasileira. Há alguns anos também dublo o ator em questão e considero como nada mais justo que assim o fosse. O personagem principal é negro, criado por ator negro, logo o ator que o dublou também é negro”, completa.
Outro exemplo que o ator cita é a série 'Pose', da Netflix, que aborda o cenário LGBTQI+ afro e latino americano da cidade Nova York, com a cultura ballroom dos anos 1980 e início dos 1990. “Em ambos os casos esses seres humanos sabem desde seu nascimento das agruras de ser e estar naquela condição, seja social, racial, estrutural e de gênero”.
Ainda assim, Jorge Lucas crê que não se deve restringir aos artistas/dubladores negros apenas aos personagens negros, “já que esses são sempre em muito menor número em qualquer produção, assim como é o caso das mulheres de maior idade, e também por que a dublagem é primordialmente interpretação vocal”, explica. “Repito: a arte não tem cor”.
Apesar de hoje começar a colher os frutos por não ter desistido, como ele próprio diz, nem sempre foi fácil superar as discriminações do mercado em relação a sua cor. "Já fui retirado de entrevistas de trabalho no início de minha carreira jornalística, quando meu currículo era tão bom ou superior ao de muitos brancos que também pleiteavam a vaga; eu e apenas um outro jovem negro fomos convidados educada e sutilmente a sairmos pois não atendíamos aos requisitos exigidos pela companhia”.
Ele acabou não seguindo a carreira de jornalismo, e optou pelos palcos. Apesar das dificuldades, Jorge Lucas se diz grato por tudo que vem conquistando ao longa de sua jornada.
"Como ator/dublador tive, tenho e sigo tendo grandes oportunidades, de nada posso reclamar, pois a arte da voz não tem cor e devido ao meu talento e postura diante das situações galguei lugares e sou respeitado”, afirma.
“A única questão que levanto é que até hoje, depois de 30 anos como profissional da dublagem brasileira e com um currículo vasto e respeitado, ainda não fui convidado a dirigir em empresa nenhuma”, completa. “Vale a indagação ou será mera paranoia minha?”.
Mas como acabar com esse preconceito que parece vir de berço? Sim, não é nenhum exagero pensarmos assim, visto que desde muito novos somos expostos a obras culturais que apresentam ideias racistas.
Tanto é que a Disney chegou a incluir alertas de conteúdo desta natureza em muitos de seus desenhos, como em Mogli e Peter Pan; e até mesmo grandes obras da nossa literatura tiveram que ganharem novas adaptações, como as de Monteiro Lobato.
“O aviso [sobre o racismo presente na sociedade] deve ser dado desde os bancos escolares quando as crianças pretas e brancas se sentarem para juntas estudarem não só a incrível história da Europa e suas civilizações, reis e rainhas, mas também a história da África e suas civilizações, reis e rainhas. E que ambos os continentes foram de suma importância para a formação do que hoje conhecemos como o continente americano”, diz o ator.
Apesar da posição de grandes estúdios, a mudança passou a ser discutida por diversos fãs, que acusaram as motivações para isso uma grande “lacração” ou “muito mimimi”. Porém, não é assim que Lucas enxerga isso. “Importância total e absoluta”, diz.
“Só pode falar quem já foi vitimado por racismo, homofobia, violência contra a mulher, gordofobia, xenofobia, preconceito religioso etc. A cultura pop sempre teve e manter-se-á como irradiação e protesto; reclame e visualização; representatividade e existência. Estamos aqui, continuaremos aqui cada vez mais e melhor”, afirma.
Para ele, toda e qualquer forma de racismo, seja em grandes produções ou no mercado dever ser “debatida, combatida, desmascarada, rechaçada, expulsa, execrada, e reduzida à sua real posição que é aviltante a condição humana”.
Em sua opinião, os artistas devem levar esse diálogo de maneira racional e consciente, sempre se embasando em fatos reais e verídicos, como as dificuldades que qualquer mulher e homem preto tem a mais para alcançar onde um artista branco chega em “minutos”.
“Dublo o personagem Carl dos ‘Simpsons’ há 25 anos e sinto-me muito feliz e representado por isso e creio ter sido muito assertivo que meus colegas artistas tenham aberto mão de seus personagens em prol de uma representatividade, respeito à arte e ao ser humano a qual eles também acreditam”, conclui.
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