Expulso do brasil, o grupo de refugiados ajudou a fundar a maior e mais próspera comunidade judaica fora de Israel
Um lugarejo feio, sujo e com ruas lamacentas, nas quais porcos, vacas e galinhas dividiam o mesmo espaço com os cerca de mil habitantes da localidade, construída pelos colonizadores holandeses na América do Norte sem qualquer tipo de planejamento urbano. Habitantes que, por sinal, eram tão rudes quanto o lugar em que viviam: homens entornavam canecos de cerveja quente e vinho ordinário numa das várias tavernas espalhadas por ali. Brigas de faca durante bebedeiras também eram comuns.
Esse foi o cenário encontrado por 23 judeus, entre homens, mulheres e crianças, ao chegarem, em setembro de 1654, ao porto da ilha localizada no estuário do Rio Hudson, chamada de Nova Amsterdã pelos imigrantes e de Manna-hata (lugar onde se colhe madeira para fazer arcos de flechas) pelos índios nativos.
O nome dado pelos povos originários foi se popularizando e o lugar ficaria mundialmente conhecido, séculos depois, por Manhattan. Surpreendentemente, aquela vila feia, pobre e suja, com casas construídas em madeira e com sede administrativa das possessões holandesas na América do Norte, se transformaria em uma das mais cosmopolitas metrópoles do mundo: Nova York.
Ao desembarcar na futura potência americana para tentar começar uma nova vida, longe de perseguições políticas e religiosas, os 23 passageiros judeus da fragata de bandeira holandesa Valk encerravam uma longa viagem de mais de seis meses.
A trajetória teria começado no porto do Recife, em Pernambuco, no Brasil, de onde foram expulsos junto com os holandeses que chegaram durante o período conhecido como ocupação holandesa no Brasil, entre 1630 e 1654.
“É uma saga que permite estabelecer uma conexão direta entre as fogueiras da Inquisição na Península Ibérica, a opulência da época de ouro dos Países Baixos, as guerras sangrentas do chamado ‘Brasil Holandês’ e os primórdios da cosmopolita Nova York”, diz o jornalista e escritor Lira Neto, que acaba de lançar 'Arrancados da Terra'.
Na obra, o autor resgata a história dos sefardistas — judeus ibéricos perseguidos pela Inquisição da Igreja Católica nos séculos 16 e 17 e que, para escapar da conversão forçada ao catolicismo ou da fogueira do Santo Ofício, fugiram para diversos locais da Europa e do mundo, entre eles o Brasil.
A ideia inicial de Lira Neto, autor de consagradas biografias históricas, como a de Getúlio Vargas e a do Padre Cícero, era escrever sobre a vida do conde holandês Maurício de Nassau, nomeado pela Companhia das Índias Ocidentais para governar os domínios holandeses em terras brasileiras, entre 1637 e 1644.
Nesse período, o governo de Nassau ficou conhecido como uma época de grande prosperidade econômica em Pernambuco e profundas transformações urbanas no Recife, que ganhou novos traçados de ruas, novas pontes, modernização dos serviços públicos, palacetes de alvenaria e uma efervescente vida cultural e social.
“Mergulhado na bibliografia sobre o tema, acabei por descobrir minha própria ascendência cristã-nova, que remonta aos sefardistas que chegaram ao Brasil no período de ocupação neerlandesa nas capitanias açucareiras, o que equivale à atual região Nordeste”, justifica Lira. O biógrafo decidiu então desenrolar o novelo da histórica tensão entre judeus e cristãos, tema que remonta aos tempos bíblicos.
“Cristãos-novos” era a maneira como os judeus convertidos à força pela Igreja Católica passaram a ser chamados na Europa a partir do século 16 — uma maneira pejorativa de diferenciá-los dos “cristãos-velhos”, os autênticos devotos do cristianismo.
Os novos também eram chamados sarcasticamente de “marranos”, algo como “porco” derivado do castelhano. Porém, mesmo com a conversão forçada, a maior parte dos cristãos-novos ao redor do mundo continuava a praticar o judaísmo de maneira secreta.
Em Portugal, comunidades inteiras se reuniam nos porões das casas ou outros locais escondidos para exercer a sua fé original. Nos documentos eclesiásticos, essa parcela da população aparece pelo menos desde 1536 — ano em que a Inquisição foi instituída em Portugal por Dom João III.
Mas, vale lembrar, o antissemitismo na Península Ibérica é algo muito anterior, que remonta ao século 4, quando bispos católicos se reuniam no Concílio de Elvira para pregar o isolamento entre cristãos e judeus. Pelas regras estabelecidas, judeus e cristãos não podiam nem se alimentar na mesma mesa.
Ao longo dos séculos, a política em relação aos judeus ibéricos alternava períodos mais tensos com outros de maior tolerância e até ascensão política dos seguidores de Moisés. Em espe cial durante a ocupação muçulmana do sul da península, a partir do século 8.
“Sob o califado de Al-Andalus, sediado em Córdoba até o final do século 10, floresceu uma civilização mourisca cosmopolita e sofisticada, e nela os judeus viveram uma espécie de ‘idade do ouro’. Ocuparam posições de destaque, incluindo a de secretários de Estado de príncipes e califas, exercendo os ofícios da medicina, astronomia, finanças e cartografia, além dos mais sábios despontarem como poetas e filósofos”, diz um trecho de Arrancados da Terra.
Mesmo em Portugal, cujo reino foi reconhecido pela Santa Sé em 1179, o convívio alternava períodos pacíficos e violentos, de acordo com a conveniência e os interesses, principalmente econômicos, de cada rei que ocupava o trono português.
A situação começou a piorar muito, porém, com a chamada Reconquista Ibérica, no século 15, quando cristãos retomaram o controle de toda a Península e iniciaram um período de violenta perseguição aos judeus, por meio da Inquisição.
Com a Igreja e o Estado fortemente aliados em Portugal e Espanha, onde, na prática, não se sabia os limites do poder entre eles, quem não aceitasse a conversão ao cristianismo estava sujeito a todo tipo de perseguição, tortura, confisco de bens, prisão e até a morte.
Nada escapava das garras do famigerado Tribunal do Santo Ofício, que estendeu sua perseguição a diversos outros grupos, como ciganos, homossexuais e aquelas que eram consideradas bruxas. “As opções eram a conversão forçada ou a fogueira”, explica o historiador Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor acadêmico do Instituto Brasil-Israel.
Ele refere-se à época mais dura da Inquisição, durante o período da Reconquista, quando milhares de judeus fugiram de Portugal para outros países da Europa. Um dos destinos preferidos dos refugiados era a Holanda, onde havia maior tolerância religiosa por parte do protestantismo que dominava o país.
Além disso, a capital, Amsterdã, era um efervescente centro urbano, cultural e econômico. O comércio era forte, o Estado era federalista — e não absolutista como em Portugal — e os bancos e a Bolsa de Valores funcionavam a todo vapor.
O porto local era um entreposto de mercadorias para todo o mundo e o país sediava uma poderosa empresa chamada Companhia das Índias Ocidentais, fundamental na construção do “Brasil Holandês”, por meio da nomeação de um governador geral, em 1637: Maurício de Nassau.
Para que a colonização neerlandesa deslanchasse no Brasil, Nassau sabia que precisava de colonos e de mão de obra qualificada, como arquitetos, alfaiates, cirurgiões, comerciantes, tanoeiros, pedreiros, sapateiros, vidraceiros etc.
Para isso, ele sabia: ninguém melhor do que a colônia portuguesa-judaica em Amsterdã que, além de seus atributos em diversos ofícios, tinha bons conhecimentos da língua nativa, o português. “Colonos pobres nenhum proveito trazem ao Brasil. Mas ao capitalista todas as portas estão aqui abertas”, descreveu Nassau, nas correspondências à matriz da companhia na Europa.
Alguns colonos judeus de Amsterdã que vieram ao Brasil durante a dominação holandesa prosperaram nas mais diversas áreas e setores da economia, inclusive no cultivo da cana-de-açúcar, tornando-se senhores de engenho, e no comércio de escravos.
Os primeiros chegaram junto com os conquistadores neerlandeses, em 1630, no rastro de parentes no Brasil, também fugidos da Inquisição, em busca de oportunidades em uma nova terra ou até como tradutores dos dirigentes holandeses, já que tinham conhecimentos da língua portuguesa.
No governo de Nassau, o fluxo de imigrantes judeus da Holanda para o Brasil aumentou consideravelmente, lotando a sala de um sobrado alugado na Rua dos Judeus (atual Rua Bom Jesus), no Recife, onde se reuniam para as orações de sábado. Assim, em 1637, era fundada a sinagoga Kahal Zur Israel, considerada a primeira das Américas.
Com a partida de Nassau do país, em 1644, e o consequente declínio da dominação neerlandesa no Brasil, os judeus começaram novamente a ter problemas de perseguição religiosa e econômica, forçando-os a uma nova migração.
“Com a recuperação luso-brasileira das capitanias açucareiras e o consequente fim da ocupação holandesa, não havia alternativa aos judeus senão partir, pois, do contrário, voltariam a ficar sob jugo da Inquisição”, afirma Lira Neto. “A maioria voltou para a Holanda ou espalhou-se mais uma vez pelo mundo, incluindo aí, em especial, as várias possessões neerlandesas existentes na época, particularmente no Caribe”, completa.
Em janeiro de 1654, após a vitória da Coroa portuguesa sobre os holandeses no Brasil e a retomada do Recife, epicentro da ocupação neerlandesa durante mais de uma década, o general Francisco Barreto de Meneses, que assumiu o governo de Pernambuco, exigiu a lista de todos os judeus do Recife e concedeu um prazo de três meses para que todos liquidassem seus negócios em terras brasileiras e partissem para sempre.
E então começa a saga envolta em mistérios. Um dos navios que levaram famílias judias embora do Brasil, o Valk, teria tomado um rumo desconhecido e, sem que se saiba direito o que aconteceu, foi parar na América do Norte.
A partir desse ponto, a História é fragmentada e pouco documentada, baseada mais em evidências e constatações do que em documentos históricos esclarecedores. Uma das hipóteses é que o barco tenha sido abordado por piratas em algum ponto da viagem e tenha desviado a rota pelo Caribe rumo à América do Norte.
Os viajantes também podem ter mudado de direção de maneira acidental por conta de intempéries ou mesmo outros imprevistos desconhecidos durante a travessia do Oceano Atlântico. O que se sabe é que o Valk chegou a Nova Amsterdã com 23 passageiros, provavelmente vindos do Brasil. Estabelecidos na nova terra, teriam ajudado a construir Nova York e os Estados Unidos.
Mas também não há muitos detalhes sobre eles após o desembarque e quantos ou quais teriam se estabelecido na vila ou nos arredores, tornando esse capítulo uma parte ainda aberta na História e que intriga e desafia os estudiosos.
Em 'Arrancados da Terra', Lira Neto discute justamente se a fragata que aportou na ilha de Manna-hata era oriunda do Recife. No texto, ele cita diversos documentos e estudos históricos elaborados por especialistas brasileiros e norte-americanos ao longo das décadas, que atestam ou não a versão de que se tratava de judeus brasileiros, já que os registros da época eram imprecisos e pouco esclarecedores.
Em 1893, o historiador norte-americano Charles P. Daly, presidente da American Geographical Society, publicou um livro afirmando que um conjunto de 23 judeus teria chegado a Nova Amsterdã proveniente do Cabo de Santo Antonio — que o autor identificou como sendo na Bahia.
Posteriormente, outro historiador americano, Leon Hühner, questionou e localizou o Cabo de Santo Antonio em Cuba. Outros estudos, porém, indicam que os judeus saíram do Brasil, passaram pela Jamaica, Cuba e finalmente chegaram aos EUA. Já um documento oficial do governo norte-americano pesa fortemente a favor da versão de que brasileiros do Recife ajudaram, sim, a construir Nova York e os Estados Unidos.
Na manhã do dia 1º de maio de 2012, uma terça-feira de primavera em Washington D.C., um texto da Casa Branca foi distribuído à imprensa com os seguintes dizeres: “Há 358 anos, um grupo de 23 refugiados fugiu do Recife, Brasil, acossado pela intolerância e opressão. Quando esses homens, mulheres e crianças desembarcaram em Nova Amsterdã, hoje cidade de Nova York, encontraram não apenas um porto seguro, mas as sementes de uma tradição de liberdade e oportunidade que uniria para sempre suas histórias à história americana”. A declaração era assinada pelo então presidente dos Estados Unidos e o primeiro afro-americano a ocupar o cargo: Barack Obama.
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