A AH entrevistou vários especialistas e pediu a opinião para decidir: quem são os homens brasileiros mais relevantes da História?
A AH pediu a especialistas que indicassem os personagens mais importantes do país. O resultado revelou algumas surpresas como: Joaquim Nabuco e José Bonifácio.
Como qualquer lista, esta tem dolorosas omissões. Figuras importantíssimas, como Rui Barbosa, dom João VI e Sérgio Buarque de Holanda ficaram de fora por um voto. Nem o primeiro herói brasileiro, Tiradentes, figurou entre os mais votados.
Veja a lista final baixo:
Getúlio Vargas — Herança onipresente
Nenhum brasileiro poderia ser mais polêmico. E, ao mesmo tempo, não há dúvidas de que não deveria ser outro na primeira posição desta lista. Getúlio Vargas foi um ditador — e um presidente democrático — que dividiu o país. É possível amar ou detestar seu legado. Mas é impossível negar que ele está em todo lugar.
A Consolidação das Leis do Trabalho, a legislação sindical, a Petrobras, a Ordem dos Advogados do Brasil, e mesmo coisas mais abstratas, como um certo nacionalismo excludente, que encara adversários como “entreguistas”, inimigos da nação, todas são heranças da Era Vargas, que, 80 anos depois, ainda não é objeto de consenso entre pesquisadores.
A própria natureza política de Vargas é difícil de avaliar. A Revolução de 1930, na qual ascendeu ao poder como presidente provisório, prometia industrializar o Brasil e corrigir os defeitos antidemocráticos da República Velha. Em 1932, o voto tornou-se secreto, obrigatório e passou a incluir as mulheres, de forma a acabar com o voto do cabresto, no qual líderes locais pressionavam os eleitores a elegerem seus candidatos, já que era possível saber quem votava em quem.
A demora em entregar uma nova Constituição e o fato de a Revolução ter deposto um paulista, Washington Luís, levaram São Paulo a uma guerra civil, a Revolução Constitucionalista de 1932. O estado foi derrotado, mas a Constituição saiu, por meio de uma assembleia eleita de acordo com novas leis, em 1934.
Eleito indiretamente no mesmo ano, Vargas detestou o resultado da Constituição, para ele oneroso demais para o orçamento público e liberal no combate à subversão — em 1935, houve um levante comunista. Antes que seu mandato acabasse, em 1937, ele deu um autogolpe, impondo uma nova Carta, que proibia greves, acabava com os governos estaduais e permitia ao governo demitir funcionários públicos, baseada na Constituição da Polônia, de inspiração fascista.
O Brasil desenvolveu indústrias de base, como a Companhia Siderúrgica Nacional, de 1941, e a Vale do Rio Doce, no ano seguinte. Também deu uma séria guinada para o fascismo. Foi estabelecido um culto à personalidade do ditador, e as manifestações culturais foram enquadradas numa perspectiva nacionalista e construtiva. Em 1942, esse país autoritário entraria em guerra contra o fascismo, tornando-se o único da América Latina a enviar tropas à Europa — e vencer os alemães, diga-se.
A contradição em lutar por democracia com uma ditadura em casa não passou despercebida. Ao fim da guerra, Vargas foi deposto. Mas sua popularidade era imensa, e ele voltou como presidente eleito em 1951. O Getúlio democrático governou um país sectário. A imprensa e a classe média estavam contra ele. A esquerda, que Vargas havia perseguido, passou a apoiá-lo. Em tempos de Guerra Fria, essa aliança apenas exaltou os ânimos.
Em meio a uma furiosa polêmica causada por uma tentativa de assassinato ao jornalista opositor Carlos Lacerda por um membro da guarda pessoal do presidente, Vargas escreveu seu famoso “Saio da vida para entrar para a História” e deu um tiro no coração. Seu fantasma assombraria o país para sempre. Seriam seus aliados ou opositores que decidiriam o futuro do Brasil pelas próximas gerações.
Dom Pedro II — Imperador cidadão
Ele reinou por 58 anos, no mais longo período de estabilidade política do país. E isso em si já é uma conquista: quando, em 23 de julho de 1840, foi declarado maior de idade, aos 14 anos, e assumiu o trono, o Brasil enfrentava três revoltas separatistas: a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Além dos conflitos civis, Pedro também venceria três guerras externas — a do Prata (1851-1852), do Uruguai (1864) e do Paraguai (1864-1870).
Apesar do histórico militar impecável, não é pelas glórias da caserna que o imperador ficou conhecido. Pedro foi, como diz o historiador Jean Marcel Carvalho França, “um dos melhores governantes que teve o Brasil, quiçá o melhor”. Enquanto os vizinhos saltavam de caudilho em caudilho, o Brasil contava com plena liberdade de pensamento e direitos constitucionais, ao mesmo tempo que ferrovias e as primeiras indústrias se instalavam no país. As eleições podiam ser falhas e manipuladas localmente por liberais e conservadores, mas a existência dos partidos era garantida.
O imperador jamais abusou de seus poderes. E a sociedade aproveitava a liberdade. A imprensa fazia críticas tão ferozes que até viajantes europeus as consideravam excessivas. A reação do monarca intelectual deveria servir de exemplo para políticos brasileiros de hoje: ele mesmo pegava na pena e escrevia réplicas, publicadas sob pseudônimo.
A liberdade política convivia com a grande mácula da escravidão. “Pedro consubstancia, como Vargas, as contradições do Brasil. Soberano culto, moderado, antenado com a ciência, foi também o monarca da escravidão”, diz Pedro Paulo Funari, da Unicamp. As contradições eram grandes. Pedro era liberal convicto, até demais.
Em 1862, registrou em seu diário: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador”. A seu próprio exemplo, os liberais brasileiros eram, em maioria, republicanos. Quem apoiava a monarquia era o Partido Conservador, dos proprietários de escravos. Assim, um imperador liberal, que repudiava a escravidão, era sustentado por quem vivia da instituição.
Pedro buscou uma abolição gradual. A Lei do Ventre Livre, de 1871, evitava o nascimento de novos escravos. E a Lei dos Sexagenários, de 1885, libertou os mais velhos. Elas costumam ser subestimadas, mas a população de escravos caiu de 1,6 milhão em 1872 para 720 mil em 1887. Assinada por sua filha Isabel, a Lei Áurea, sem indenização aos proprietários, fez com que os conservadores retirassem o apoio à monarquia.
Com ninguém interessado em que a caseira e carola princesa Isabel fosse imperatriz, em 15 de novembro de 1889 um golpe militar acabou com o regime — e com todas as liberdades civis. O imperador republicano não fez nada para manter seu trono. Ele se mostrou mais ofendido com o exílio do que com a queda da monarquia.
Longe do país, em depressão, morreu o “governante que amava o Brasil acima de tudo e que dedicou sua vida a tentar fazer de sua pátria um país melhor”, nas palavras da historiadora Isabel Lustosa. O Brasil guardaria os exemplos de tolerância e liberdade plantados em seu governo.
Dom Pedro I — O herói de dois países
É piada velha no Brasil lembrar um detalhe patético — e irrelevante — da independência, que o imperador passava mal dos intestinos. Mas ninguém pode negar o intenso teor nas palavras “Independência ou morte”. E morte houve: a pouco falada Guerra de Independência se estenderia até 1824, deixando 1 800 baixas. É relativamente pouco diante do que enfrentaram os vizinhos hispânicos.
Portugal não empenhou todas suas forças em impedir que alguém de sua casa imperial fosse rei do novo país. Pedro, assim, se tornou o “artífice da forma conciliatória de nossa independência”, como afirma o professor Lincoln Secco, da USP.O primeiro imperador do Brasil fazia o que queria.
Em 9 de janeiro de 1822, por causa de suas amizades e do amor ao lugar no qual havia passado a maior parte da vida, decidiu não embarcar para Portugal, onde nasceu e era o primeiro na linha de sucessão. Recusando um trono europeu, preferiu tornar-se o único monarca da América. Aliás, recusou dois tronos: a Grécia, que conquistou a independência do Império Otomano em 1820, havia proposto a Portugal que lhes enviasse o herdeiro para fundar uma nova monarquia.
O imperador também era radical nas ideias. Nascido após a Revolução Francesa, no que era uma das últimas monarquias absolutistas da Europa, tornou-se adepto do liberalismo — ideologia então revolucionária, e, vale lembrar, esposada pelo maior inimigo de Portugal, a França de Napoleão Bonaparte. Foi por esses ideais que, afinal, havia sido criado no Brasil, após a fuga da corte portuguesa diante das tropas napoleônicas, em 1808.
Ele poderia tentar, como seus ancestrais, governar como monarca absoluto — e não faltavam brasileiros que apoiassem a ideia. Em vez disso, fez questão que o Brasil tivesse uma Constituição, em grande parte inspirada na Carta da França revolucionária. A Constituição de 1824 foi outorgada depois que ele cassou a Assembleia Constituinte, que se recusou a dar poder político ao imperador. A Assembleia estabelecia uma separação de poderes e um governo indireto do imperador, por meio de ministros apontados por ele.
A impulsividade de Pedro I acabaria levando à sua queda. No ano da independência, havia se tornado amante de uma fidalga paulista, a divorciada Domitila de Castro. Ele não fez questão de ocultar o romance — dando à amante o título de Marquesa de Santos, um dos mais altos da nobreza. Isso chocou visitantes estrangeiros e alienou sua esposa, a austríaca Maria Leopoldina. Amada pelos brasileiros, a imperatriz morreu em 1826, sob suspeita (falsa) de violência doméstica. Os políticos o viam como um personagem autoritário e lançavam suspeitas sobre seus laços com Portugal. O libertador do Brasil abdicou do trono em 1831.
Pedro foi a Portugal para lutar contra seu irmão, dom Miguel IV, que havia tomado o poder em 1828, num golpe absolutista. Com a vitória de Pedro, garantiu-se a liberdade constitucional em Portugal. Para a historiadora Isabel Lustosa, “Pedro I foi personagem fundamental para o processo de implantação do liberalismo político no Brasil e em Portugal”. Atacado pela tuberculose, morreu como herói de dois países no mesmo quarto onde nasceu 35 anos antes.
José Bonifácio — O pai da pátria
Na independência, Bonifácio tinha quase 60 anos. Vinha de uma longa carreira, a maior parte dela na Europa. Estudou direito e filosofia natural na Universidade de Coimbra, onde entrou em 1783, e tornou-se um dos mais respeitados cientistas do Império Português, tratando principalmente de química e mineralogia. Em 1808, quando as tropas de Napoleão invadiram Portugal, ele não veio ao Brasil junto com a corte portuguesa.
Ficou lá para defender o país que considerava seu: tornou-se comandante do Batalhão Acadêmico, uma milícia formada por estudantes e professores. A iniciativa aparentemente quixotesca teve alguns sucessos, como a tomada do Forte de Santa Catarina das forças napoleônicas, no primeiro ano da guerra. Os franceses nunca conseguiriam dominar totalmente o país.
À primeira vista, pode parecer uma imensa zebra que um homem que nunca governou o país nem deixou uma obra extensa esteja em posição tão alta na lista. Mas os historiadores têm razão. José Bonifácio é o nosso pai da pátria, como lembra Mary del Priore. Ele representa para o Brasil o que Benjamin Franklin é para os Estados Unidos: um filósofo-cientista que conseguiu moldar um novo país às suas ideias.
“Além de ter antecipado temas importantes para o destino do Brasil, como a abolição, a independência econômica, a organização da Marinha, a preservação da natureza e a redistribuição de terras, foi o brasileiro mais inteligente de seu tempo”, diz a historiadora Isabel Lustosa.
Assim, foi como um patriota português que José Bonifácio voltou ao Brasil em 1819. Com a perspicácia de cientista, começou a desvelar vários planos para o país: o fim da escravidão, a criação de escolas públicas, a preservação ambiental e a reforma agrária, confiscando propriedades improdutivas. Ele só se tornou adepto da independência na última hora, defendendo a representatividade igualitária dos brasileiros nas cortes de Lisboa — mas as cada vez mais claras intenções portuguesas em tornar o Brasil novamente colônia o fizeram aderir ao movimento.
Quando dom Pedro I decidiu ficar no Brasil, ele chamou José Bonifácio para ocupar o cargo de ministro de Negócios do Império — jamais um brasileiro havia ocupado posto tão alto. No ano seguinte, com seu irmão Martim Francisco, foi um dos membros da Assembleia Constituinte, liderando o bloco dos liberais.
Com a Assembleia propondo tornar o imperador uma figura simbólica, sem poder nenhum, dom Pedro I a dissolveu em 12 de novembro de 1823, outorgando uma Constituição liberal, mas que mantinha o imperador como chefe do Poder Executivo. Perseguido, o velho pai da pátria foi exilado para a França. Mas esse não seria seu fim.
Em 1828, os irmãos Andrada puderam voltar ao Brasil. Dom Pedro I enfrentava uma crise de popularidade aqui e problemas externos em Portugal. Quando abdicou da coroa e foi para a Europa, em 1831, deixou a José Bonifácio o cargo de tutor oficial de seus filhos. Assim, a formação intelectual de dom Pedro II, um dos pontos mais notáveis do monarca, deve seu início a José Bonifácio. O lider ilustrado da independência do Brasil, como define o professor Lincoln Secco, da USP, merece ser chamado de pai da pátria.
Juscelino Kubitschek — Senhor simpatia
É testamento vivo de seu carisma que um presidente que assumiu o poder há quase 60 anos, cuja maior realização é uma cidade que não está exatamente em alta conta no imaginário popular, e que deixou o país em situação complicada para seus sucessores, consiga se manter como o mais amado da História do Brasil. Em 2001, numa pesquisa similar entre seus leitores, ele foi eleito pela revista Época como o brasileiro do século.
Boêmio, amante das coisas boas da vida e famoso por seu gosto por dançar, Juscelino assumiu a cadeira presidencial no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1956. Já tinha fama de “grande modernizador, responsável pela busca do futuro, em detrimento do passado”, como define Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Sua promessa de campanha era fazer o Brasil avançar 50 anos em 5, e a principal peça desse plano era a nova capital. A ideia vinha desde tempos coloniais, por considerações estratégicas — evitar um ataque naval à capital — e também como forma de levar parte da população para o centro do país, praticamente desabitado.
Quando JK deixou a cadeira, em 1961, sem possibilidade de reeleição pelas leis da época, o fez do Palácio do Planalto, em Brasília. Deixava também uma herança maldita a seus sucessores, na forma de dívidas acumuladas na construção da capital e uma inflação galopante.
A outra parte de seu plano era trazer a modernidade capitalista para o Brasil, construindo obras para resolver os gargalos de infraestrutura — o famoso “custo Brasil” que ainda hoje aparece no noticiário econômico. Isso consistia na criação de hidroelétricas, como o complexo de Furnas, e inauguração de estradas, como a Fernão Dias, de São Paulo a Belo Horizonte.
As obras se davam em paralelo à abertura do país para o capital estrangeiro, com a chegada de montadoras de automóveis, além do corte de impostos para importações de máquinas. As novas oportunidades deram início ao ciclo de migração do Nordeste para os polos industriais do sul do país.
O Brasil avançou menos de 50 anos, mas a mística de JK tem mais a ver com seu tempo do que com suas realizações. JK assumiu após o suicídio de Getúlio Vargas, enfrentou tentativas de impedir sua posse e conseguiu governar por um período de paz e liberdade. O Brasil ganhou sua primeira Copa do Mundo em 1958 e a Bossa Nova fez sucesso no exterior. Brasília era uma cidade de ficção científica, inteiramente planejada. Parecia a quem viveu então que finalmente se cumpriria a profecia do escritor alemão Stefan Zweig, que o Brasil é o país do futuro.
A era JK ficou conhecida como os Anos Dourados — ainda mais pelo contraste com o que viria a seguir, uma crise institucional que só terminou no golpe de 1964. Durante a ditadura, em 1966 ele se aliou ao ex-adversário Carlos Lacerda e ao presidente deposto João Goulart, que havia sido vicepresidente em seu governo, na Frente Ampla pela Redemocratização. Morreu em um acidente na Via Dutra em 1976, um fato que ainda é colocado em dúvida por muita gente. A Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo concluiu que sua morte foi uma conspiração de militares.
Joaquim Nabuco — A consciência da elite brasileira
Ilustre desconhecido para o leitor — ficou na 27ª colocação na votação pela internet, atrás de Pelé e Ayrton Senna —, Joaquim Nabuco é um personagem que precisa de introdução. Nascido em uma geração de talentos brilhantes, a mesma de Machado de Assis e Rui Barbosa, foi o maior pensador brasileiro de seu tempo. “Em um país carente do gênero, foi um intelectual e um político de primeira grandeza, que deu uma contribuição relevante para fazer avançar a civilização brasileira”, afirma Jean Marcel Carvalho França, da Unesp.
A principal herança de Nabuco foi como figura central da campanha abolicionista. “Herdeiro da nobreza do Império, sobre a qual escreveu obra notável, foi ativo militante da causa abolicionista, autor da obra mais consistente de seu tempo sobre o assunto”, diz Isabel Lustosa. O escritor não poupava palavras: “A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar”, escreveu.
Mas a questão foi sondada, e por isso sabe-se hoje a profundidade do problema. Durante o século 20, sociólogos como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda deixaram claro o quanto a instituição cravou uma vergonhosa marca nos costumes e cultura do país, visível ainda hoje.
A biografia do intelectual é, de certa forma, um contraponto à de Machado de Assis, com o qual travou uma longa amizade. Se o último nasceu pobre e mulato, e nunca conseguiu estudar, o primeiro era um fruto do privilégio. Filho do senador pernambucano José Tomás Nabuco de Araújo, formou-se em direito e sua primeira ação política foi defender um escravo acusado de assassinar o senhor, em 1869.
Em 1876, conseguiu um cargo como adido da legação brasileira nos EUA, vivendo em Nova York e Washington. Dois anos depois, foi eleito deputado por Pernambuco pelo Partido Liberal. Defendeu não apenas a abolição, mas também os direitos dos indígenas, posicionando-se contra um projeto de exploração do Rio Xingu. Em 1880, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, a ponta de lança em seu combate.
Foi ousadia demais mesmo para os liberais, vários dos quais eram senhores de terras. Sem apoio do partido, não conseguiu se reeleger. Assim, em 1882, iniciou carreira como jornalista, chegando a correspondente em Londres. Escreveu sobre tudo, tornando-se uma espécie de voz da consciência da elite brasileira. Isso inclui uma segunda causa, menos lembrada: a laicidade do Estado.
O intelectual chegava a soar anticlerical ao tratar da influência do catolicismo no Estado — que ainda o tinha como religião oficial. Nabuco criticava a hipocrisia dos padres em relação à escravidão: “A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”. Foi por influência dele e de outros intelectuais que a República abandonou a ideia de religião oficial.
Nabuco defendeu até o fim a monarquia constitucional. Convidado a participar da Assembleia Nacional Constituinte de 1891, recusou a oferta, lançando o manifesto Por Que Sou Monarquista. A briga com a República acabou em 1900, quando aceitou um cargo na Inglaterra. Ainda seria embaixador em Washington, em 1905, e presidiria a III Conferência Pan-Americana, no ano seguinte.
Machado de Assis — Amargura nos trópicos
Poucos personagens destoam mais daquilo que se costuma popularmente associar ao Brasil que o maior autor da literatura nacional. Em pleno Rio de Janeiro tropical, suas histórias revelam obsessões por morte, melancolia e traição. E, ao mesmo tempo, ninguém podia ser mais representativo: nascido de um pintor de paredes mulato e uma lavadeira portuguesa, tornou-se órfão de mãe aos 10 anos de idade. Sem nunca pisar na sala de aula de uma universidade, Machado de Assis teve de inventar a si mesmo.
E que colossal construção foi essa: na definição de Jean Marcel Carvalho França, da Unesp, Machado foi “um dos poucos escritores brasileiros que podem, sem qualquer apelo ao nacionalismo tolo que atualmente contamina o país, ser incluído no rol dos grandes literatos do Ocidente”.
O crítico literário americano Harold Bloom, um dos mais respeitados do mundo, o colocou entre os 100 maiores autores de todos os tempos, ao lado de figuras como Homero, Shakespeare, Cervantes e Dante Alighieri. Bloom afirmou que o brasileiro foi o maior autor negro da História — e o coloca acima de clássicos como o francês Alexandre Dumas e o russo Alexander Pushkin.
Relacionado ao fato de ser negro está uma das maiores controvérsias de sua carreira. Ele enfrentou o preconceito da família de sua esposa, a portuguesa Carolina Novais, que foi rejeitada pelos pais por ter-se casado com o mestiço. Grande mestre da ironia, Machado nunca usava de linguagem direta para expressar suas opiniões. Por isso, foi acusado por contemporâneos, como José do Patrocínio e Lima Barreto, de ficar em cima do muro sobre a maior questão de seu tempo, a escravidão.
Seus livros abordam o tema do ponto de vista do dominador, com personagens centrais brancos e privilegiados. Em décadas mais recentes, críticos como Roberto Schwarz têm tentado tirar do autor essa mácula de “embranquecido”, ressaltando quanto sua crítica da escravidão e relações raciais pode ser lida nas entrelinhas.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), por exemplo, o personagem principal aparece recordando com saudades como fazia um escravo de cavalinho na infância — e esse mesmo escravo, depois alforriado, torna-se proprietário de escravos, uma amarga ironia sobre a condição dos negros. Em uma obra escrita depois da abolição, o conto Pai Contra Mãe, de 1906, o autor foi mais explícito: um capitão do mato sem condições de sustentar o filho captura uma escrava fugida grávida.
Em todo caso, é difícil cobrar engajamento político de um autor que, como diz Mary del Priore, “começa a vida progressista e liberal e termina num paternalismo conservador”. A revolução, em Machado de Assis, ficava para a literatura, com seu livro mais radical, Memórias Póstumas, tendo passagens que soam experimentais ainda hoje. Ele recusava as novidades ideológicas da época, como o socialismo, o darwinismo social e o positivismo.
Em um país que tentou se refundar por três vezes, por meio de golpes que levaram ao chão as instituições, não deixa de ser salutar haver essa voz contrastante. Machado de Assis temperou os açucarados excessos tropicais brasileiros com uma bem-vinda dose de amargura.
Oscar Niemeyer — O arquiteto do futuro
A cena se repetiu várias vezes na última década: quando alguém perguntava ao centenário arquiteto sobre sua inspiração, ele se punha a desenhar mulheres nuas. “A forma segue o feminino”, dizia Oscar Niemeyer, que desafiou ao longo de toda a vida a tendência internacional por torres fálicas e caixotões angulosos. Dessa maneira algo folclórica, argumentava o arquiteto mais importante do Brasil, de acordo com Andrea Casa Nova Maia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no que parece ser um consenso quase universal, mesmo entre seus piores detratores.
Em 1934, quando pegou seu diploma de arquiteto, a maior novidade era o chamado estilo internacional, que é fácil de reconhecer: são as típicas torres corporativas, sem qualquer ornamento e com janelas de vidro reflexivo. Niemeyer começou na profissão como adepto do estilo: seu primeiro trabalho importante, o Palácio Gustavo Capanema, projetado em 1939 e concluído em 1943 como sede do Ministério da Educação e Saúde, parece à primeira vista uma típica caixa modernista.
Mas pequenas heresias entregam o autor: as caixas-d’água são curvas, e um mural de azulejos decora o vão do prédio — decoração era palavrão para os modernistas de então. Concluído no mesmo ano, a pedido do então prefeito Juscelino Kubitschek, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, revela de uma vez por todas as formas curvilíneas que fariam sua fama para sempre.
As duas obras lançaram o brasileiro ao estrelato internacional — que não pode ser subestimado. Em 1939, ele projetou a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, junto com um de seus inspiradores, o suíço Le Corbusier. Por duas vezes, ele foi convidado a dar aulas em universidades americanas, primeiro em Yale, em 1946, e depois em Harvard, em 1953.
Em ambas, seu visto de trabalho foi barrado por ser abertamente comunista — e isso custaria ao Brasil seu exílio por quase todo o período militar, amargamente instalado na capital que, em grande parte, ele havia desenhado. “Niemeyer representa bem a ânsia de progresso técnico e social, com reconhecimento mundial.
Suas contradições — pouco interesse pelo passado e pelas liberdades individuais — retratam bem o Brasil”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Até Niemeyer, a tendência no Brasil era imitar o que se passava no exterior, às vezes de forma literal — concluído em 1939, o Edifício Altino Arantes, em São Paulo, é uma quase cópia do Empire States, com um terço do tamanho do original. Passou-se então a imitar Niemeyer.
E não só aqui: existe até um nome em inglês para a arquitetura que remete a ele: googie, um estilo futurista que foi usado em cassinos de Las Vegas, em aeroportos e até lava-rápidos nos anos 50 e 60.
A arquitetura brasileira acabou no desenho animado Os Jetsons, série na qual todos os prédios pareciam ter sido transplantados de Brasília: “A arquitetura é claramente inspirada em profissionais que trabalharam no estilo moderno da metade do século 20, como John Lautner e Oscar Niemeyer”, escreveu o especialista em ficção científica Matt Novak, da Fundação Smithsonian, ao tratar do desenho animado. O estilo pode ter saído de moda, mas, graças a Niemeyer, houve um dia em que o Brasil realmente foi o país do futuro.
Zumbi dos Palmares — Em guerra contra o sistema
Existe uma razão por que a data de morte Zumbi dos Palmares tornou-se o Dia da Consciência Negra. O Brasil teve vários abolicionistas, alguns deles negros, como José do Patrocínio (1853-1905). Mas todos tinham algumas características em comum: eram, brancos ou negros, respeitáveis senhores nas suas elegantes casacas novecentistas, parte do sistema sustentado pela escravidão, e defendiam uma reforma, não uma revolução.
Patrocínio até mesmo organizou uma “guarda negra”, formada por ex-escravos, para atacar comícios republicanos. Zumbi não apenas não fazia parte disso como viveu em guerra contra o sistema que sustentou o Brasil colonial e imperial.
Sobrinho do rei Ganga Zumba, Zumbi iniciou uma insurreição contra o tio quando ele tentou um acordo de paz com os portugueses, em 1678. Zumbi não queria viver como um subalterno nas terras dos brancos, se é que eles cumpririam a promessa de não torná-los escravos novamente.
O antigo rei foi envenenado por um de seus seguidores, e ele ascendeu ao trono, para passar mais de 20 anos em guerra contra os portugueses. Resistiu até a fatídica tomada do quilombo pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, em fevereiro de 1694.
O líder escapou e passaria quase dois anos rondando pela floresta com sua tropa, até ser traído e cercado com seus últimos 20 soldados. Sua cabeça foi exposta ao público para desmentir sua fama de imortal — zumbi quer dizer espírito nas línguas bantu do sul da África.
Palmares era um pedaço da África bantu transplantado para o Brasil. “Em plena escravidão, Zumbi foi líder de uma comunidade livre e que acolhia pessoas perseguidas, como judeus, muçulmanos, mulheres acusadas de bruxaria e índios”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp.
A população geral dos Palmares pode ter chegado a 30 mil pessoas, em vilas e numa aldeia central fortificada, defendida por armas de fogo. Quem mandava eram os monarcas bantus, mantendo costumes ancestrais. E isso incluía a escravidão: só quem chegava por seus próprios meios, fugido, era considerado livre. Aqueles que fossem capturados em ataques contra fazendas continuavam a ser escravos.
Isso talvez soe chocante, mas seria anacrônico exigir de um líder africano do século 17 que fosse contra a instituição da escravidão. Negros, brancos e índios escravizavam-se mutuamente desde a Pré-História. E, afinal, Palmares continuava a ser um refúgio para os perseguidos. “Com todas as limitações da época, constitui um exemplo de convivência que pode nos inspirar ainda hoje”, afirma Pedro Paulo Funari.
E, em todo caso, é recomendável uma leitura cuidadosa da história de Zumbi. Talvez ele pertença mais ao domínio do mito do que da realidade. Tudo o que se sabe sobre ele foi escrito por seus inimigos, e alguns historiadores nem mesmo acham que ele fosse uma pessoa real.
Jean Marcel Carvalho França — que participou da eleição, mas não votou em Zumbi — afirma em seu livro Três Vezes Zumbi que o nome provavelmente se referia a um título, o general do quilombo, e não a uma única pessoa. O professor Lincoln Secco, da USP, define Zumbi como uma “figura mítica da resistência ao escravismo”. É assim, com tal sentido mítico, que o grande guerreiro negro deve ser entendido.
Monteiro Lobato — Tempestade intelectual
Nacionalista fã dos Estados Unidos. Modernista que odiou a Semana de Arte Moderna. Empresário sagaz que fundou a indústria editorial no país e morreu com fama de comunista. Adepto inicial de teorias racistas, que depois embarcou numa cruzada para salvar o homem do campo. Autor de livros infantis que amava viver em guerra com os adultos. Esse foi Monteiro Lobato — um brasileiro que podia estar errado, mas não podia ser ignorado.
Hoje, ele é lembrado como o criador de uma literatura infantil genuinamente brasileira, com cheiros, cores e sabores das casas do interior do país, na definição de Isabel Lustosa, da Fundação Casa de Rui Barbosa. Mas seria uma injustiça limitar o turbilhão intelectual que foi Monteiro Lobato aos seus personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Metade do que escreveu se destinava a adultos, e ele levava isso ferrenhamente a sério: defendia suas ideias — que eram muitas, e nem sempre boas — de forma sincera, cruel e virulenta. Em um país que preza a conciliação, ele era a voz rebelde e ruidosa a discordar da maioria. Para Pedro Paulo Funari, da Unicamp, foi “inspiração como intelectual engajado”.
Lobato entrou no discurso público chutando a porta, em 1912, quando o jornal O Estado de S. Paulopublicou seu artigo Velha Praga, no qual descrevia o caboclo, mestiço de índio e português que habitava desde os tempos coloniais as zonas rurais do Brasil como um “funesto parasita... inadaptável à civilização”.
Morando em uma fazenda em Taubaté, interior de São Paulo, ele andava às turras com seus vizinhos caboclos, que insistiam em fazer queimadas mesmo em época de secas, arruinando suas terras. Na véspera de Natal daquele ano, o mesmo jornal lançou o conto Urupês — nome para o orelha-de-pau, um fungo que cresce em madeira podre. Foi a estreia nada simpática do Jeca Tatu, cuja preguiça seria a causa de todos os males do país.
Em 1918, fundou a Monteiro Lobato & Cia., primeira editora criada por um brasileiro, que lançou os pioneiros best-sellers nativos. Lobato dizia que “livro é sobremesa, tem que ser posto debaixo do nariz do freguês”. Com livros coloridos e ilustrados, fez fortuna na década seguinte. O racismo anticaboclo foi abandonado nos anos 20, quando leu a respeito da ancilostomose, o amarelão, doença que causava o que ele julgava ser preguiça — o Jeca passou a ilustrar cartilhas de conscientização dos órgãos de saúde.
Lobato partiria para outras brigas: desancou o modernismo ao criticar uma exposição de Anita Malfatti, no artigo Paranoia ou Mistificação, acusando os modernistas de colonizados. Na década seguinte, entrou em campanha para a exploração do petróleo no Brasil pela iniciativa privada, acusando o governo Vargas de “não perfurar e não deixar que se perfure”. Foi parar na cadeia em 1941.
Anglófilo, viveu nos Estados Unidos entre 1927 e 1931 como adido comercial do governo, e não se importava em enfiar personagens como Popeye no Sítio do Pica-Pau. Seu desgosto com o Estado Novo o levou à esquerda, aproximando-se de Luís Carlos Prestes. Em seu último livro, Zé Brasil (1947), criticou a estrutura fundiária e as desigualdades sociais. O grande empreendedor morreria como simpatizante do comunismo.
Os votantes
Andrea Casa Nova Maia, Isabel Lustosa, Jean Marcel Carvalho França, Joel Rufino dos Santos, Leandro Narloch, Lincoln Secco, Marco Antônio Villa, Mary Del Priore, Paulo Rezzutti e Pedro Paulo Funari.
Saiba Mais sobre estes personagens através das obras abaixo
Getúlio, Lira Neto (2012)
link - https://amzn.to/2N5VcrF
D. Pedro II, José Murilo de Carvalho (2007)
link - https://amzn.to/2J0IclS
D. Pedro: Imperador do Brasil e rei de Portugal, Eugênio dos Santos (2015)
link - https://amzn.to/2P15HPi
Box - Todos os contos de Machado de Assis (2019)
link - https://amzn.to/2pu6gGT
De olho em Zumbi dos Palmares, Flávio dos Santos Gomes (2011)
link - https://amzn.to/33SEWRB
Vale lembrar que os preços e a quantidade disponível de produtos condizem com os da data da publicação deste post. Além disso, a revista Aventuras na História pode ganhar uma parcela das vendas ou outro tipo de compensação pelos links nesta página.