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Matérias / Personagem

Da minha avó à Lourdes Alencar, benzedeiras que mudam a realidade

De raízes indígenas e influência africana, benzedeiras e rezadeiras simbolizam o sincretismo brasileiro religioso; conheça-as!

Sidney Nicéas* Publicado em 16/10/2024, às 16h15

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Imagem ilustrativa de uma rezadeira - IOV Brasil
Imagem ilustrativa de uma rezadeira - IOV Brasil

O universo da espiritualidade humana impressiona. O que dizer então das rezadeiras, curandeiras e benzedeiras? O Brasil é por natureza inevitável um país com um sincretismo ímpar no mundo.

Das raízes indígenas às influências poderosas africanas, muitos recheios povoam essa seara, passando pelas crenças europeias, judaicas, pelos personagens que surgiram no seio popular… e por aí vai.

Sou neto da falecida Dorinha, ou Dona Dora, como muitos a chamavam, uma rezadeira espetacular. Vovó era da Umbanda, credo que sintetiza muito bem o citado sincretismo — quando os negros escravizados faziam seus rituais religiosos africanos, apanhavam feio e para não sofrerem mais passaram a utilizar imagens católicas, religião do sinhô, e os feitores nada mais faziam.

Vovó era filha de Iemanjá. Em dia de São Cosme e São Damião, a fila era absurda em frente à sua casa, pois ela distribuía brinquedos, bombons e outras guloseimas para a criançada. Recebia gente com frequência para que ela tirasse mau olhado, outras energias ruins, presenças de espíritos malignos, dentre outras coisas.

Eu me lembro vagamente de uma história, reavivada pela minha mãe Wolda: meu irmão Diego era 'virado num mói de coentro', como costumam dizer aqui em Pernambuco para definir crianças hiperativas, mas naquele dia padecia de algo diferente. Febre alta, do nada, não queria nem comer. Mamãe estranhou e meu pai, José Luiz, logo veio com a ideia de levá-lo para sua mãe Dorinha rezar. Mamãe nem pestanejou.

Diego chegou nos braços de papai. Vovó aconchegou ele numa cadeira, pegou um frasco de perfume de Alfazema e uns ramos de Arruda. Com uma reza inaudível nos lábios, fazia movimentos com os galhos e ao final usou o perfume. Meu irmão desceu da cadeira já correndo e fazendo das suas estripulias. Impressionante: o menino estava novo de novo!

Dona Lourdes Alencar

A nossa vida, ao que parece, é cheia de conectividades e sincronicidades. Minha avó se foi, surgiu em minha vida Dona Lourdes Alencar, personagem central da biografia que escrevi intitulada 'Todos os Amores de Lourdes'.

Estuprada diversas vezes pelo pai na infância, teve uma vida impressionante, tendo adotado 10 filhos (além dos três de barriga) — tirando cada um dos adotivos de situações absurdas —, se tornou uma líder na própria comunidade e… era uma rezadeira de mão cheia.

Atendia muitas pessoas, incorporava entidades, rezava o povo, benzia, dava recados do mundo invisível. Dona Lourdes está viva, com 74 anos, teve dois infartos, um AVC, é diabética e muito apegada aos seus santos de vários credos. Seu trabalho espiritual mudou a comunidade em que vive e sua fé impressiona.

Há um trecho na biografia 'Todos os Amores de Lourdes' que aponta de maneira certeira para tudo o que foi aqui explicitado (claro que há muito mais):

"Outra realidade ia se materializando. O que danado era todo aquele estranho, incisivo, temido? Zefinha nunca foi fechada às coisas do invisível, nunca. Nutria um sincretismo religioso que a fazia flutuar das novenas ao batuque dos tambores, das Ave-Marias aos passes energéticos nos Centros Espíritas, das orações nas igrejas às incorporações de espíritos, tudo fazia sentido. O que fazer então com toda aquela fé mística quando a própria filha parecia brincar entre os quase extremos? Não foi o padre local, nem o centro kardecista de Seu Walfrido, muito menos o pastor da igreja; foi Dona Biu que a atraiu, ela e Seu Bel de Nem e o terreiro que ambos comandavam. Foi pra lá que levou a menina franzina, filha do pai, filha da... Mãe! Tentava se equilibrar entre o amor e o ódio que todo aquele inferno de vida fazia concentrar na menina-ferrugem. Sete aninhos somente... Deus! Só Deus! Foi no terreiro que as cortinas se abriram de vez. Como uma pirralha de sete anos podia fazer tanto? De pé ao centro, empinada, voz retorcida, bateu os pés e sacudiu uma canção nos lábios, Nosso guerreiro hoje está em festa, Vamos Saravá meu pai, Seu Sete Flechas, Trazia no peito uma cobra coral... Houve dança e mensagem pacífica. Deu passes nas pessoas que ali buscavam ajuda. O guerreiro pareceu batizar a menina".

Como duvidar do trabalho honesto e árduo de Dona Lourdes (que se manifestou quando ainda era criança), ou da minha amada e saudosa avó Dorinha, cujos resultados ajudaram tanta gente? Ambas viveram na pobreza, trabalharam para sustentar suas crias, nunca desistiram, nem se entregaram às dificuldades, muito menos abdicaram de trabalhar de graça em prol dos outros.

São apenas exemplos brasileiros de mulheres extraordinárias, que simbolizam muito bem o citado universo da espiritualidade humana e todo o sincretismo que nos define. Você duvida? Eu não.


*Sidney Nicéas é escritor, professor, ator e produtor cultural.