Entenda como uma lenda que refletia o medo da escravidão deu origem a um dos maiores ícones do cinema
O que tem a ver os mais célebres – e, a esta altura, superexpostos – monstros canibais do cinema com as lendas do vudu haitiano e o mais famoso líder quilombola do Brasil colonial? Nas línguas da família bantu, como o quimbundo de Angola, a palavra nzumbi evoca algo como “espírito”, “fantasma” ou “morto”. Nzambi, o espírito de tudo, é o maior dos deuses. E a palavra inglesa zombie veio do português, usada pela primeira vez em 1819, num texto do poeta inglês Robert Southey ao mencionar ninguém menos que Zumbi dos Palmares.
O líder quilombola era chamado assim porque tinha fama de ser imortal, um poderoso espírito. No Haiti, o significado era mais tétrico. Por lá, um zumbi é um morto-vivo – mas muito diferente do hollywoodiano. Um zombi é um morto reanimado por um bokor, um mago vudu, que vive de trabalhos por encomenda. Ele pode ter duas formas. Um zumbi astral é um espírito preso em uma garrafa, servindo para dar poder e sorte ao portador. Um zumbi físico é um corpo ressuscitado e sem mente própria. Ambos presos e escravizados pelo feiticeiro, num ritual de magia negra.
É interessante notar o quanto o horror do zumbi diz a respeito do Haiti, um país que nasceu de uma grande rebelião de escravos. É um jeito de continuar a ser um escravo mesmo após a morte. Um pavor existencial que fazia todo o sentido para os haitianos.
Esses zumbis não eram canibais, muito menos contagiosos. Nem fictícios, possivelmente: em 1980 Clairvius Narcisse reapareceu para sua família após 16 anos. Em 1964, ele havia sido admitido num hospital, alucinando, tendo seu óbito decretado pelos médicos e sendo enterrado, após 24 horas no necrotério. Segundo ele próprio contou para a imprensa mundial, um bokor o havia atacado com um pó, que o levou ao hospital.
Após seu enterro, foi resgatado da sepultura de noite e obrigado a tomar uma poção misteriosa. Serviria como escravo numa plantação de cana, por dois anos. Quando o dono da propriedade morreu, ele e os demais “zumbis” passaram a vagar, confusos, acreditando serem, de fato, mortos-vivos. E, na ausência da poção do controle, recuperando aos poucos a memória.
O antropólogo canadense Wade Wilson estudou o caso e acredita ter descoberto os ingredientes no pó e na poção: o primeiro seria composto de tetrodotoxina, o veneno do baiacu. Frequentemente fatal, na dose certa pode simular um estado temporário de “morte” que pode tapear médicos modernos. A poção levaria plantas alucinógenas potentes, como as do gênero Datura. Acreditando ter mesmo morrido, e sem ter mais qualquer papel a cumprir na sociedade, a vítima aceitava sua nova identidade como zumbi. Outra parte do mito hollywoodiano veio da Europa. Na Idade Média, havia lendas sobre os revenants, corpos reanimados de pessoas malignas ou amaldiçoadas – um grupo que incluía os vampiros, mortos-vivos sugadores de sangue, que não viviam em castelos, mas no cemitério atrás da igreja.
As duas tradições se encontram no começo do século 20. Em 1922, H. P. Lovecraft lança seu conto Herbert West – Reanimador. É a primeira história em que os mortos-vivos surgem por um processo científico. E nela, ao contrário dos revenants medievais ou dos zumbis haitianos, eram tomados por uma fúria animal incontrolável. Lovecraft não usou o termo “zumbi”, porque esse só entraria para a cultura popular ocidental depois. Foi com o filme White Zombie, de 1932. Nele, Bela Lugosi é um bokor branco que controla um exército de zumbis e quer zumbificar a mocinha.
Finalmente, em 1968, veio George Romero. Ele dá (des)vida à forma definitiva do zumbi hollywoodiano moderno em seu A Noite dos Mortos-Vivos. Eles são reanimados por um vírus espacial vinda de uma sonda que caiu na Terra e se espalham como uma praga, causando a queda da civilização. Jamais no filme é usada a palavra “zumbi”. Romero estava bem ciente de que suas criaturas nada tinham a ver como o folclore haitiano. Mas ela já estava no vernáculo, e todo mundo chamou os mortos-vivos de Romero e seus sucessores de zumbis.
Ainda hoje, aliás, a tradição de Romero é mantida. Quase nenhum filme de zumbi usa a palavra “zumbi”. Isso geralmente é reservado a comédias, como Zumbilândia (2009) e Todo Mundo Quase Morto (2004).