Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História, o professor da Universidade da Antuérpia, Pascal Gielen, analisou as consequências do isolamento social
Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto causado pelo coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional. Já em março do mesmo ano, a organização avançou a classificação para pandemia.
Desde então o mundo enfrenta uma ameaça em comum. O inimigo invisível gerou tensões entre as nações, crises humanitárias e impactou diretamente nas relações dos seres humanos.
Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História, então, o sociólogo e professor da Universidade da Antuérpia, Pascal Gielen, explicou os efeitos da pandemia e do isolamento social na educação e na cultura.
Lançada no Brasil pela Editora Cobogó, a obra “Proximidade — Arte e educação depois da covid-19”, escrita por Gielen em conjunto com a filósofa Marlies de Munck, reflete sobre a importância da arte em momentos de tensões.
No campo educacional belga, por exemplo, o especialista disse ter notado que tanto os alunos quanto os educadores viram as formas de ensino híbridas como um fardo e um obstáculo durante o processo de aprendizado.
Não precisamos nos tornar derrotistas e declarar o fim da educação agora que estamos todos online. No entanto, há uma sensação de fim agora que nos voltamos para salas de aula virtuais e ambientes de aprendizagem online", comentou o sociólogo.
"Estamos convencidos de que isso é muito mais sentido por todos aqueles que anteriormente experimentaram a profunda satisfação que pode vir com o ambiente de sala de aula tradicional 'na vida real'. Quando bem sucedido, este último chega muito perto de uma performance artística ao vivo", disse Pascal Gielen, em entrevista à AH.
Nesse sentido, a falta do contato presencial entre os estudantes e os professores tornou a relação ainda mais distante e impessoal, de tal forma que, segundo o sociólogo, pode estreitar os laços educacionais e dificultar o processo de aprendizagem.
"A ambição de fazer a diferença e tocar o coração de seus alunos é algo que faz os professores continuarem. A convicção, também, de que, a longo prazo, esses momentos podem realmente fazer uma mudança na vida de alguém. E para ser honesto, até agora o ambiente de ensino online, com suas telas anônimas e apresentações em power point com voz, nunca chegou nem perto dessa experiência”, explicou o especialista.
No início da pandemia, em muitos lugares ao redor do mundo, os espaços culturais foram os primeiros a sofrerem com as restrições. Para evitar aglomerações, muitos governos adotaram medidas de bloqueio ou toque de recolher, como no caso da Bélgica.
Segundo Pascal Gielen, o governo belga viu a necessidade de fechar os estabelecimentos para impedir o avanço do vírus. Por outro lado, as autoridades disponibilizaram verbas para a área da cultura.
A tecnologia influencia não apenas a qualidade do som e da imagem, mas também o número de pessoas que podem estar envolvidas em uma produção", explicou o sociólogo. "Artistas solistas, por exemplo, geralmente encontram menos dificuldades em comparação com grandes companhias de teatro para adaptar suas apresentações aos formatos online."
"Estamos muito curiosos e, claro, um pouco preocupados com o resultado de tudo isso. Parece, por exemplo, que artistas que são naturalmente inclinados para os formatos digitais, seja pelo tipo de arte que fazem, ou apenas por seu conhecimento pessoal de tecnologia, são financeiramente encorajados e favorecidos em relação aos artistas que até agora investiram na vida e performances não mediadas”, argumentou ele.
Para o especialista, existe uma experiência artística sendo formada neste tempo de pandemia. Contudo, é difícil precisar quais serão as consequências exatas para cada cultura, nação e povo.
"Talvez possamos testemunhar como os artistas criam novas formas sensuais e simbólicas para incorporar e expressar o sentimento, o gosto e as experiências particulares desses tempos de pandemia. Ou "arte corona" pode se tornar algo nostálgico, uma experiência compartilhada, afinal, para a qual podemos olhar para trás e, assim, unir nossas gerações? Certamente, existem experiências artísticas interessantes em andamento com as novas tecnologias”, refletiu.
Vale ressaltar que, atualmente, com a vacinação da população da Bélgica, os espaços culturais e de entretenimento foram voltaram a abrir as portas. A autorização, contudo, prevê que eles devem cumprir as medidas de segurança orientadas pela OMS.
No decorrer da obra “Proximidade — Arte e educação depois da covid-19”, são citadas as teorias sobre aura do filósofo e sociólogo judeu Walter Benjamin. Embora seus estudos tenham em torno de 100 anos, eles são mais atuais do que nunca para Gielen.
Vemos como a evolução tecnológica não muda apenas o cerne da experiência estética, mas também nossas formas de ver, ouvir e nos relacionarmos na vida diária", ponderou. "A pandemia e seus remédios e soluções tecnológicas definitivamente aceleram os processos contínuos de individualização, impondo não apenas distância social entre os indivíduos, mas também transformando-os em unidades atomizadas e aparentemente autossuficientes.
"Todos colocados diante de nossas telas pessoais, podemos ter a impressão de estar conectados com o mundo, mas ao mesmo tempo essas conexões perdem sua profundidade. Por meio da mídia digital, podemos ainda estar em contato uns com os outros, mas o sabor desse 'toque' mudou completamente”, analisou o sociólogo.
Ao longo do livro, os autores argumentam que a presença física não é um fator supérfluo nas relações humanas, isto é, a sensibilidade está presente nas pessoas. Para isso, eles destacam as teorias de Benjamin, a fim de compreender como tais aspectos são perdidos diante dos contatos virtuais.
Segundo Pascal Gielen, assim como as obras de arte, os seres humanos têm uma aura. Isto é, quanto mais perto, mais fácil é de senti-la. Todavia, se essa proximidade é excluída, a natureza das relações humanas acaba sendo afetada.
"Isso está muito de acordo com os ensinos de Benjamin. Mesmo sem condenar ou mesmo criticar explicitamente as novas formas de lidar com o mundo mediadas pela tecnologia, ele afirmou muito claramente que algo se perde na reprodução tecnológica. Em nosso ensaio, ampliamos essa afirmação, pois tememos que o mesmo possa acontecer com a aura das pessoas humanas. Podemos perder nossa sensibilidade e, como consequência, esquecer ou minimizar a importância da proximidade nas relações humanas”, explicou o especialista.
Ainda de acordo com a obra “Proximidade — Arte e educação depois da covid-19”, durante a pandemia as relações sociais foram reduzidas, sendo elas familiar e profissional, informal e formal, íntima e anônima, privada e pública. Contudo, para o autor da obra, tal fato pode ser extremamente problemático.
"Achamos que isso é bastante problemático porque as pessoas se acomodam em uma espécie de privacidade e economizam espaço onde não precisam se encontrar com o outro, ou pessoas que você ainda não conhece e não está familiarizado. Assim, uma espécie de abertura ao outro — a não ser por razões estritamente profissionais — foi problematizada. Achamos que exatamente essa situação estimula uma sociedade hiper individualizada”, disse ele.
Para o professor da Universidade da Antuérpia é importante ressaltar que as redes sociais podem aproximar os indivíduos, mas ao mesmo tempo, podem afastá-los.
Temos a impressão de que as discussões online são frequentemente mais fragmentadas e superficiais do que eventos offline, mesmo que seja apenas por causa das frequentes dificuldades técnicas e falhas nas conexões de áudio e vídeo", disse.
"Mas é claro, também sabemos da literatura científica sobre, por exemplo, coesão social que as pessoas podem se unir sem se conhecer fisicamente. Isso é chamado de 'coesão ideal'. Assim, comunicando ideias de uma cultura comum, falando a mesma língua ou promovendo a arte ou o desporto nacional, pode-se unir as pessoas sem contacto físico ou proximidade. Mas o que você sente falta nisso é a respiração coletiva, o ritmo coletivo de se mover juntos ou ter a experiência de ficar em silêncio e de se concentrar juntos”, pontuou Pascal Gielen.
Ainda na obra do sociólogo, os autores evidenciam preocupações sobre o empobrecimento estético ao conduzir a vida de forma somente online. Para crianças, isso é ainda mais perigoso, uma vez que elas tendem a evitar espaços públicos, principalmente com pessoas que não possuem a mesma opinião delas.
"A pandemia do coronavírus e, especialmente, o distanciamento social e a digitalização do ambiente educacional das crianças, podem empurrá-las ainda mais nessa linha", narrou Gielen.
"Portanto, a fim de proteger suas habilidades intelectuais e sociais, certamente teremos que moderar o tempo de nossos filhos online e encorajá-los a continuar atuando e brincando na vida real tanto quanto possível. Do lado positivo, certamente há algo como 'fadiga digital' e notamos como se tornou um estado geral, não apenas entre colegas e amigos, mas até mesmo entre as crianças. Muitas pessoas querem repensar o profundo emaranhado da tecnologia digital em nossas vidas”, concluiu o especialista.