Em 1968, alunos da USP e Mackenzie se enfrentaram na Rua Maria Antônia; agora, episódio que culminou com o AI-5 é retratado nas telonas
O Golpe de 1964 polarizou o país. Apesar de muitas pessoas apoiarem a derrubada do presidente João Goulart, elas esperavam que os generais não demorassem muito para reestabelecer a democracia. Não foi o que aconteceu.
Assim, cada vez mais, surgiam manifestações populares contrárias ao regime, que passava a se tornar mais autoritário e violento. Quatro anos após o golpe, o movimento estudantil se tornou ainda mais ferrenho apoiador do reestabelecimento da democracia.
Em março daquele ano, um ato no cento do Rio de Janeiro culminou com a morte do secundarista Edson Luís, de apenas 18 anos. Sua perda serviu como estopim para grandes manifestações populares, como a Passeata dos Cem Mil.
Mas a insatisfação contra o governo passou a ser repudiada. Em 2 de outubro de 1968, por exemplo, ocorreu a chamada Batalha da Rua Maria Antônia, quando se enfrentaram estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. As instituições ficavam na Rua Maria Antônia, na região central de São Paulo.
"O movimento estudantil era e é o ambiente onde muitos de nossos quadros políticos são forjados", explica Vera Egito, diretora do filme 'A Batalha da Rua Maria Antônia', que será lançado no próximo dia 27, em entrevista ao site Aventuras na História.
Acho que durante a ditadura e até hoje os estudantes representam a fé de que a estrutura social pode mudar, pode evoluir. Sinto que o tempo traz um cinismo a todos nós. O movimento estudantil com sua juventude acredita e luta por mudança como nenhum outro setor social faz".
A Batalha da Maria Antônia começou quando os alunos da USP e secundaristas fizeram um 'pedágio' para arrecadar dinheiro e organizar o Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes).
O ato irritou os estudantes do Mackenzie — muitos eram membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) —, que fecharam a rua para impedir a passagem de automóveis e também começaram a atirar pedras, ovos e outros objetos nos manifestantes.
Apesar do episódio colocar frente-a-frente grupos estudantis com divergências em suas opiniões políticas, Vera Egito aponta que é difícil afirmar que havia consenso na visão de que a USP era palco da 'esquerda' e o Mackenzie da 'direita'.
"Imagino que nunca há [consenso], pelo menos não absoluto. Mas a escola de filosofia estava ocupada pelos estudantes já havia tempo. Ali aconteciam as reuniões da UNE, já clandestina naquele momento. Havia muitos estudantes de esquerda no Mackenzie também, como há até hoje. A batalha se deu contra membros do CCC, o comando de caça aos comunistas, composto por agentes da ditadura treinados e infiltrados entre os estudantes mackenzistas", contextualiza.
A diretora acredita que a USP 'abraçou' os movimentos estudantis, pelo fato das universidades públicas, naturalmente, serem a casa do livre pensar. "É onde o país gesta suas melhores mentes, ou ao menos deveria ser, livre do compromisso com marcas ou interesses privados. No ensino superior público, a prioridade são os interesses da nação, do povo, da sociedade contribuinte".
Historicamente, quem se dedica a reflexão, estudo e pensamento social, majoritariamente, desenvolve uma postura de esquerda. E isso não é à toa, obviamente. A maioria das pessoas que se aprofunda na lógica que rege a sociedade percebe o quão injusta e violenta ela é e se coloca em direção à mudança".
Durante dois dias, a Batalha da Rua Maria Antônia ficou marcada por agressões, ataques com paus, pedras, coquetéis molotov e bombas. Durante os atos, o secundarista José Carlos Guimarães, de apenas 20 anos, foi atingido na cabeça por um tiro vindo do Mackenzie e acabou morrendo.
O conflito se estendeu até a Praça da Sé, onde estudantes incendiaram um carro do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Enquanto isso, a polícia interviu de forma truculenta e prendeu mais de 30 estudantes.
O prédio da USP foi incendiado e depredado, o que motivou sua transferência para a cidade universitária no Butantã — cuja obra já estava em andamento. A mudança desagregou o núcleo do movimento estudantil e desestabilizou o local, que também abrigava outros movimentos contrários à ditadura.
O AI-5 foi decretado logo após a batalha", explica Vera Egito.
"O Brasil inteiro mudou e caiu nos anos de chumbo. O prédio da filosofia foi fechado. As escolas foram deslocadas para o campus do Butantã, longe do centro urbano, longe das atividades sociais. Os movimentos foram desmembrados e desestruturados com desaparecimentos, mortes e torturas. Tudo mudou depois da Rua Maria Antônia".
A diretora aponta que o conflito foi o último respiro de institucionalidade que vivemos durante o período. "O AI-5 foi o golpe dentro do golpe. Até ali ainda havia uma crença nos mecanismos institucionais, no devido processo legal. Depois, a definitiva noite se instalou e demorou mais de uma década para terminar".