Entre críticas e reservas, a cartomancia conquista o público francês e brasileiro
Em 1790, enquanto a guilhotina da Revolução Francesa cortava cabeças e os filósofos do iluminismo anunciavam o tempo da razão, um célebre cartomante abria uma escola de magia em Paris. O educandário de adivinhações oferecia cursos gratuitos. Nas paredes de Paris, anúncios com o programa: “Aprofundar a arte, a ciência, a sabedoria para compreender os oráculos do Livro de Thoth”. O sucesso do curso foi total, embora seu fundador se queixasse de alunos que, constrangidos de aparecer publicamente, preferissem aulas particulares. A mulher, mais sensível às tribulações do destino, merecia melhor guia. Daí ele ter concebido o Pequeno Oráculo das Damas, capaz de responder “aos pequenos aborrecimentos e grandes esperanças”!
O Livro de Thoth foi composto por 17 magos egípcios, compreendendo assuntos como religião, adivinhação e medicina. Tomou o nome de Tharoth, ou jogo real da vida humana, abreviado para Tarô.
Na França, as futuras vítimas da Revolução foram as primeiras a procurar as artes divinatórias. Dava as cartas certa madame Lenormand: famosa e conhecida como “a sibila do Faubourg Saint-Germain”! Maria Antonieta recebeu sua visita na prisão. Hébert, chefe dos jacobinos, também a consultava, até sua morte ser decretada, em 1794, por Robespierre. Viagens de balão, mudanças na polícia e o destino de Marat, Saint-Just e Robespierre também foram anunciados pela cartomante. Contou a Josefina, então desconhecida madame Bonaparte, que ela se tornaria imperatriz e, após a Revolução, acompanhou a ascensão de Napoleão, predisse suas vitórias e destino brilhante.
Em 1800, Napoleão quis conhecer o estado de “superstição” na França, e em cada localidade representantes foram encarregados de anotar comportamentos “irracionais”. A enquete revelou que, em todas as classes sociais, nas cidades ou no campo, crendices estavam bem vivas. Magia, feitiçaria, lobisomens, curandeiros, evocação de espíritos, a França parecia tomada pelo sobrenatural.
Nas cidades, porém, proliferavam as cartomantes. Entre elas, nada de parentesco com o diabo ou a feitiçaria. Diziam-se apenas especialistas em adivinhação e capazes de ler o futuro num baralho ou na borra de café. Não adiantava a polícia persegui-las. Fechava um gabinete aqui, abria outro ali. Discrição e segredo envolviam os negócios de adivinhação. Divertimento ou verdadeira preocupação em conhecer o futuro, operada por amadores ou “profissionais”, a adivinhação não deixou de exercer enorme fascínio, e a sociedade participou desse entusiasmo.
Tudo indica que, junto com as livrarias e editores franceses, restaurantes e cocottes, a cartomancia tenha chegado com os franceses ao Brasil. Em junho de 1874, entre várias informações, tais como o concerto da artista lírica Adelaide Ristori ou o recolhimento de frangos e galinhas por infração de posturas municipais, um anúncio discreto de uma já conhecida “madame Potier, cartomante que tratava de espiritismo,” à Rua São José.
Em 1888, dois meses antes da assinatura da Abolição no Brasil, o Diário de Notícias denunciava: diariamente se viam jornais da Corte com pomposos anúncios de “peritas cartomantes”. Elas tudo adivinhavam: passado, presente e futuro. A crítica maior, porém, ia aos frequentadores: “gente de espírito fraco”, “cérebros mórbidos”, que acreditavam em qualquer tolice. Profecias e adivinhações sempre “malignas e mentirosas” geravam problemas dentro das famílias. E o editorialista cravava: “As cartomantes são mais perigosas do que os curandeiros”. Os primeiros estragavam a saúde, elas corrompiam o espírito, deixando seus clientes medrosos e inseguros. O antídoto era o “aperfeiçoamento intelectual” da população. Só ignorantes, e no Brasil havia muitos, segundo o editorial, caíam em tais crendices.
A partir dos anos 1890, mudanças: os jornais O Apóstolo e Carbonário empreenderam campanha contra a cartomancia. O primeiro criticava a tolerância da polícia, mais indulgente com cartomantes do que com os cultos africanos. O outro pedia aos leitores que evitassem “tais consultas”, “pois além de exploradoras” as profissionais eram “perigosas”! A comparação com o espiritismo também chegou. Nas páginas de A Estrella, estranhava-se que a polícia perseguisse mais as cartomantes do que o espiritismo. Ora, as primeiras provocavam muito menos males que o último. Esse, sim, multiplicava o número de loucos.
Apesar da perseguição, no centro, nos arrabaldes ou subúrbios transbordavam as sacerdotisas do futuro, capazes, dizia-se, de modificar as fatalidades do destino. Contrariavam a morte, as desgraças e os males.
Para se consultar com as cartomantes, as damas elegantes vinham de Botafogo e Águas-Férreas, às escondidas. Rosto coberto por véus ou à sombra de leques emplumados. Eram esposas enganadas, mulheres que sofriam com o desprezo ou indiferença dos maridos. As mocinhas queriam saber se casavam “mesmo”. As idosas buscavam remédios que a medicina não oferecia para males do fígado ou asma. Os homens – banqueiros, políticos, administradores e até membros do Círculo Católico – também se esgueiravam no corredor escuro da casa da cartomante. A hora mais comum para consultas era à tarde. O lusco-fusco e a falta de iluminação ajudavam ao anonimato.
Quem botava as cartas? Os espíritos. As cartomantes eram apenas um instrumento, intérpretes da sabedoria dos mortos. A curiosidade, momentos de crise ou de indecisão levavam católicos e não católicos ao seu baralho. A credulidade nunca teve classe, religião nem cor.
Por Mary Del Priore - Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.