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Matérias / Coluna

Na colônia, até a roupa feminina do luto era ditada pela Coroa e pela Igreja

As leis suntuárias tentavam manter as diferenças sociais por meio do modo de se vestir

Mary Del Priore Publicado em 27/09/2020, às 09h00

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Imagem meramente ilustrativa de uma mulher escolhendo roupas - Hafaell - Aventuras na História
Imagem meramente ilustrativa de uma mulher escolhendo roupas - Hafaell - Aventuras na História

A roupa, na sua forma, cor e substância, significou, entre os séculos 15 e 18, uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas quanto a isso. Instrumento de regulação política, social e econômica as “leis suntuárias” existiam para manter visível o nível social de cada pessoa.

O luxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia. Seus membros não podiam ser confundidos com os das camadas emergentes. Codificando cortes, materiais, tinturas, ela garantia marcas de poder, intensificando-lhes o brilho. Semelhante ao que ocorre, hoje, com o uso de roupas de grife? Não. Muito mais rígido. Naquela época, a roupa funcionava como signo de hierarquia.

No preâmbulo da pragmática de 8 de junho de 1668, por exemplo, dom Pedro II de Portugal ordenava: “Faço saber aos que esta lei virem, que, nas Cortes que convoquei para as cousas necessárias a conservação deste Reino, por parte dos Três Estados delle, Eclesiástico, Nobreza e Povo, me foi representado e pedido com grande instancia quizesse atalhar a grande demasia e excessos que há nos trajes, vestidos, guarnições e outras cousas, e feitios delles”.

Com intenção protecionista, tais pragamáticas buscavam mitigar os danos à economia portuguesa causados pela saída dos metais preciosos do reino, decorrente da constante entrada de manufaturas estrangeiras. E elas eram minuciosas.

Como se vê, por exemplo, na proibição do uso de “todo o genero de telas e sedas, que levarem prata ou ouro, toda a guarnição de ouro, ou prata, em qualquer genero de alfaias, ou de vestidos [...]. Todo o genero de chapéus que não forem fabricados neste Reino. Todas as rendas, que se chamam bordados, ou ponto e Veneza. Todos os adereços de vidros e pedras falsas, ou venham de fora do Reino, ou façam dentre dele”.

Outro exemplo do alcance das pragmáticas era a obrigação, em Portugal, de os judeus usarem uma carapuça amarela. E os mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, “cosida no ombro, na capa e no pelote” segundo o código de leis conhecido como Ordenações Filipinas.

Outro exemplo era o que se podia usar durante o luto, então chamado dó: “Quando a alguma pessoa falecer pai ou mãe ou outro ascendente, ou filha ou outro descendente, sogro ou sogra, genro ou nora, ou cunhado, poderá trazer por dó capuz, tabardo ou loba cerrada por tempo de um mês somente, e não serão de mais comprimento que até os artelhos, e daí por diante poderá trazer capa aberta de dó que não passa de meia.”

O tabardo era uma capa, capote e casacão com capuz e manga. Loba era um tipo de vestido com túnica aberta, sem mangas, que se sobrepunha pela frente, e a roupeta, uma veste mais estreita, como a túnica dos jesuítas. Como se pode observar, a imobilidade das linhas correspondia à imobilidade que se esperava de quem estivesse triste e chorando a partida dos seus.

Tais leis suntuárias funcionavam?

Sabemos que elas mais freavam do que impediam o porte de determinadas vestimentas ou tecidos por quem não devia. Um exemplo? Nos finais do século 17, durante o reinado de Luís XVII, chegou-se a cercear, de acordo com o nível social, a grossura dos galões ou a matéria dos botões.

Restritos ao uso masculino, os botões só então passaram a ser usados pelas mulheres, antes obrigadas a manusear um sem número de laços e fitas para fechar suas vestimentas. Mas não há dúvidas de que, com a emergência da burguesia e o declínio do feudalismo, tem início a corrida pelo consumo. Até então as qualidades vestimentárias femininas eram baseadas na modéstia e na moderação, como pregava a Bíblia.

No século 18 tudo se precipita. A gestão das rivalidades entre cortesãos escapa progressivamente aos soberanos e a moda, que, desde o Renascimento, parecia ter tendências seculares, adquire sua acepção moderna de tendência passageira, efêmera.

E, entre nós, como funcionavam tais cuidados com a vestimenta? De acordo com as informações que temos para o Brasil colonial, nossas antepassadas foram excelentes rendeiras.

Se o trabalho pesado de fiar algodão era reservado às escravas negras e índias, o de adornar panos caseiros, roupas, xailes e redes era tarefa generalizada entre as mulheres das mais variadas condições. Sentadas com as pernas cruzadas ao chão, frente a certa quantidade de bilros e uma almofada, seu trabalho funcionava ao mesmo tempo como fonte de lucro e diversão.

Sabe-se, também, que uma quantidade enorme de rendas era importada de Espanha e Portugal. Aqui, como lá, nenhuma mulher andava sem véus ou uma profusão de rendas nas roupas. A seda prestava-se bem para realçar tais trabalhos.

De seda negra eram as mantilhas guarnecidas com rendas largas que serviam para tapar a cabeça, como um capuz, talvez para “embuçar” a dama nas ruas, em sua caminhada para a igreja. Há informações de que algumas eram tão grandes que só deixavam expostos os olhos, cobrindo toda a pessoa até os pés.

Mulheres negras, de origem muçulmana ou não, cobriam-se com finos véus de algodão branco, tido por “o das mulheres do Oriente”, e longos mantos que lhes caíam até os pés, envolvendo todo o corpo. Usavam-se também capas ou mantas em cores vivas. Os percalços, contudo, chegavam na hora do pagamento.

Isso, pois mesmo sendo o ambiente da terra de grande precariedade e pobreza, vestir-se com apuro fazia parte das mentalidades e não se mediam esforços para aparecer bem. Os emblemas exteriores de riqueza contavam, e muito, numa terra onde as aparências, na maior parte das vezes, enganavam.


Por Mary Del Priore - Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.