A imigração judaica para a Palestina, entre os anos de 1920 e 1948, despertou a fúria dos árabes lá estabelecidos. Nesse período, toda a região transformou-se em um imenso barril de pólvora
Ricardo Bonalume Neto / Arquivo Aventuras na História Publicado em 22/07/2017, às 00h00 - Atualizado em 11/10/2023, às 15h48
Está em curso a Primeira Guerra Mundial. Jerusalém, cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, ainda é controlada pelos turcos otomanos, parceiros de alemães e austro-húngaros no conflito. Do outro lado da briga está a Tríplice Entente, liderada por britânicos, franceses, russos e, a esta altura, também por americanos.
Os britânicos avançam sobre a Terra Santa, na bem-sucedida Campanha da Palestina. Estamos em 1917 e a guerra já caminha para sua fase final. Mas ainda há tempo para abrir um novo capítulo na história do Oriente Médio.
No dia 11 de dezembro daquele ano, o general Edmund Allenby e cerca de 20 oficiais de Sua Majestade entram na Cidade Velha de Jerusalém pelo portão de Jaffa. Era o fim da era otomana. Dali em diante, a Palestina seria controlada pelos britânicos. A tomada de Jerusalém fora pedida ao general Allenby pelo primeiro-ministro Lloyd George, como um “presente de Natal” para a população da Grã-Bretanha. Cristãos finalmente voltavam a dominar o lugar onde nascera e morrera Jesus Cristo. Mas o que os britânicos ganharam ao assumir o controle do território palestino não foi exatamente um “presente”.
Com o fim da Primeira Guerra e a vitória da Entente, a Liga das Nações – antecessora da ONU – determinou que a administração da Palestina fosse entregue à Grã-Bretanha. O chamado Mandato Britânico valeu de 1920 a 1948. E foi marcado por uma escalada de violência entre árabes e judeus estabelecidos ali. O combustível que mais alimentou as desavenças nos últimos anos: um aumento constante e exponencial da população judaica.
A imigração de judeus para a Palestina não era novidade quando os britânicos assumiram o controle. Perseguidos ou desprezados na Europa, eles começaram a imigrar para a “Terra Prometida” já no final do século 19. Em 1882, havia apenas uma pequena comunidade judaica, composta essencialmente de religiosos. Mas daquele ano até 1903, algo entre 20 mil e 30 mil somaram-se aos poucos que estavam lá. Outros 35 mil chegariam até 1914. Eles vinham principalmente da Europa Oriental, notadamente da Rússia e da Romênia, onde os pogroms – perseguições – eram mais violentos.
Quando a guerra chegou ao fim, a imigração judaica em direção à Palestina intensificou-se. O movimento sionista seguia firme desde a década de 1890 em sua campanha de incentivo à imigração em massa para a Palestina, onde os judeus fundariam sua própria nação. Mas contava, agora, com apoio explícito oferecido pelos próprios britânicos. Um ano antes do fim da guerra, em novembro de 1917, o então ministro dos Assuntos Estrangeiros, Arthur James Balfour, já havia redigido uma carta em que garantia aos judeus a criação de um “lar nacional” em território palestino. Foi a famosa Declaração Balfour. Destinada a Lord Rothschild, presidente da Federação Britânica Sionista, ela dizia textualmente o seguinte:
“Tenho o grande prazer de endereçar a V. Sa., em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração submetida ao gabinete e por ele aprovada: O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um lar nacional para o povo judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo, entendendo-se claramente que nada será feito que possa atentar contra os direitos civis e religiosos das coletividades não-judaicas existentes na Palestina, nem contra os direitos e o estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país.”
O resultado não poderia ser outro. De 1918 a 1923, mais 35 mil judeus aportaram na Palestina. Desta vez, a maior parte vinda da Rússia, envolvida até o pescoço com a Revolução Comunista. Entre 1925 e 1939, outros 82 mil judeus chegariam.
A imigração judaica em larga escala provocaria óbvios conflitos. Um deles ocorreu na cidade de Jaffa, ainda em maio de 1921, e acabou com a morte de aproximadamente 200 judeus e 120 árabes. Os anos seguintes foram marcados por distúrbios de menor intensidade, mas frequentes. Até que, em agosto de 1929, árabes chacinaram 59 judeus – entre homens, mulheres e crianças – em Hebron. E a violência não cessava. De 1936 a 1939, a Palestina seria chacoalhada pela chamada Rebelião Árabe. Não só judeus, mas também britânicos passaram a ser alvo da fúria islâmica. As autoridades mandatárias pareciam estar perdendo o controle da situação.
As comunidades judaicas estabelecidas na Palestina, entretanto, já tinham como se defender antes mesmo da instauração do Mandato Britânico. A primeira força paramilitar criada pelos judeus foi a Hashomer, organização de defesa fundada na primeira década do século 20. Contavam também com um bom número de “ex-combatentes” – voluntários judeus que, em 1917, lutaram ao lado da Tríplice Entente contra os turcos otomanos na Campanha da Palestina. Depois da guerra, em 1921, o Exército britânico decidiu desmobilizar essas tropas. Mas seus integrantes eram homens treinados e experimentados no campo de batalha, preparados para responder – pegando em armas – a qualquer agressão árabe. Essas forças deram origem à milícia judaica Haganah, embrião das Forças Armadas do Estado de Israel. “Haganah”, em hebraico, quer dizer “defesa”.
Um controverso oficial da Grã-Bretanha, capitão Orde Wingate, chegou a ajudar no treinamento de milicianos judeus. Mas a boa relação entre eles e os britânicos na Palestina não duraria para sempre. Percebendo que o aumento da população judaica provocava conflitos cada vez mais intensos, a Grã-Bretanha voltou atrás em sua promessa de criar na Palestina um “lar nacional” para os judeus. Pouco antes de estourar a Segunda Guerra Mundial, restrições à imigração começaram a ser impostas.
Em 1939, toda a Europa mergulhou naqueles que seriam os anos mais tristes e difíceis de sua história recente. De novo, um conflito mundial colocava britânicos e alemães em lados opostos. Desta vez, no entanto, era Adolf Hitler quem estava à frente da Alemanha. A perseguição nazista aos judeus produziu números que assombrarão a humanidade para sempre: aproximadamente 6 milhões de mortos – incluindo 1,5 milhão de crianças –, vítimas principalmente de massacres coletivos em campos de concentração. Sobreviventes desse pesadelo, naturalmente, engrossaram as fileiras de imigrantes interessados em se estabelecer na Palestina. E as autoridades do Mandato Britânico decidiram intensificar as restrições à imigração.
A comunidade judaica organizada em território palestino respondeu imediatamente, montando uma rede de apoio à imigração ilegal. Entre 1945 e 1948, cerca de 85 mil judeus chegaram por vias não-oficiais. As autoridades mandatárias ordenavam bloqueios navais e reforçavam patrulhas de fronteira, na tentativa de interceptar imigrantes clandestinos antes que eles pusessem seus pés em solo palestino.
Mas houve um tiro que saiu fragorosamente pela culatra. Em 1947, ao mandar de volta para a Europa um navio – o famoso Exodus – com mais de 4,5 mil refugiados judeus, os britânicos caíram em desgraça perante a opinião pública internacional. A Palestina transformava-se em um abacaxi cada vez mais difícil de ser descascado.
Paralelamente, grupos armados eram organizados pelos judeus para atormentar a vida das autoridades mandatárias. Com o fim da guerra, as tropas judaicas do Exército britânico foram desmobilizadas e voltaram a formar o núcleo da clandestina Haganah. Só a sua força de elite, a Palmach, tinha cerca de 2 mil homens. No total, eram 30 mil integrantes. Metade desse contingente estava distribuída em unidades locais e estáticas, que protegiam colônias judaicas; a outra parte ficava disponível para operações ofensivas.
Dissidentes da Haganah também já tinham dado origem a grupos terroristas. Um deles era o Lehi, também conhecido como a “Gangue Stern” – nome de seu fundador, Avraham Stern. Outro era o Irgun, que atuou na Palestina entre 1931 e 1948. O episódio mais notório da ação terrorista judaica foi o atentado à bomba contra o Hotel King David, em Jerusalém, no dia 22 de julho de 1946. Nesse hotel funcionavam vários escritórios de órgãos britânicos. Saldo da explosão: 91 mortos, incluindo 17 judeus.
Cansado de administrar os conflitos entre árabes e judeus, as autoridades mandatárias concluíram que era hora de se livrar do abacaxi. E encontrou na recém-criada Organização das Nações Unidas uma solução mágica para os seus problemas. O Mandato Britânico chegaria ao fim. E caberia à ONU arquitetar um plano para dividir a Palestina em dois Estados: um árabe, outro judeu. Começava a contagem regressiva para a criação de Israel.
*Nota da redação: O texto acima faz parte do especial 'Israel: 60 anos da criação de um Estado', edição lançada pela Revista Aventuras na História em maio de 2007.