Em entrevista ao site Aventuras na História, a escritora italiana Viola Ardone, autora da obra “Crianças da guerra”, refletiu sobre a vida de muitos jovens após o conflito
Victória Gearini | @victoriagearini Publicado em 28/03/2021, às 10h00 - Atualizado em 18/04/2023, às 15h32
Após o fim da Segunda Guerra Mundial o mundo inteiro enfrentou as drásticas consequências de um conflito sangrento. Neste período, muitas crianças perderam seus lares, amparo familiar e tiveram suas infâncias roubadas.
Essas histórias foram retratadas na obra “Crianças da guerra”, da renomada escritora italianaViola Ardone. Em seu mais novo lançamento no Brasil, a autora apresenta um romance histórico que mescla ficção a fatos.
Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História em 2021, a escritora revelou a emocionante saga de crianças italianas durante o pós-guerra.
Ainda jovem, Viola Ardone ouviu sua avó falar sobre a realidade de muitas crianças que presenciaram o Holocausto. Mais tarde, a autora conheceu um homem que lhe contou a história dos trens da Segunda Guerra Mundial, motivo que lhe despertou o interesse em se aprofundar neste tema.
“Há alguns anos conheci um senhor que me contou a história dos trens, então me lembrei e tive vontade de saber mais. Pesquisei lendo livros e jornais da época. Por outro lado, tive que usar minha imaginação para construir os personagens principais e o enredo”, revelou a italiana ao site Aventuras na História.
Recém-lançada no Brasil pela Faro Editorial, a obra “Crianças da guerra”, chegou a ser vendida em mais de 23 países. A trama acompanha a saga do personagem fictício Amerigo, um menino de apenas seis anos que foi resgatado por associações e comitês humanitários, após o fim do conflito.
Mais tarde, o garoto retorna ao lar, mas não consegue se adaptar à triste vida que levava ao lado de sua mãe biológica. Portanto, decidiu fugir de casa e acabou se tornando um grande músico. Contudo, após a morte da matriarca, ele retornou às suas origens e se deparou com um irmão e sobrinho passando por dificuldades.
Embora a trama apresenta personagens fictícios, boa parte do contexto histórico foi baseado em relatos reais. Dentre as histórias que conheceu, Viola Ardone revelou que teve uma em particular que mais chamou a sua atenção.
“Um dos rapazes que entrevistei havia perdido o pai e tinha uma mãe cega. Dessa família, após o fim da guerra, saíram três filhos, que foram acolhidos em Modena, no norte da Itália, em três casas diferentes. As famílias anfitriãs não eram ricas; eles eram simples camponeses, criadores, artesãos. Na Emilia Romagna — região que mais participou dessa iniciativa — a fome foi menos afetada, porque a economia era baseada na terra a ser cultivada. O homem que mencionei antes, ainda se lembra do momento em que conheceu sua nova família: eles estavam reunidos em torno da mesa e uma mulher alta e curvilínea estava cortando ‘polenta’. Ela o pegou no colo, fez com que ele se sentasse à mesa e colocou uma fatia de polenta na frente dele. Quando se lembrou dessa cena, não conseguiu conter as lágrimas. Nem eu: essas pessoas levaram uma criança desconhecida para casa e a trataram como um filho”, contou a autora.
Durante seu processo de pesquisa, a escritora se deparou com informações e dados alarmantes sobre as condições de vida e o destino de muitos jovens italianos durante o pós-guerra.
“As crianças do pós-guerra viviam em condições de grande pobreza em muitas cidades italianas, especialmente aquelas que haviam sido bombardeadas. Em Nápoles houve grande miséria, crianças morreram de desnutrição, doenças pulmonares e infecções. Mandá-las nos meses de inverno para um lugar onde não sofressem de fome e frio foi uma forma de salvar suas vidas”, explicou a especialista.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a União das Mulheres Italianas, organização feminina ligada ao Partido Comunista Italiano, teve a ideia de montar associações e comitês humanitários para salvar jovens da fome e da pobreza na Itália.
De acordo com Viola Ardone, cerca de 70 mil crianças foram resgatadas nessas condições, entre 1945 e 1952.
“As primeiras crianças resgatadas em trens especiais, reservados para elas pela Rede Ferroviária Nacional, partiram de uma cidade do norte, Milão. A iniciativa foi um sucesso: as crianças voltaram para suas casas depois de seis meses em condições muito melhores do que antes. Por isso, a mesma possibilidade foi dada também a crianças de outras cidades italianas, em particular do Sul, que foi (e ainda é) mais pobre. No final, 70 mil saíram (e voltaram para casa). Um número incrível, se pensarmos no estado da malha ferroviária da época”, disse a escritora.
Após serem resgatados, muitos jovens eram acolhidos por outras famílias italianas, que lhes forneciam condições básicas e dignas de sobrevivência.
“As crianças foram acolhidas por famílias do centro da Itália que as acolheram em sua casa como se fossem filhos. Davam-lhes roupas, comida, sapatos, mandavam para a escola e faziam com que estudassem, brincassem ao ar livre, em condições saudáveis. Não eram famílias ricas, mas sim muito generosas”, afirmou a autora.
Para Viola Ardone, as consequências na vida de uma pessoa que testemunhou um conflito tão jovem, são irreversíveis e geram traumas e cicatrizes profundas que acompanham o indivíduo para sempre.
“Cada época tem seus conflitos, grandes e pequenos. Mesmo as crianças de hoje, em um sentido muito diferente, estão testemunhando uma catástrofe, que mudou radicalmente seu modo de vida e seus hábitos. Mas acho que a verdadeira diferença entre essas crianças e as de outras épocas é o fato de terem passado fome. É algo que muitos de nós, felizmente, nunca experimentamos. Mas tenho certeza que é a experiência mais chocante para uma pessoa, é algo que não dá para esquecer”, concluiu a especialista.