Segundo o pesquisador Édison Hüttner, que conversou com o site Aventuras na História, o artefato foi esculpido a partir do tronco de uma árvore há mais de 300 anos e se “remodelou conforme o seu espaço” ao longo dos séculos
Isabela Barreiros, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 10/07/2021, às 08h00 - Atualizado em 09/06/2022, às 14h18
Em 2020, o professor Édison Hüttner, coordenador do Grupo de Pesquisa Arte Sacra Jesuítico-Guarani e Luso-brasileira da PUCRS, foi à Cruz Alta para realizar uma pesquisa. O município fica a mais ou menos cinco horas de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Com sua visita à região, uma reportagem sobre a descoberta de uma fonte missioneira foi transmitida na TV local e Cléber Nogueira, morador de Cruz Alta, a assistiu. O responsável era o pesquisador, com quem ele decidiu entrar em contato depois de perceber que talvez um objeto guardado em sua casa fosse mais importante do que o imaginado.
O comerciante logo contatou o especialista. “Ele me perguntou se eu não poderia olhar uma estátua que estava na casa dele e eu falei que claro, mas pedi que ele me enviasse fotos dela para eu já ter uma ideia e para me organizar”, relembrou Hüttner em entrevista à Aventuras na História.
Com as imagens e a experiência de 20 anos na área da arte sacra missioneira, o professor logo percebeu que havia muito potencial da estátua estar relacionada às reduções jesuíticas que marcaram o passado da região. Meses depois, o pós-Doutor em História voltou ao município, mas dessa vez para analisar e medir a escultura ainda desconhecida.
“Lá, eu observei algo muito interessante que só pelas fotos não dava para ver: é uma escultura montada, com partes de cabeça, braços, mãos, tudo estruturado por pinos de madeira. Logo eu percebi que, sim, era uma escultura missioneira”, afirmou.
Batizada de São João Batista Missioneiro de Cruz Alta, a peça foi estudada ao longo de um ano e um relatório sobre a descoberta, vinculado ao Sistema de Pesquisa da PUCRS, foi publicado. Muito importante para a história da região, a estátua foi desenvolvida por indígenas da Redução de Santa María del Iguazú, no Paraguai, há quase 400 anos.
A característica apontada por Édison já na primeira vez que ele observou o objeto é essencial para a identificação das peças do período histórico. Segundo o pesquisador, o fato de o item ser montado em partes significa que ele foi feito no primeiro período das reduções jesuíticas, a partir de 1625.
O estilo é conhecido como “Escultura de Tronco” ou ainda “Estátuas Horcones”. “Os indígenas guaranis pegavam o tronco de árvore, trabalhavam em cima desse tronco e tentavam fazer a sua escultura conforme os jesuítas ensinavam. Com as informações sobre os santos e com o tronco na frente, eles começavam a moldar”, explica Hüttner.
Os resultados eram sempre esculturas mais rígidas e sem tanta desenvoltura, mas que representavam de maneira explícita e especial a relação xamânica dos índios com as árvores.
Outro elemento fundamental para a identificação da peça como sacra, barroca, hispano guarani-jesuíta foi a policromia presente na escultura, que contava com gesso, tintas vindas da Europa e outras produzidas aqui, como o urucum, que dava um incrível tom vermelho às esculturas desenvolvidas.
“Os jesuítas, na época, e os guaranis, tinham o costume de enfeitar as esculturas com esse trabalho de policromia”, conta o especialista. “Além da questão da árvore, que eles trabalhavam para fazer essa escultura, tem o fato de que a pintura dos corpos ainda é uma marca dos indígenas, o que fechou bem com essa ideia de pintar o santo”.
Ao identificar o período histórico no qual o objeto foi produzido, a pesquisa conseguiu também concluir que se tratava de uma escultura de São João Batista a partir de questões técnicas de medição da peça e estética. Édison explica, por exemplo, que “a vestimenta é que vai definir qual é o santo”.
No caso do pregador, ele é identificado pelas vestes feitas de pele de camelo e por carregar uma cruz, além de estar sempre com os pés no chão. “Se fosse um santo que tem uma sandália ou se tivesse uma roupa diferente, não seria São João Batista”, ressalta o professor.
Durante o estudo, os pesquisadores ainda utilizaram um método inovador para garantir a segurança da escultura, especialmente devido à pandemia de covid-19. Uma aplicação de raios ultravioleta foi feita na estátua do santo para “matar todos os tipos de fungos, bactérias e toda a família do coronavírus”
O importante aparelho de Luz Ultravioleta C (UV-C) Huttech Tower II com 2 lâmpadas UV-C foi desenvolvido pelo Dr. Eder Abreu Hüttner, dentista e coordenador da Startup HUTTECH.
Para o pesquisador, a estátua de São João Batista possui um padrão estético que se anela à arte colonial produzida por Aleijadinho e muitos outros. “O valor, por exemplo, em nível nacional, se iguala com sua magnitude e estética com esculturas do período barroco colonial”, aponta Hüttner.
Além da importância estética da peça e o seu inestimável valor histórico, o fator simbólico do artefato também deve ser levado em consideração. Desenvolvida nas reduções jesuíticas, a escultura foi cultuada primeiramente nesses territórios, mas, depois, passou a ser adorada nas zonas rurais do sul do país, em uma nova roupagem.
“Em uma família no interior do município de Cruz Alta, essa escultura estava no nome de um benzedor, Estevão de Matos”, diz o especialista. “A estátua, quando estava nessa família, na coluna de São João, participava de procissões e recebia fitas amarelas, vermelhas e verdes, para agradecer as graças alcançadas”.
Outra prática comum era a de dar banhos nos santos como um ritual para pedir chuva em períodos de seca no interior. Como explica Édison, “eles despejavam a água no santo para pedir que terminasse com a seca e viesse a chuva”.
Depois desse processo na zona rural, o santo foi para a zona urbana, já no município de Cruz Alta, onde a família continuou com a devoção à imagem do pregador. “A força simbólica do santo é tão forte que ela teve esse poder de ir se remodelando conforme o seu espaço”, complementa.
O local onde o jesuíta Antônio Sepp fundou a Redução de São João Batista em 1697 hoje guarda somente pedras, transformado em um sítio arqueológico protegido pelo IPHAN. Mas bem além das ruínas da região, o município de Cruz Alta é palco de inúmeros estudos que vêm sendo realizados nos últimos anos.
A primeira pesquisa feita pelo pesquisador na cidade está relacionada ao Grande Sino de São Miguel, que badalou de 1845 a 1945 em Cruz Alta. Em 2006, ele liderou um estudo que mediu e pesou o sino, e, desde então, o especialista continua na sua peregrinação para entender a rica história da cidade e região.
Com a identificação da nova estátua de São João Batista Missioneiro, as investigações continuam a todo vapor, especialmente porque a escultura mostrou-se ainda mais importante que as já encontradas no município.
“Esse São João Batista Missioneiro foi muito importante, um pouco diferente das outras estátuas encontradas, porque ele agregou à história de Cruz Alta e da Redução de São João Batista. Cada escultura é diferente, mas essa chamou muito a atenção por essa ligação com o ‘todo’”, conclui Hüttner.