Da Cosa Nostra aos bicheiros do Rio, a trajetória do 'negócio' que movimenta trilhões de dólares
A manhã corria calma na garagem da SMC Cartage Company, em Lincoln Park, Chicago. Cinco membros da gangue de George "Bugs" Moran e um amigo desavisado conversavam descontraídos à espera do chefe e de uma remessa de uísque, animados, quem sabe, pela promissora programação noturna. Era 14 de fevereiro de 1929 - Dia dos Namorados. Perto das 10h30, dois policiais invadiram o prédio numa suposta batida. Os seis renderam-se imediatamente - assim como um mecânico de automóveis que trabalhava no local. Todos foram colocados contra a parede, pernas abertas, mãos para o alto, para a revista. Foi quando mais dois homens de sobretudo entraram. De costas para seus algozes, os sete foram trucidados por mais de 150 tiros. Os "policiais" e "detetives" à paisana eram capangas concorrentes, armados com submetralhadoras Thompson. Quando a polícia chegou, uma das vítimas estava viva. Frank Gusenberg foi levado para o hospital e lá repetia: "Ninguém atirou em mim". Morreu três horas depois.
O Massacre do Dia de São Valentim permanece cercado de mistério, mas acredita-se que tenha sido obra de um dos principais gângsteres de todos os tempos: Al Capone. Ele teria armado o plano para eliminar o rival, mas um acidente de trânsito atrasou Moran para a falsa entrega marcada na SMC, o que salvou sua vida.
Eternizado nos filmes ao lado de figuras como Bugsy Siegel e Lucky Luciano, Capone representa o auge do crime organizado nos Estados Unidos. É nesses homens (o poderoso chefão de Marlon Brando não conta) ou nos velhos capi da Sicília que se pensa ao falar de máfia. Mas ela é só uma das faces do crime organizado, que se espalha pelo planeta e explora ramos variados - muito além do que foi a violação da Lei Seca americana.
Vem da Idade Média a expressão societas sceleris (sociedade de criminosos), que se aplicava a grupos de bandoleiros (como o do lendário Robin Hood) e a associações secretas com fins políticos e ilegais que atuaram na Europa. Há precursores do crime organizado anteriores ainda, como na Roma antiga. "Grupos se formaram para que suas atividades ilícitas fossem mais efetivas", diz James Finckenauer, professor da escola de justiça criminal da Rutger’s University. Nos anos 70 a.C., Júlio César foi sequestrado por piratas da Cicilia (atual Turquia), que exigiram 1,5 mil kg de prata por ele. O resgate foi pago, e César, libertado, mas o senador não descansou até que eles fossem presos e crucificados.
A pirataria, sobretudo no século 17, reuniu vários elementos que se mantêm entre os contraventores modernos: organizava-se segundo uma hierarquia, roubava, sequestrava, contrabandeava e traficava, aproveitando-se da corrupção estatal e de demandas da população. Às vezes, também agiam sob a égide do Estado, como os corsários da coroa inglesa.
O crime organizado contemporâneo, porém, é capitalista, não existiria sem o modelo atual de mercado. Estimativa da ONU indica que os grupos transnacionais movimentam hoje 2 trilhões de dólares por ano - só em tráfico de pessoas, armas, cocaína, heroína, recursos naturais, produtos falsificados, cibercrime e pirataria marítima. Apenas o narcotráfico vale 320 bilhões de dólares. Incluídas outras atividades ilícitas , além dos resultados locais das gangues, o número pode ser bem maior."Mas o fato é que ninguém sabe exatamente qual é o rendimento do crime organizado", afirma Finckenauer. Nessa miríade de bilionárias empresas do crime (que lembram mais corporações do que famílias), as máfias se diferenciam. Oferecem não apenas produtos, mas também serviços, como a "proteção" (forçada) a comerciantes. Para Federico Varese, professor de criminologia da Oxford University, elas tentam criar um "estado paralelo". ➽
➽A transnacionalidade é comum a todas as grandes organizações, da Cosa Nostra siciliana à Yakuza japonesa. Mantêm braços em diversos países e negociam entre si. O que a Yakuza tem a oferecer? Anfetamina e pornografia, e a máfia italiana tem as conexões certas. E assim sucessivamente: a droga produzida na Colômbia é distribuída na Europa por italianos, numa demonstração de como os grupos souberam tirar proveito da globalização. E do avanço tecnológico. O cibercrime, que inclui o roubo de senhas bancárias, é um exemplo. "O crime organizado cresce e investe em atividades legais para se legitimar. O passo seguinte é a infiltração no governo. Há casos em que políticos se tornam chefes do crime, como Vladimiro Montesinos, no Peru (chefe de inteligência no governo Fujimori e de uma rede de tráfico)", afirma Naim. "É fundamental que se preste atenção não só na oferta mas também na demanda."
Os primeiros capi
No dia 23 de maio de 1992, em Palermo, a estrada por onde passava o carro do juiz Giovanni Falcone, líder de um pool de magistrados de combate à máfia italiana, foi dinamitada. O sucessor dele foi executado pouco depois. O mandante das mortes está preso desde 1993: Salvatore Totó Riina, o mais sanguinário dos chefes da Cosa Nostra siciliana. Antes do pool, criado no início dos anos 1980, apenas Benito Mussolini fora capaz de frear a ingerência dos capi no Estado. (Após a Segunda Guerra, os aliados libertaram todos os mafiosos mantidos na prisão pelo fascismo.
Ao longo da sua história, a Sicília foi palco de inúmeras invasões. É provável que a palavra máfia tenha surgido do árabe muafah (proteção), na época em que os sarracenos a ocuparam, entre os séculos 9 e 11 - depois eles foram dominados pelos normandos. Formaram-se então organizações secretas de resistência aos invasores e exércitos privados que ofereciam seus préstimos aos fazendeiros. Essas foram possíveis sementes daquilo que daria sentido atual ao termo, publicado pela primeira vez em uma ópera bufa ambientada no presídio de Palermo, em 1862. Só após a unificação da Itália e a incorporação da Sicília ao país, a máfia passou a definir uma relação doentia entre política, sociedade e criminalidade.
No início do século 19, grupos de mafiosos estruturados e hierarquizados já controlavam a política e a economia locais com base na venda forçada de proteção para agricultores e empresários. Esses grupos cresceram na segunda metade do século 19, fiéis a um rígido código de honra e de silêncio (a omertà, cuja quebra pode levar à morte), e chegaram aos EUA com a imigração de famílias italianas. A máfia progrediu especialmente em Nova York, onde serviu a empregadores para acabar com greves e logo operou o mercado de álcool durante a Lei Seca. ➽
Cosa Nostra Americana
Alcapone, gangster liderou a venda de bebidas durante a lei seca / Foto: Wikimedia Commons Images
➽ Origens: imigração italiana, segunda metade do século 19.
➽ Integrantes: 5 mil.
➽ Especialidades: Tráfico de drogas / Tráfico de armas / Serviços de "proteção" a empresas e pessoas / Prostituição e pornografia / Jogos de azar / Extorsão e sequestro / Lavagem de dinheiro (especulação nos mercados imobiliário e financeiro, por exemplo) / Negócios legais (hotéis e coleta de lixo, por exemplo).
➽ Conexões: todos os outros grandes grupos, a exemplo das tríades, têm células ou clãs nos Estados Unidos, apesar do trabalho intenso de combate aos criminosos.
➽ A partir dos anos 1960 e 70, a Cosa Nostra passou a investir no narcotráfico. Ajudou, por exemplo, a erguer os cartéis da Colômbia e a torná-los poderosíssimos nos anos 1980. (Após o desmonte dos cartéis de Medellín e Cali, novos clãs tentam ganhar o espaço perdido para peruanos, bolivianos e mexicanos, responsáveis pela chacina de 72 imigrantes ilegais em agosto passado.) Na Itália, há pelo menos outras cinco máfias. As principais são a Camorra, em Nápoles, a ‘NDrangueta, na Calábria, e a Sacra Corona Unita, em Puglia. Todas atuam no tráfico de drogas e se especializam em outros setores. Um dos serviços é a criação de empresas para a coleta (e o despejo irregular) de lixo tóxico.
Imigrantes na América
Em 1906, um siciliano de 8 anos chegava aos Estados Unidos com sua família. Salvatore Lucania seria mais tarde chamado Charles Lucky Luciano. Foi um dos criadores, em 1931, da Comissão, o sindicato do crime formado pelos capi das famílias nova-iorquinas e das de Filadélfia, Buffalo e Chicago - no caso, Al Capone. Mais tarde, Los Angeles, Detroit e Kansas seriam incluídas. Salvatore Maranzano havia acabado de vencer a Guerra Castellammarese. Dividira Nova York entre cinco famílias e se autointitulara capo di tutti capi (chefe de todos os chefes). À frente de uma delas, Luciano tramou com o mafioso judeu Meyer Lansky o assassinato de Maranzano e tomou seu lugar.
Capone comandou o submundo de Chicago entre 1925 e 1931. Na juventude, uma briga num bordel rendeu-lhe uma cicatriz e o apelido de Scarface. Diferentemente dele, que só foi preso por sonegação de impostos, Luciano foi condenado por seus crimes em 1936. Na prisão, serviu de intermediário para que a máfia e políticos da Sicília ajudassem as forças aliadas na Itália. Assim, foi solto em 1946. Exilado, nunca deixou de controlar setores da organização até a morte, em 1962. Para muitos, foi o mais importante mafioso da história. Depois dele, o crime organizado se diversificou, mas sofreu duros golpes. Em 1992, o último grande gângster do país foi condenado por 13 assassinatos. Milionário, John Gotti era chamado Don Teflon porque as acusações nunca "grudavam" nele. Ao menos até ser delatado pelo colega Sammy Gravano.
O FBI recorre a uma legislação específica de combate a organizações criminosas desde 1970. "As famílias mafiosas americanas estão sendo severamente investigadas nos últimos 20 anos. As delações aumentaram. Ninguém confia em ninguém, o que cria problemas de moral e exposição", afirma Finckenauer, defensor de reformas legais e combate à corrupção para enfrentar os grupos.
Samurais desvirtuados
De cabeça baixa e sangrando, o homem entrega um pedaço do dedo mínimo a Hiroyasu Tendo. Shoko, aos 6 anos, em 1974, flagra o ritual, apavorada. Só mais tarde, ela entenderia que seu pai era um dos chefes da Yakuza. Cortar falanges dos dedos como autopunição é comum na máfia japonesa, cheia de tradições, como tatuar o corpo e implantar pérolas sob o prepúcio.
A máfia japonesa nasceu no início do século 17 com o fim das guerras feudais e o início da Paz Tokugawa. Sem mestres e marginalizados, samurais se uniram a meliantes, jogadores profissionais e ambulantes em organizações secretas, as yakuzas, que se voltaram para o crime, a prostituição e o jogo. O nome veio do oicho-kabu, carteado no qual uma "mão" de oito (ya), nove (ku) e três (za) é igual a 20 e não vale ponto - sem valor como os "excluídos" dos bandos. No fim do século 19, eles aderiram a ideologias nacionalistas e cresceram. Muitos de seus integrantes assumiram cargos políticos e militares ou viraram empresários. A partir de 1920 e sobretudo no pós-guerra, ganharam poder na esteira do anticomunismo. Até hoje, a Yakuza não é uma organização, mas um conjunto de gangues, que se enfrentam com frequência. Entre 2005 e 2007, a maior delas, Yamaguchi-Gumi, avançou sobre territórios da Sumiyoshi-kai. O banho de sangue apavorou Tóquio. ➽
Membros da Yamaguchi-Gumi, gangue faz parte da Yakuza / Foto: reprodução
➽ Conexões: vende proteção a empresas japonesas em dezenas de países.Pratica fraudes e extorsões nesses locais, como o Brasil.
➽ Assim como a Yakuza, a Tríade chinesa é também um conjunto de clãs com origem no século 17. Em 1644, os manchus invadiram a China, derrubaram a dinastia Ming e instauraram a última grande dinastia chinesa, a Ching. Logo no início da ocupação, sociedades políticas secretas se formaram para tentar destronar os Chings e restaurar os antecessores. A Tríade representa os três lados iguais de um triângulo, símbolo de uma antiga sociedade secreta chinesa, significando o céu, a terra e o homem. Ela teria sido formada por cinco monges budistas do sul, sobreviventes de um massacre manchu. ➽
➽ Conexões: gangues ativas em Nova York, Los Angeles, Seattle, e São Francisco e em cidades do Canadá e da Europa.
➽ Fiéis a seu papel político, os clãs apoiaram a Revolução Republicana, que derrubou a dinastia Ching, em 1911. Então, concentraram suas atividades no tráfico, no jogo ilegal e na extorsão. Com o comunismo, em 1949, se transferiram para Hong Kong e Taiwan (para onde seguiu um de seus líderes, o general Chiang Kai Shek).
Força recente
Em 1992, dois turcos foram mortos a tiros na saída de um restaurante em Moscou. Pouco depois, o principal suspeito, o chefe da máfia russa Vyecheslav Ivankov, o Yaponchik, imigrou para os Estados Unidos. Lá, instalou um reino de terror na comunidade russa de Brighton Beach (NY) e extorquiu 3,5 milhões de dólares de uma empresa. Foi preso em 1995 e, deportado em 2004, acabou inocentado pelos assassinatos. Morreu alvejado por um franco-atirador em 2009. Yaponchik havia passado 11 anos preso por roubo quando, em 1991, o comunismo caiu e os gulags, campos de trabalho prisionais, abriram suas portas. Organizações criminosas já contrabandeavam madeira e peles de animais na região desde o século 17. Mas, após a Revolução de 1917, o crime empalideceu até a segunda metade dos anos 1930, quando Stalin mandou mais de 14 milhões de pessoas para os gulags. Lá, a atuação dos mafiosos ficou oculta até o fim da União Soviética, quando ex-membros da KGB engrossaram suas fileiras. "Quando sai dos gulags, a máfia oferece proteção às empresas e instituições do novo país", afirma Varese. ➽
Organizija
Criminosos nos Gulags, local que originou a Organizija / Foto: Wikimedia Commons Images
➽ Origens: criminosos presos nos gulags, nos anos 1930.
➽ Integrantes: 3 milhões.
➽ Especialidades: Tráfico de drogas / Tráfico de armas / Serviços de "proteção" a empresas e pessoas / Pirataria (produção e comércio de produtos falsificados) / Prostituição e pornografia / Lavagem de dinheiro (especulação nos mercados imobiliário e financeiro, por exemplo) / Negócios legais (hotéis e coleta de lixo, por exemplo) / Tráfico de recursos naturais.
➽ Conexões: atua em 29 países. Judeus russos, por exemplo, imigraram para EUA e Israel, onde alguns criaram núcleos.
➽ Organizacija. Assim é chamada a máfia russa (embora nem todos os núcleos possam ser classificados como tal), que surgiu juntamente com outros grupos ilegais no Leste Europeu e na Ásia após a derrubada da Cortina de Ferro. A mudança brusca na política e na economia da ex-URSS criou um cenário propício. "Mafiosos controlam o sistema bancário e grandes indústrias, como a metalúrgica. Isso não ocorre no Japão e na Sicília", diz Finckenauer. Os grupos nascidos na região estão entre os que mais crescem no planeta.
Versão brasileira
"A empresa organizou um prêmio diário que consiste em tirar, a sorte, dentre 25 animais do Jardim Zoológico, o nome de um (...). Assim o Jornal do Brasil de 4 de julho de 1892 noticiou o primeiro jogo do bicho. E deu avestruz. O ingresso valia o bilhete. Foi o jeito que o barão de Drummond, dono do zoo carioca, encontrou para salvar o negócio. Os jogos de azar só foram proibidos, de fato, em 1941. ➽
Bicheiros
➽ Muito antes disso, o jogo já estava sob o controle dos "banqueiros" do bicho, que nos anos 1930 se associaram a escolas de samba. Quando veio a proibição, eles se reorganizaram. Infiltrados na polícia e na política, enriqueceram com jogos de azar, Carnaval, casas de shows, contrabando e, depois, tráfico. Uma das últimas vítimas das recorrentes disputas entre os bicheiros foi o filho do contraventor Rogério Andrade. Em abril, Diogo, 17 anos, foi morto num atentado a bomba. O alvo era seu pai. Os assassinos eram policiais interessados em controlar parte dos pontos de caça-níqueis na Zona Oeste do Rio de Janeiro, território antes dominado por Castor de Andrade - tio de Rogério e o mais influente bicheiro, morto em 1997.
Antonino Salamone, "diretor" da Cosa Nostra, refugiou-se no Brasil após a máfia siciliana matar sete policiais em 1963 e aliou-se a Castor. Nos anos 1970, Tommaso Buscetta tentou criar uma escala do tráfico para os Estados Unidos em São Paulo, mas acabou preso em 1983, abriu o bico e transformou-se em peça-chave para a condenação de mais de 300 mafiosos em Palermo. Já nos anos 1990, um emissário de Totò Riina comprou as 35 mil primeiras máquinas de caça-níqueis do país.
Do Rio, o jogo do bicho logo se espalhou pelo Brasil. Assim como as facções de traficantes. "Temos grandes organizações nos moldes mafiosos: Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos, no Rio, e Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo. Todas têm forte influência nas penitenciárias", diz a promotora Ana Luiza Ferro, doutora em ciências penais pela UFMG. Elas também fazem assistencialismo nas comunidades onde atuam - outra prática mafiosa. ➽
Comando Vermelho
Fernandinho Beira Mar, líder do Comando Vermelho / Foto: reprodução
Já o PCC, surgiu em 1993, organizado por oito detentos do Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté. Seu líder é Marcos Camacho, o Marcola. Em seu estatuto há 16 itens, inclusive um que determina a lei do silêncio, como a omertà italiana. O PCC assassina juízes e policiais e comanda 90% dos presos de São Paulo. Seus chefes controlam o crime de dentro das prisões, com celulares e a ajuda de advogados comprados. Mostra sua força desde maio de 2006 quado promoveram rebeliões simultâneas em dezenas de presídios e o caos nas ruas da capital paulista.
PCC
Marcos Camacho, o Marcola, líder do PCC / Foto: reprodução
➽ Origens: Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté, anos 1990.
➽ Integrantes: cerca de 24 mil.
➽ Conexões: além dos mesmos vínculos do CV, são investigados contatos em Portugal e com traficantes nigerianos e mexicanos. O porto de Santos é um dos mais usados.
Jogo do bicho, história e sociologia
Muito além da bandidagem: os vínculos com a identidade nacional
Fiz um livro sobre o jogo do bicho com Elena Soárez. Escolhemos o título Águias, Burros e Borboletas porque esses "bichos" remetiam à dimensão poética de toda instituição verdadeiramente popular. Pois, no Brasil, bicho se refere a tudo o que tem vida e vontade própria. Serve para designar os animais e a humanidade. Há homens-bichos (como os trogloditas da política, os "águias") e bichos humanizados como seres permeados por qualidade ou poesia (como os animais domésticos, os burros e as borboletas).
Na virada do Império para a República, momento em que o Brasil se modernizou a pulso e adotou um capitalismo livre e selvagem, o barão de Drummond inventou esse "jogo do bicho" para manter um caro jardim zoológico no bairro que havia inventado. É possível apostar numa lista de 25 animais, que correspondem a números. O bicho pegou mais do que o moderno zoológico e se tornou, junto do Carnaval, da cachaça e do futebol, uma das poucas coisas sérias do Brasil. Vários fatores contribuíram para isso.
Trata-se de um jogo barato, que não demanda locais especiais e pode ser realizado até mesmo dentro de casa. É um investimento que permite relacionar animais e números e seus frutos eventuais permitem ampliar a renda pobre de camadas populares e carentes.
O que responde pelo sucesso não é a dança imprevisível dos números, mas uma brasileiríssima pessoalidade. Uma relação íntima e direta com um bicho, dessas que existem nos quadros do "totemismo". Pois, no jogo do bicho, os jogadores podem pensar em números por meio dos animais, e vice-versa. O 24, por exemplo, é o veado. Com isso, os números são animalizados, humanizados e personalizados, o que faz com que cada jogador possa ter seu bicho preferido. O de minha avó era o elefante. O meu é o burro.
Seguindo a trilha da pessoalidade, o jogo do bicho não atrai somente grã-finos, como ocorre com as corridas de cavalo e os cassinos, mas convida todo mundo a uma verdadeira caça à boa fortuna. Sobretudo o povão, que não vê a cor do dinheiro e só pode jogar barato, arriscando pouco para ganhar muito. Todos, assim, cercam seus bichos pelos sete lados, invertem os milhares e esperam acertar, como bons caçadores, num bicho!
Quando se quer jogar, basta ir a um ponto. Lá, encontra-se um amável corretor-apontador que pessoal e simpaticamente recebe o dinheiro, instrui nos modos de maximizar as apostas e, mais importante (e contrariamente ao que ocorre em geral), nos paga honrada e religiosamente o que temos direito de receber. Ou seja: o jogo do bicho é uma das raras instituições nacionais nas quais a teoria corresponde à prática e a norma acompanha a realidade social.
Pois, se o jogo postula uma lealdade no nível mental, ele reafirma essa lealdade nos quadros da sua prática, quando monta redes de corretores e bicheiros que vão da esquina às fortalezas, do inocente jogador ao grande banqueiro-contraventor. Trata-se de um esquema todo fundado na honra.
É nessa rede de lealdades - bicho - que estão os bichos do jogo do bicho. Esses bichos que comandam um jogo enredado na mais profunda definição da identidade nacional. Nisso, não pode haver maior contradição. Acho que somos o único povo do mundo que faz com que uma prática social mais do que estabelecida seja ilegal por decreto de uma elite que insiste em mudar a sociedade usando o Estado e a lei. Praticar isso é ter como projeto cortar o próprio rabo!
Insistindo na lei como corretivo social, criamos um zoológico de incoerências. O que seriam dos Estados Unidos se subitamente um débil mental no poder decretasse a ilegalidade do beisebol? E se os franceses fossem proibidos de comer rã? A lei serve tanto para confirmar o comportamento quanto para tornar uma conduta tradicional, problemática.
É o mal uso da lei que desnuda a nossa leviandade jurídica e incapacidade de pensar os nossos costumes. Um jogo inventado para manter um jardim zoológico (algo moderno) despertou do fundo de um baú do inconsciente social um jogo que liga números e animais e, pela caça aos bichos, permite melhorar de vida. Mudar, numa sociedade tão avessa à mudança.
Saiba mais
Livros
Crime Organizado e Organizações Criminosas Mundiais, Ana Luiza Ferro, Juruá Editora, 2009.
História da Máfia, Salvatore Luppo, Estampa, 1993.