Da época da fogueira no chão até a geladeira bluetooth, entenda como as refeições eram preparadas por nossa história
Texto Flávia Pinho / Ilustrações Sattu Publicado em 10/08/2017, às 14h18 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35
Ilustrações ao final da matéria
Você abre a geladeira, tira o pacote de frango já cortado, desossado e temperado, põe na panela, liga o gás e, em poucos minutos, o almoço está pronto. Isso quando o prato congelado não sai do freezer direto para o microondas. Agora imagine essa mesma cena há anos. A cozinheira corria atrás da galinha que ciscava no terreiro e, depois de caçá-la, cuidava de matar, depenar e cortar o bicho. Aí acendia a fogueira, que ficava sob um telheiro rudimentar no quintal, apoiava o caldeirão sobre o fogo, se agachava e começava a cozinhar. Era assim que funcionavam as primeiras cozinhas brasileiras.
Não que os portugueses tenham trazido tais hábitos da terra natal. Pelo contrário: desembarcaram por aqui com a bagagem repleta de fogões portáteis, tachos, chaleiras e outros utensílios bem mais moderninhos. Os que vinham das cidades do norte de Portugal, então, conheciam a chaminé, recurso indispensável para quem instalava a cozinha no interior das casas com o intuito de aquecer o ambiente. Mas, tão logo chegaram ao Brasil, os colonizadores foram, aos poucos, incorporando o jeito indígena de cozinhar. No tórrido calor dos trópicos, fazia mais sentido. A localização da cozinha, por exemplo, bem longe da casa, tinha seus motivos. Animais de pequeno porte circulavam livremente por ali e o preparo da comida não primava pela higiene. "Era uma cozinha suja. O arroz tinha que ser descascado no pilão. Como não havia azeite e óleo, a banha era feita em casa, derretendo-se o toucinho por três ou quatro horas. Até o sabão era feito no mesmo lugar", conta Carlos Lemos, autor de Cozinhas Etc. Sem refrigeração, as sobras apodreciam rapidamente. Fica fácil imaginar que os odores não eram lá dos mais agradáveis. Sem falar no calor e no risco de incêndio que uma fogueira representa" quanto mais longe da sala e dos quartos, portanto, melhor. Não havia sequer paredes, apenas uma cobertura para proteger da chuva.
As técnicas de cocção também eram 100% indígenas. "A índia foi a primeira empregada doméstica dos lares brasileiros, numa época carente de donas de casa brancas. Sempre que podia, ela resistia aos costumes do colonizador e impunha os seus", explica Lemos. Para cozinhar, usavam a trempe, três pedras colocadas diretamente sobre o chão, onde se apoiava o caldeirão de ferro ou de cobre. Para assar, peixes e caças iam parar no jirau. Na definição de Luís da Câmara Cascudo, em História da Alimentação no Brasil, tratava-se de "armação de varas a determinada altura e distância do lume que tosta pelo calor e não pelo contato". A técnica, emenda o autor, precursora do churrasco, permitia que a carne se conservasse por várias semanas. E ainda havia uma terceira forma de preparo. "No Sul, os índios também utilizavam um tipo de forno escavado no chão, forrado com folhas de bananeira, onde a comida era enterrada e o fogo ia por cima", conta Lemos. Os utensílios? Obra dos índios também. Hábeis na modelagem da argila, eles se inspiravam nos formatos trazidos pelos portugueses e produziam potes, jarros, moringas, tigelas que funcionavam como pratos e até uma ou outra panela.
A passos lentos
Ao longo do século 18 até meados do século 19, nossos hábitos alimentares e, consequentemente, nossas cozinhas sofreram poucas "mas importantes" transformações. O telheiro do quintal se aproximou da casa, encostou na parede dos fundos, mas permaneceu um apêndice menosprezado, erguido com material de segunda, frequentado apenas pelos escravos e, depois, pelos empregados. Em Viagens ao Interior do Brasil, de 1809, John Mawe descreve a cozinha de uma fazenda abastada como "mero buraco sujo, enegrecido pela fuligem e pela fumaça, que impregnava o ambiente, com o chão lamacento".
O fogão, pelo menos, saiu do chão. Virou uma estrutura alta, maciça, construída de barro e pedra, bem parecido com os fogões a lenha utilizados no interior. E a água, antes usada com parcimônia pela dificuldade de transporte, começou a correr com mais fartura. No século 18, as cidades grandes já contavam com aquedutos, que levavam a água até chafarizes públicos, onde os escravos a recolhiam. Enquanto isso, no campo, instalavam-se canaletas de bambu do rio mais próximo até o quintal, tornando mais prática a lida diária.
Os utensílios de mesa passaram a exibir algum refinamento à moda europeia, sobretudo após a transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Os ricos, fossem eles da zona rural ou urbana, dispunham de bules e açucareiros de prata e pratos de porcelana. De tão raros e caros, porém, esses objetos viravam herança. Citações a talheres eram frequentes nos inventários. Afinal, seu uso, nos grandes centros da Europa, já estava disseminado desde o século 17. Por aqui, no entanto, esse arsenal era muito mais um símbolo de status. Garfos, por exemplo, que já tinham o formato que possuem hoje, com três ou quatro dentes (antes, traziam apenas dois e tinham a função de fixar o alimento, não de levá-lo à boca), eram usados com a mesma frequência dos dedos, inclusive em ocasiões de cerimônia. Com um agravante: provar do prato do vizinho de mesa era considerada uma prova de amizade. Nas regiões de difícil acesso, aonde os carregamentos vindos da Europa nem sempre chegavam, era hábito cada convidado levar sua própria faca de casa.
As transformações mais significativas, aquelas que mudariam radicalmente não só a arquitetura da cozinha como também o uso que se dava ao cômodo, ganharam força somente na segunda metade do século 19. Foi a partir dessa época que a cozinha começou a se parecer com o ambiente que conhecemos hoje. E exclusivamente nas residências da 'elite' o dinheiro do café, da borracha e do açúcar permitia que as novidades europeias, oriundas da Revolução Industrial, começassem a viajar para o Brasil. Chegavam com muitos anos de atraso, mas chegavam.
Mais limpeza
Com a invenção da torneira, em 1800, e a construção da rede de abastecimento de água em domicílio, iniciada 76 anos depois, no Rio de Janeiro, o preparo dos alimentos se tornou uma prática mais asseada. Já não era necessário deixar a cozinha do lado de fora da casa. Havia ladrilhos hidráulicos laváveis para revestir o piso e até uma incipiente coleta de lixo, lançada em caráter experimental, no Rio, em 1885. Sem falar na geladeira, uma invenção que fez toda a diferença no dia a dia doméstico. Não chegava a ser um eletrodoméstico. "Eram armários de madeira, revestidos por dentro com cortiça e folha de flandes. Havia uma prateleira no alto, onde se apoiava a pedra de gelo (produzida em fábricas) comprada por assinatura , e uma canaleta que conduzia a água do degelo para um balde. O entregador passava todo dia, bem cedinho, de porta em porta", conta Lemos.
Nas primeiras décadas do século 20, deu-se outra enxurrada de novidades. Em 1901, o palácio do governo de São Paulo instalou o primeiro fogão a gás de que se tem notícia no Brasil. E a moda não custou a pegar, aposentando de vez os velhos fogões a lenha. "Eram importados e vendidos pelas próprias companhias de gás, que exploravam a iluminação pública", conta. Em 1905, a companhia canadense The Rio de Janeiro Tramway Light & Power Limited começou a produzir energia elétrica, a princípio para iluminação e fins industriais. Poucos anos depois, os americanos já conheciam a revolucionária geladeira elétrica, invenção que só desembarcou aqui em 1928. Nem de longe se parecia com as geladeiras atuais, bem pequenininha, ainda tinha boa parte do espaço interno ocupado pelo motor. Mas ninguém chiava. Era o começo de uma era de facilidades há muito sonhadas: liquidificador, batedeira, espremedor de frutas e torradeira logo vieram na carona.
A nova era
A popularização dos eletrodomésticos gerou uma senhora transformação na arquitetura das residências brasileiras. A cozinha, que até o começo do século 20 era quente e desconfortável, sinônimo de árduo trabalho braçal, se tornou um ambiente mais fresco, cheiroso e convidativo. As donas de casa, que antes só entravam ali quando obrigadas, começaram a passar mais tempo ao redor do fogão. A década de 1950 é o símbolo da nova cozinha. Revestida de ladrilhos e azulejos, forrada de armários planejados, com portas e gavetas de laminado colorido, ela foi se tornando uma extensão da sala de estar. Nascia a copa cozinha, uma tradição brasileira que sobreviveu por décadas, local preferido da família de classe média. Ali, mãe e filhos almoçavam, ouvindo rádio, e as crianças faziam os deveres de casa. À noite, porém, quando o chefe da família chegava, o jantar era invariavelmente servido na sala de jantar, lugar de homem ainda era longe da cozinha. O mesmo valia para as visitas. A cozinha podia até ser bonita (e cara), mas estranhos jamais eram convidados a conhecê-la. A tradição de enxergá-la como um ambiente de serviço permanecia inalterada e só começaria a desaparecer na década de 80. Muitos lembram da famosa cozinha americana: uma abertura na parede criava uma espécie de balcão que a integrava parcialmente com a sala. Apartamentos cada vez menores estimulavam a mudança, mas nada se compara ao papel decisivo desempenhado pelo microondas, esse sim um divisor de águas na história da cozinha. Ele custou um bocado a dar o ar da graça por aqui. Inventado em 1946, já era comum nas casas americanas nos anos 60, mas só entrou nas residências brasileiras em 1985. Sem a sujeira e os odores produzidos pelas formas tradicionais de cocção, a cozinha já não precisava ficar escondida.
Alguns anos mais tarde, outra alteração importante no modo de viver dos grandes centros teve reflexos lá no entorno do fogão. Ruas cada vez mais inseguras, trânsito complicado e dinheiro quase sempre curto transferiram o lazer para dentro de casa. Em meados dos anos 90, cozinhar para os amigos virou moda. "Começaram então a aparecer as aberturas mais generosas, com portas de correr", explica o arquiteto Marcelo Tramontano. O movimento seguinte foi iniciativa da indústria. Já que a cozinha estava à vista, era necessário equipá-la com aparelhos mais bonitos. E por que não investir um pouco mais no visual? Arquitetos e decoradores, antes contratados apenas para embelezar os cômodos nobres da casa, passaram a se debruçar sobre as cozinhas. Em 2000, elas já eram modernas, 100% integradas aos ambientes de estar, com ilhas de preparo que permitem cozinhar e conversar ao mesmo tempo. Adquiriram o status de sala de visitas e foram rebatizadas de cozinhas gourmet. Quem pode investe em dobro: constrói uma convencional, para o uso no dia a dia, e outra mais bacana, que entra em cena em ocasiões especiais, pilotada exclusivamente pelo proprietário mestre cuca. Para os que vivem em apartamentos pequenos, as construtoras inventaram uma saída: a cozinha gourmet do condomínio, nova versão do batido salão de festas.
Como será a cozinha do futuro? Bem diferente, apostam os estudiosos. Há quem jure que, dentro de alguns anos, estaremos cozinhando quase como os Jetsons, em aparelhos com inteligência própria conectados em rede. Pode ser, e os fabricantes de eletroeletrônicos tem investido pesado nas inovações tecnológicas, muitas delas ainda restritas às exposições. Mas outras transformações estão em curso. Para Tramontano, a palavra chave daqui a algumas décadas será mobilidade. "A cozinha será móvel, uma espécie de módulo compacto sobre rodízios, capaz de ser transferida e entrar em operação em qualquer cômodo da casa." Em breve, ele emenda, não teremos mais os ambientes com funções pré-definidas, encerrados entre quatro paredes, mas espaços flexíveis, que vão mudar de acordo com o uso. E o melhor é que ninguém vai ter que esperar muito para conferir.
Confira a trajetória em imagens