Ovelha negra entre os revolucionários russos, Trotski incomodou até o fim de seus dias e acabou assassinado - por ordem de Stálin - com uma picaretada na cabeça
Leon Trotski foi um ótimo exemplo de como se pode “endurecer sem perder a ternura”. Mentor da revolução ao lado de Lenin, ele organizou e liderou o Exército Vermelho, tomou o poder em nome do povo e ainda encontrou tempo para escrever alguns livros que mudaram o rumo do marxismo revolucionário. Perseguido pela ditadura stalinista, foi obrigado a abandonar a URSS. E acabou assassinado no México, a mando de Stálin, com uma pancada de picareta na cabeça. Ainda assim – e apesar de tudo –, Trotski conseguiu ser o mais pop entre todos os revolucionários russos. Era amigo de artistas, gostava de festas, cinema, arte, música... E enxergava uma certa poesia na vida.
“Natascha acabou de chegar pelo pátio até a janela e abriu-a completamente para que o ar possa entrar mais livremente em meu quarto. Posso ver a larga faixa de verde sob o muro. Sobre ele, o claro céu azul. E, por todos os lados, a luz solar. A vida é bela. Que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda a opressão, de toda a violência, e possam gozá-la plenamente”, escreveu em seu testamento, pouco tempo antes de ser morto.
Disciplinador implacável
O nome verdadeiro de Trotski era Lev Davidovitch Bronstein. Filho de um próspero fazendeiro judeu, nasceu na Ucrânia, a 7 de novembro de 1879. Mesmo vivendo em uma família abastada, o regime czarista – calcado nas desigualdades sociais – sempre o incomodou. Tanto que, ainda adolescente, já participava de grupos clandestinos de oposição ao regime. Em 1897, com apenas 18 anos, organizou um desses grupos, a Liga Operária do Sul da Rússia. Acabou sendo preso e condenado ao exílio na Sibéria – a primeira de uma série de condenações desse tipo. Naquele período, conheceu sua primeira mulher, Alexandra Sokolovskaia. Acredita-se que foi ela quem apresentou a Trotski as bases do marxismo. Com Alexandra, teve duas filhas: Nina e Zina. As meninas foram educadas segundo os mais rígidos princípios marxistas – uma tarefa que coube apenas à mãe na maior parte do tempo, já que o pai estava quase sempre sendo preso ou fugindo do país.
Foi justamente em um desses exílios, em uma passagem por Londres, que Trotski se aproximou de Lenin pela primeira vez. As diferenças entre os dois sempre foram muitas. Àquela altura, antes da revolução, o primeiro preferia alinhar-se com o mencheviques (moderados), enquanto o segundo já assumia a liderança dos bolcheviques (radicais). Mais adiante, no entanto, Trotski uniria-se à corrente política de Lenin e lideraria o Exército Vermelho até a vitória. De bonzinho, o camarada Trotski não tinha nada. Era um rígido disciplinador e apoiava o uso da pena de morte para atos de covardia e deserção. “Aviso que, se qualquer unidade militar recuar sem ordens para tal, o primeiro a ser fuzilado será o comissário político da unidade, e depois o comandante. É o que prometo solenemente diante de todo o Exército Vermelho”, declarou certa vez, em alto e bom som, durante uma manifestação pública.
Exilado também, em outras tantas oportunidades, Trotski foi desenvolvendo sua principal contribuição teórica para o movimento revolucionário russo: a idéia de revolução permanente. “Ele estava convencido de que, se a revolução não se espalhasse para a Europa ocidental, o proletariado russo dificilmente conseguiria se manter no poder por muito tempo”, afirma Michael Löwy, pesquisador do Centre National de Recherche Scientifique, em Paris. “No fim, foi o que acabou acontecendo.” Trotski ainda aproveitou o exílio para se casar com sua segunda mulher, Natascha Sedova, militante política que seria sua companheira pelo resto da vida. O casal teve dois filhos: Leon e Sergei – também assassinados, como o pai, por ordem de Stálin.
Réquiem mexicano
Até a morte de Lenin, em 1924, Trotski continuou fazendo parte do governo – sem, é claro, parar de alfinetar com suas idéias, vistas por muitos como de “direita”. Seu principal adversário era Stálin, que logo assumiu o poder. Com o rival no comando, Trotski foi obrigado a sair de cena rapidamente. Mas, mesmo do exílio, continuava aporrinhando o dirigente soviético com seus escritos e seus muitos seguidores. Um dos conceitos mais afiados por ele nesse período foi o de degeneração burocrática, desenvolvido em textos como 1923 – Novo Curso e 1935 – A Revolução Traída, em que defendia a necessidade urgente de uma revolução política na URSS.
Em 1936, Trotski e Natascha instalaram-se no México, com a ajuda do artista plástico mexicano Diego Rivera, marido da pintora Frida Kahlo. Em janeiro de 1937, mudaram-se para a casa dos pais de Frida, que havia sido transformada em uma fortaleza improvisada, repleta de guardas armados, vigias com metralhadoras e janelas emparedadas. O que Rivera não imaginava, contudo, era que o amigo Leon manteria um tórrido caso de amor com Frida. O fato estremeceu a amizade dos dois, obrigando Trotski e Natascha a encontrar outro lugar para morar.
O casal mudou-se, então, para outra fortaleza rigidamente vigiada, de onde o revolucionário continuava a criticar ferozmente o stalinismo. Até que, um dia, Trotski cometeu um erro fatal: deixou o mexicano Ramón Mercader, um suposto admirador, entrar em seu escritório para mostrar-lhe um artigo que havia escrito. Mercader, na verdade, era um agente de Stálin disfarçado. “Pousei o casaco impermeável na mesa, de forma a poder tirar a picareta que estava no bolso”, declarou o mexicano durante seu julgamento. “No momento em que Trotski começou a ler o artigo, tirei a picareta do casaco, segurei-a firme na mão e, de olhos fechados, dei-lhe um golpe terrível na cabeça.” Ferido, as últimas palavras do revolucionário aos seguranças teriam sido as seguintes: “Não o matem. Esse homem tem uma história para contar.”
Trotski, Isaac Deutscher, Civilização Brasileira, 2005
São três volumes (O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido) que analisam em detalhes a vida particular e toda a obra política do líder revolucionário.