O frei dominicano João Xerri atuou nos bastidores apoiando lutas anticolonialistas e movimentos populares em vários países do mundo, como África do Sul, Timor Leste e Haiti. Hoje, acha a questão da Palestina mais vergonhosa que o Holocausto
O frei dominicano João Xerri presenciou, no Brasil e no mundo, importantes conflitos do século 20. Andou pelas favelas de Soweto na época do apartheid na África do Sul, sentiu o cheiro de queimado do Timor Leste destruído, defendeu os refugiados do Haiti, apoiou os índios de Chiapas, no México. No Brasil, nos últimos anos da ditadura, funcionou como contato entre sindicatos do ABC e quatrocentonas paulistas ligadas ao Grupo Solidário São Domingos, criado por ele. Em segredo, os membros do grupo traduziam os acordos feitos por sindicatos e montadoras na Europa, para que pudessem ser compreendidos pelos operários brasileiros. A militância do frei é inspirada pela "opção referencial pelos pobres", lema da Teologia da Libertação, movimento que surgiu na década de 70 dentro da Igreja (e ao qual ele aderiu) que regava postura ativa para a transformação de uma sociedade mais igualitária.
Xerri nasceu em 1947, na República de Malta, no Mediterrâneo, ainda uma colônia inglesa. Embora seja um opositor ferrenho do colonialismo, foi criado na cultura colonial: "Meu pai mesmo era contra a separação da Inglaterra". A ilha tornou-se independente em 1964, quando João ingressou no seminário dos dominicanos, por orientação da família, tradicional e católica, e foi ordenado em 1971. O papel do frei João Xerri nos embates dos quais participou foi articular nos bastidores apoio e guarida a perseguidos, recursos para mobilizar campanhas, telefonemas estratégicos. Veja os principais trechos de sua entrevista.
O senhor nasceu em Malta. Como chegou ao Brasil?
Vim em 1974. Aprendi português em Faxinal [no Paraná], onde trabalhei
numa paróquia. Vim na onda do papa João XXIII, na euforia dos anos 60,
quando acreditávamos que a pobreza podia ser eliminada do mundo. Era o fim do colonialismo, a emancipação da mulher e da classe operária. Tudo era possível. Muitos religiosos e religiosas vinham para a América Latina. Só que houve o contrafluxo as ditaduras. E, nessa guerra, os pobres perderam. Estamos vivendo o pós-guerra dos anos 70, quando morreu muita gente na América Latina.
Como foi sua aproximação com a Teologia da Libertação?
Em 1978, fui fazer pós-graduação na PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio de Janeiro. Comecei a freqüentar o morro do Chapéu Mangueira, no Leme, e a Pastoral da Terra [depois Pastoral das Favelas]. Foi quando encontrei um grande mestre, o Bola, ou Aguinaldo Bezerra dos Santos [líder comunitário]. Quando eu dizia, entusiasmado, "nós, os favelados", ele me corrigia: "Não, João, você nunca será um favelado, você é um companheiro". Bola me deu as raízes da Teologia da Libertação, a experiência concreta. Foi meu pai e meu amigo.
E com o movimento sindical?
Em São Paulo, vivi várias situações, principalmente no Convento dos Dominicanos [de onde foi eleito pároco, em 1980], no bairro de Perdizes. Também entram em cena a Lília [Azevedo, tradutora e militante popular, sua amiga e parceira] e o Movimento da Renovação Cristã [antiga Ação Católica]. O encontro com o sindicalismo aconteceu através de [frei] Betto e do frei Aírton Pereira, já morto, ligados à Pastoral Operária. Meu primeiro contato foi em 1980, quando fui com o Betto visitar Marisa [a primeira-dama Marisa Letícia], na casa dela, e Lula, que eu não conhecia, estava preso.
E qual foi sua exata participação?
Formou-se, na época, um grupo de senhoras não vou dizer os nomes,
porque algumas não iam querer que faziam traduções para a oposição
sindical [o Grupo Solidário São Domingos]. Existem confederações internacionais de sindicatos, e, quando um sindicato faz um acordo na
Alemanha, manda cópia para o Brasil. Mas aqui no sindicato ninguém lê alemão nem francês. Por isso, um grupo de senhoras fazia essas traduções, em segredo. É muito bonito: senhoras de classe média, que falavam francês, alemão, italiano, inglês, em casa, sem sair e sem os maridos saberem, podiam fazer uma tradução para apoiar o sindicato na negociação com a Peugeot, por exemplo. No sindicato, nunca se soube quem elas eram. Lá de dentro, só uma pessoa me pedia para traduzir os acordos.
Como chegou à Comissão Pastoral da Terra, no Pará, na mesma época?
Havia dominicanos lá. O grande conflito era pela terra. E o maior conflito
a que assisti foi em Xambioá, na região de Conceição do Araguaia, quando tentaram expulsar os padres franceses Aristides Camio e François
Gouriou [presos de 1981 a 1983, depois expulsos do país, acusados de incitar invasões]. O Exército tomou a cidade e colocou um capelão militar na paróquia. Então a diocese me mandou, porque aquilo era uma afronta. Fiquei uns dois meses. O capelão militar na paróquia e eu em uma outra capela, apavoradíssimo. Nessa época, a Lília publicou uma coletânea de cartas do padre Aristides, com o título muito significativo: "O Importante é o Povo". É isto a nossa história: o importante é que eles possam ser cidadãos desta República, que o Estado brasileiro funcione para todos.
Como aconteceu seu envolvimento com a ação internacional?
Em 1983, a Lília propôs uma viagem. "Para tu modificares o modo de olhar", me disse. Fomos ao altiplano boliviano, La Paz, Cuzco, Oruro, lago Titicaca e Lima, onde acontecia um grande curso anual da Teologia da Libertação e o Conselho Latino-Americano da Renovação Cristã. Foi muito pedagógico, para alguém como eu, que nasci em Malta então colônia inglesa , tenho cara de árabe, pensei que era sueco. Ver as línguas indígenas faladas e as construções maravilhosas foi incrível. Rompi com muitas das minhas visões européias, preconceituosas. Em Lima, conheci um sul-africano, leigo, Mike Deeb, da Juventude Operária Católica, que tinha sido enviado à América Latina para articular apoio à luta contra o apartheid. Era 1983, eu era pároco em Perdizes. Por meio de uma parceria, na Inglaterra, com o Catholic Institute for International Relations [o CIIR], passamos a atuar com um programa de intercâmbio teológico e ajudando lideranças a saírem da África do Sul.
O senhor conheceu o norte-americano que contrabandeou para fora da África do Sul os textos de Steve Biko [ativista sul-africano, morto pela política em 1977]?
Conheci. Era David Mesenbring, anglicano. Outro anglicano, Aelred Stubbs, um santo homem, recolheu os textos e os entregou a esse jovem, que saiu da África do Sul normalmente com eles. Depois, Aelred acabou expulso da África do Sul e morreu na Inglaterra. As ditaduras pensam que sabem tudo, mas não sabem. Uma vez, estávamos, eu e Lília, na sede da Conferência das Igrejas Sul-Africanas, com vários slides sobre o Brasil. De repente, entra a polícia, por acaso, para procurar outra coisa. Nossos amigos pensaram que seríamos deportados. Mas a Lília era branca, tinha um porte não popular, falava um inglês impecável. Ela falou com o comandante, eu fiquei calado. O sujeito perguntou ao chefe: "Temos aqui uma senhora, branca, parece que está visitando a Conferência Episcopal, que fazemos com ela?" O outro respondeu: Manda ela sair imediatamente". Ela guardou tudo na bolsa, e fomos embora.
O senhor assistiu a muitas cenas de discriminação racial?
Sim, muitas. Havia, na África do Sul, a Lei de Imoralidade: nenhum branco podia dormir na casa de um negro e vice-versa. Uma vez, estava em Soweto com um amigo, James Buyse, na zona negra, uma favela enorme, onde não podiam dormir brancos. Veio a polícia, uma batida. Fui acordado pelos amigos e levado embora escondido pela favela. Nessa época, conheci Michael Lapsley [anglicano que perdeu os mãos e um olho com uma revista-bomba]. Nelson Mandela [mais importante líder da luta contra o apartheid, preso de 1962 a 1990 e eleito presidente da África do Sul de 1994 a 1999] estava na prisão.
Como surgiu o Grupo Solidário São Domingos?
Inicialmente, éramos a Lília e eu; depois, outros entraram. Era aqui em Perdizes, neste apartamento [de Lília Azevedo, em São Paulo, onde foi feita a entrevista]. Era chamado Grupo de Tradução São Domingos, porque fazia aquelas traduções. Com a ação internacional, Nora Pecci [uma das primeiras apoiadoras] escolheu o nome São Domingos para reconhecer que já havia frades e leigos, nos anos 60, na Paróquia São Domingos, de Perdizes, que apanharam muito; e chamou de Grupo Solidário, porque a pauta era atender os pedidos de ajuda. O grupo teve várias frentes, como Timor e Haiti.
Como surgiram essas articulações?
De acordo com o que nos pediam. O CIIR financiou a vinda ao Brasil de um timorense, Estevão Cabral, para pedir ajuda. Assim surgiu o Clamor por Timor, movimento pelo direito do povo de decidir sobre sua integração à Indonésia. Eu fui ao Timor Leste depois do plebiscito [que aprovou a independência, em 1999]. Estava tudo queimando, dava para sentir o cheiro. Queimaram dois terços do país. Quando chegamos, já tinham passado duas semanas, ainda havia fumaça. A Indonésia foi obrigada a aceitar o resultado, então abandonou, deixou tudo entregue a bandidos.
Foi ao Haiti? Por que as condições de vida lá não melhoram?
Fui várias vezes. Em 1986, fui nomeado, pelos dominicanos, Promotor de Justiça e Paz para América Latina e Caribe. O Haiti é o país mais pobre do mundo. A primeira lembrança que tenho é a do lixo.
Por que o Haiti é assim?
Um pouco porque foi a primeira colônia de negros a se tornar independente na verdade, foi a primeira colônia a ficar independente e que precisou indenizar o colonizador. E sempre escutei que o Haiti é um depósito de lixo, inclusive lixo atômico.
O senhor esteve em Chiapas, no México, outro lugar muito pobre.
Sim, é a região de Bartolomeu de Las Casas, famoso dominicano. Fui porque, na Ordem, havia gente a favor e contra a ação do então bispo de Chiapas, dom Samuel Ruiz [que defendeu o levante indígena, em 1998]. Eu era a favor, fui dar apoio. Até a chegada de dom Samuel, o índio não podia andar na calçada. O sacerdote canadense que traduziu a Bíblia para o tzotzil foi expulso do país, porque os brancos não queriam a Bíblia na língua do povo. Hoje, esse movimento de base, na Igreja, foi cortado. O bispo atual está controladíssimo pelo Vaticano.
Quais os seus planos atuais?
Estou em transição. Muitos desses projetos eram com a Lília [morta em junho deste ano]. Não era só uma amiga, era uma parceira, e desfazer parcerias é complicadíssimo. Também terminei o mandato em Roma [o governo geral da Ordem dos Dominicanos], em fevereiro, e estou em fase de me reinserir. Quero recuperar as ligações com minha terra, minha família. Vou dividir o tempo entre Malta e Brasil.
Um país, uma causa urgente, hoje?
Palestina. É muito pior que o apartheid da África do Sul. Porque, na Palestina, o espaço é menor e você se bate com o apartheid as 24 horas do dia. Há duas portas para entrar em Belém: uma para os turistas, outra para os palestinos, que [Israel] fecha quando quer. Há estradas separadas, que só o colono judeu pode usar. Na África do Sul, não tinha isso. Tudo de sagrado nas leis internacionais foi quebrado. É uma vergonha pior do que a do Holocausto. Governos não sabiam dele. Na Palestina, nenhum governo, nenhum país pode dizer que não sabe. E a tragédia é que os palestinos pagam pelo que não fizeram. Porque não existe um país europeu que não tenha roubado os judeus, na última Grande Guerra: Alemanha, Suíça, Vaticano, Itália, Inglaterra, Estados Unidos. Menos os palestinos.