Ela ganhou os contornos na Itália do pós-guerra. Como opção barata - e simpática - de meio de transporte, a motoneta abriu caminhos e ganhou o mundo
"Aos meus olhos, a Vespa remete à transgressão, ao pecado, à tentação. Não a tentação de possuir o objeto em si, mas a sedução sutil dos lugares distantes, onde a Vespa seria o único meio de transporte", disse certa vez o filósofo Umberto Eco. Qualquer semelhança entre a citação acima e o enredo do filme A Princesa e o Plebeu (1953) não é mera coincidência. Rodado em Roma pelo diretor William Wyler, rendeu o oscar de melhor atriz para Audrey Hepburn. No romance, ela dá vida à princesa Ann, de uma típica família real europeia. A moça já não aguenta mais a rotina de compromissos oficiais nos países da região. Mas tudo muda quando a comitiva real chega a Roma. Ann se encanta pela vivacidade do povo italiano, que se recuperava da devastação causada pela Segunda Guerra. Ao lado do jornalista americano Joe Bradley, ela resolve tirar férias do protocolo. Numa sequência clássica, o casal passeia pelas ruas, vielas e monumentos da Cidade Eterna a bordo de um scooter (do inglês to scoot: fugir, deslocar-se com agilidade). Ao guidão, Ann experimenta os pequenos prazeres da dolce vita - mesmo que para isso tenha de apavorar os pedestres pelo caminho. Nada mais apropriado que fazer esse passeio numa Vespa 125. A motoneta tem personalidade própria: as formas são sensuais e femininas, e ela é mais dócil do que uma moto tradicional. "Não foi à toa que os scooters italianos caíram no gosto das mulheres", afirma Ari Antonio da Rocha, consultor do curso de Design da Mobilidade da Fundação Armando Álvares Penteado. "O design permitiu que as condutoras, mesmo usando saias, pudessem dirigir o veículo. Coisa impossível nas motos comuns."
Ilustrações Nik Neves
Reinvenções
A tormenta da Segunda Guerra se dissipa sobre a Europa. Na Itália, cidades, indústrias, estradas... tudo foi destroçado. Matéria-prima e combustíveis são escassos, assim como os alimentos. Mas é tempo de recomeçar. Durante o conflito, a Societá Anonima Piaggio fabricou motores de avião. Mas as instalações do grupo em Pontedera, na região de Pisa, na Toscana, foram bombardeadas em 1944. O herdeiro Enrico Piaggio decide apostar as poucas fichas remanescentes na produção de um veículo pequeno, econômico e resistente, capaz de enfrentar o que tinha restado das vias do país e de se adequar ao combalido poder de compra dos consumidores. O modelo MP5 surgiu em 1945 e ganhou o apelido de Paperino, nome do Pato Donald na Itália. Piaggio admitiu, anos depois, que a inspiração veio de scooters ingleses e americanos da época da guerra, como os Cushman, lançados de paraquedas para uso dos aliados. Versões anteriores, mais próximas a um patinete motorizado, já haviam sido úteis na Primeira Guerra (veja abaixo). Mas as linhas da MP5 não agradaram ao público nem ao dono da fábrica. Piaggio recorreu, então, a um designer de aeronaves, Corradino D’Ascanio, que fez alterações no projeto e, em 1946, chegou à MP6, a primeira Vespa. Os contornos lhe deram fama mundial. Reza a lenda que o nome de inseto veio do barulho do motor dois-tempos, mais parecido com um zumbido.
Curiosamente, uma história semelhante se desenrolou quase ao mesmo tempo, não muito longe de Pontedera. Desde 1931, Ferdinando Innocenti tinha uma fábrica de tubos de aço em Lambrate, perto de Milão. Mas a instalação também havia sido destruída na guerra. Para reativar o negócio, ele apostou na ideia de fazer veículos que aproveitassem, na estrutura, os tubos que já produzia. Em 1947, lançou a primeira Lambretta.
A década de 1950 marca a reconstrução e a recuperação econômica da Itália. Vespas e Lambrettas ganharam espaço oferecendo mobilidade e, sem que tardasse muito, glamour. As motonetas viraram febre entre os jovens. Um exemplar custava, em média, seis vezes menos que um automóvel básico da Fiat. E eram muito mais charmosas. Tornaram-se ícones dos anos dourados. Tamanha popularidade fez os scooters ganharem o mundo. Ao completar 60 anos, a Vespa já tinha mais de 17 milhões de unidades rodando pelo planeta. Há quem considere as motonetas os produtos de exportação de maior sucesso da Itália. "A escola de design local, respeitada em todo o mundo, surge nesse período do pós-guerra", diz Rocha. "Formas harmônicas, elegantes e funcionais contribuíram para o sucesso internacional de muitos produtos italianos: de máquinas de café expresso a mobília; de vestuário a scooters."
As motonetas foram (e ainda são) especialmente populares na Espanha e na França. Em muitos países, Vespas e Lambrettas inspiraram a indústria local. Em outros, foram instaladas fábricas ligadas às matrizes italianas. Na Índia, a Piaggio se associou à Bajaj Auto, que até hoje fabrica scooters. As primeiras Lambrettas sul-americanas foram feitas na Argentina, no início dos anos 50, pela empresa Siam: as Siambrettas. No auge da popularidade, foram mais de 200 fabricantes produzindo motonetas em todo o mundo.
Desembarque no Brasil
A Lambretta do Brasil, instalada em São Paulo, foi a primeira fábrica de veículos do país. Entre 1958 e 1960, produziu mais de 50 mil unidades por ano. Já as Vespas foram montadas pela Panauto, no Rio de Janeiro, a partir de 58. As motonetas conquistaram os jovens brasileiros. O cantor e apresentador Ronnie Von teve duas lambretas: "Elas marcaram uma época maravilhosa da minha vida". A década de 60 assistiu à consolidação da indústria automotiva no Brasil. Em 1975 e 76, a concorrência da Yamaha e da Honda fabricando motos passou a abalar o espaço dos scooters verde-amarelos. Vespas deixaram de ser produzidas no país em 1990 e as Lambrettas, mais de 10 anos antes. Sobraram algumas versões, como a Burgman, da Suzuki. Mas a doce revolução já estava feita. Lá fora e aqui.
Livres, leves e soltas
A evolução das adoráveis motonetas
As pioneiras
Construídas nos EUA e Europa no início do século 20, eram patinetes motorizados, como a Autoped. Nenhuma fez sucesso. Em 1936, a californiana Motor Glide já tinha características que fariam parte da maioria dos scooters. Alguns modelos foram usados na 2.ª Guerra e, em 1945 a Piaggio lançou a Paperino, "mãe" da Vespa.
Anos dourados (1946-1970)
Vespas e Lambrettas eram fabricadas, sob licença, nas Américas, na Europa e na Ásia. Marcas famosas de motos, como Harley- Davidson, Triumph, Honda, Puch, Jawa e até a Peugeot francesa entram na onda, com leituras próprias do conceito scooter.
O futuro já começou
Os scooters de hoje modernizaram o visual, mas ainda conservam linhas clássicas. O motor dois-tempos foi aposentado: a mecânica moderna é mais leve e menos poluente. As motonetas continuam a esbanjar conforto e estilo. Modelos como a Vespa GTV (250 ie) passam de 25 mil reais no Brasil.
Lambretta x Vespa
Iguais, mas totalmente diferentes
Para muita gente, Vespa e Lambretta são a mesma coisa. Tanto que viraram sinônimos de scooter. Mas as diferenças começam já na estrutura. A primeira tem chassi inteiriço, prensado e soldado. A "espinha dorsal" da segunda é um tubo de aço moldado. O motor centralizado dá equilíbrio. Na Vespa, ele é posicionado à direita, por isso ela pende para esse lado. Suas saias, que abrigam o motor e dão o acabamento, são mais bojudas. As da Lambretta são mais alongadas. "Vespas e Lambrettas são frutos de projetos distintos, mas que resultaram em veículos semelhantes em termos de design. É por isso que eu digo que elas são iguais, mas totalmente diferentes", diz o designer de veículos Ari Rocha.
O documentário Lambretta: L’altra Faccia del Miracolo Italiano (Lambretta: a outra face do milagre italiano), de Enrico Maria Settimi, aponta diferenças de outra natureza. A Itália do progresso, da dolce vita, do milagre econômico seria a Itália da Vespa. Já a Itália operária, da linha de montagem, que ajudou a construir o milagre mas não usufruiu dele, seria o país da Lambretta. Elas deixaram de ser fabricadas em 1971. Já as Vespas seguem até hoje, mas como artigos de luxo.
Saiba mais
LIVROS
La Vespa ...E Tutti i Suoi Vespini: 1946-1996, Giorgio Nada Editore, 1988
A publicação comemora o cinquentenário da Vespa e relaciona todos os modelos até então.
Classic Scooters - 1945-1970, Mick Walke, Crowood, 2008
A história das motonetas, desde as origens até o auge, nos anos 1950 e 60, e o início do declínio, nos anos 70.